Play it Again, Sam, no Brasil Sonhos de um Sedutor (1972), é uma grande homenagem de Woody Allen ao cinema, aos filmes. Como vem de um humorista, é uma brincadeira, uma deliciosa coleção de piadas.
É Woody Allen puro, concentrado. É tão Woody Allen quanto os outros filmes do mesmo período – Um Assaltante Bem Trapalhão, o número 1, de 1969, Bananas, o segundo, de 1971, Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo, o terceiro, que faria em seguida, no mesmo ano de 1972, O Dorminhoco, seu filme de número 4.
Só que não foi ele que dirigiu. O realizador é Herbert Ross (1927-2001), um diretor e produtor menos reconhecido do que mereceria, autor de filmes bonitos, sensíveis, muito deles sobre mulheres, sobre a alma feminina, como Momento de Decisão/The Turning Point (1977), A Garota do Adeus/The Goodbye Girl (também 1977), Flores de Aço/Steel Magnolias (1989), Somente Elas/Boys on the Side (1995).
Play it Again, Sam foi escrito por Allen como peça de teatro, e estreou no Broadhurst Theater da região da Broadway em 12 de fevereiro de 1969; teve 453 apresentações, até 14 de março de 1970, e os personagens centrais foram interpretados pelo próprio autor, Diane Keaton e Tony Roberts. Todos os três reprisariam seus papéis no filme.
Consta que Allen levou apenas dez dias para adaptar sua peça e transformá-la em roteiro do filme, com a ajuda do diretor Herbert Ross.
Numa entrevista à revista Cinema, em março de 1972, Allen declarou: “Eu nunca desejaria dirigir um filme baseado em uma peça. Eu estava interessado em trabalhar em projetos originais para a tela. Já estava trabalhando em Tudo o que Você Sempre quis Saber Sobre Sexo, e não queria passar um ano fazendo um projeto que já tinha feito na Broadway.” Na mesma entrevista, feita antes do lançamento, ele disse esperar que, com a direção de Herbert Ross, pudesse sair “um filme comercial agradável, sólido, engraçado, que talvez conquistasse uma audiência maior do que a dos meus próprios filmes”.
Play it Again, Sam de fato conquistou o que o então jovem Woody Allen queria. Um crítico chamado Rob Nixon escreveria que este foi o filme que transformou Woody Allen em uma estrela, com apelo para uma audiência de massa pela primeira vez.
O título é uma frase que ninguém diz em Casablanca
O protagonista da história tem muito já da persona que Woody Allen usaria em muitos dos seus filmes, em geral interpretada por ele mesmo: o judeu nova-iorquino intelectualizado, de alguma forma ligado às artes, neurótico, confuso, inseguro, em geral angustiado com as grandes questões metafísicas.
O único detalhe que não bate é que Play it Again não se passa em Nova York, ao contrário da imensa maioria dos filmes de Allen, e sim do outro lado do país, em San Francisco, aquela cidade maravilhosa, encantadora.
Allan – esse é o nome do personagem – é crítico de cinema de uma revista (fictícia) chamada Film Weekly. E é um fã incondicional de Humphrey Bogart, dos filmes do anos 40 do ator. Em sua casa há pôsteres gigantescos de Garras Amarelas/Across the Pacific e, claro, Casablanca, o grande clássico adorado por 9 entre cada 10 cinéfilos.
São as cenas finais de Casablanca que vemos quando Play it Again, Sam começa. Os close-ups dos rostos de Rick Blaine-Humphrey Bogart e Ilsa Lund-Ingrid Bergman no aeroporto de Casablanca, de onde partirá logo em seguida um avião levando um casal – mas não o casal que Ilsa imaginava, e sim o casal que Rick define que sairá daí, daquele território dominado pelos nazistas, rumo a terras dos Aliados.
Os créditos iniciais de Play it Again, Sam vão rolando enquanto vemos as cenas finais de Casablanca – e, em algumas tomadas, vemos as imagens do filme refletidas em grandes óculos, os óculos de Allan, o crítico de cinema, que está revendo a obra-prima de Michael Curtiz pela enésima vez.
Aqui é bom lembrar que ninguém, em momento algum dos 102 minutos de Casablanca, diz a frase “Play it again, Sam”.
É uma das frases mais famosas do cinema – só que ela não é dita. É uma lenda urbana, uma invenção, uma zoeira. Uma frase fake, algumas décadas antes da mania das fake news.
Transcrevo um trecho do meu texto sobre Casablanca:
O filme tem isso: transforma em histórica até mesmo uma frase que jamais é dita. Até os tapetes mais encardidos e as lanternas que antigamente eram usadas nos grandes cinemas para conduzir os espectadores até suas cadeiras sabem que o diálogo entre Ilsa e o pianista Sam do Café Americain é, na verdade, assim:
Ilsa: – “Play it, Sam. For old times’ sake.” (Toque, Sam. Pelos velhos tempos.)
Sam, mentindo mal pra burro: – “I don’t know what you mean, Miss Ilsa.” (Não sei do que está falando, Miss Ilsa.)
E aí a mulher mais linda a jamais aparecer numa tela de cinema, abrindo aquele sorriso que ninguém, nem o mais belo anjo de pintor renascentista jamais teve, diz: – “Play it, Sam. Play As Time Goes By.”
Pois é. Mas alguém inventou que ela diz “Play it Again, Sam” – e quase virou verdade. E virou o título da peça de Woody Allen, e o deste delicioso filme aqui.
Humphrey Bogart conversa com ele, dá conselhos
Naquele momento em que a ação começa, Allan no cinema vendo Casablanca pela enésima vez, ele estava sendo abandonado pela mulher, Nancy (o papel de Susan Anspach). Nancy tinha se cansado dele, e explicado com todas as letras o que sentia: – “Você é um sonhador. Você é esquisito. Você é desajeitado. Todo mundo pode ver como você é desesperado. Você sabe disse. Ah, Allan, admita. Você pode ser doce, mas não é sexy.”
Ao final da conversa, Nancy diz para o advogado dele ligar para o advogado dela, para tratar do divórcio. E Allan: – “Eu não tenho advogado. Fale com o seu para ligar para o meu médico.”
O maior amigo de Allan, Dick (o papel de Tony Roberts), e a mulher dele, Linda (o de Diane Keaton), vão visitá-lo, tentar animá-lo, arrumar programas para ele conhecer outras mulheres.
Acontece que, diante de qualquer uma das mulheres que o casal amigo apresenta para ele, Allan fica inteiramente sem jeito, sem graça. Passa a ter um comportamento completamente antinatural, forçado – e, como é o papel de Woody Allen, um comportamento bobalhão, desajeitadíssimo, trapalhão. Para a pobre moça que os amigos arranjaram para conhecer o rapaz solteiro, um absoluto horror. Para o espectador, um trapalhão engraçadíssimo. Coitado…
Humphrey Bogart conversa com ele. Tenta dar conselhos a ele. Aparece sempre com aquele sobretudo à lá Sam Spade, o detetive criado por Dashiell Hammett, que Bogey interpretou em Relíquia Macabra/The Maltese Falcon (1941), a estréia na direção do grande John Huston. Bogey é interpretado por Jerry Lacy, com o sobretudo à lá Sam Spade e aquele vozeirão que qualquer cinéfilo que se preza reconhece já na primeira palavra, em geral com o rosto meio na sombra.
Os diálogos de Humphrey Bogart com Allan são sensacionais, divertidíssimos. Bogey fala coisas absolutamente machistas, típicas dos detetives hard-boiled que ele interpretava: – “Nunca vi uma mulher que não compreenda um bom tapa na boca ou a bala de um 45.”
A palavra para mulher que ele usa é “dame”. As mulheres, para os detetives e bandidos das histórias policiais de Dashiell Hammett, Raymond Chandler, são sempre “dames” ou “broads” – nunca woman ou girl.
Só com Linda, a mulher do amigo, ele age naturalmente
Inseguro, trapalhão, Allan só consegue ficar na boa, tranquilo, natural, sem forçar a barra para parecer atraente, inteligente, charmoso, quando está na companhia de Linda. Claro, porque Linda é amiga, é a mulher do maior amigo, e portanto ele não tem que tentar impressioná-la, mostrar-se cheio de qualidades.
Com Linda, ele age naturalmente, é ele mesmo, relaxado, tranquilo – e essa é uma boa sacada do comportamento humano do autor Woody Allen, então ainda jovem. De 1935, estava com 34 anos quando Play it Again, Sam, estreou na Broadway. É sempre assim com o bicho homem, esse estranho, muitas vezes grotesco animal: quando estamos diante de uma mulher que queremos impressionar, nos derretemos, não somos nós mesmos, ficamos bobos, bocós.
Será inevitável, é claro, que, depois de passarem muito tempo juntos, Allan e Linda sintam, afinal, atração pelo outro. Ainda mais que Dick, o maior amigo dele e marido dela, está sempre envolvido com seus negócios, sem tempo para dar muito atenção à mulher.
Não tem sentido relatar o que vem a partir daí – mas, ao mesmo tempo, é impossível não transcrever dois trechinhos dos diálogos entre Allan e Bogart na deliciosa, maravilhosa sequência em que Allan recebe Linda em seu apartamento para que ele prepare o jantar.
Estão sentados no sofá, lado a lado, os dois amigos. Bogart, que, evidentemente, Allan e o espectador vêem, mas Linda, não, vai dando as dicas: – “Agora chegue mais perto dela.”
Allan: – “Perto quanto?”
Bogart: – “A distância de seus lábios.”
Allan: – “Isso é perto demais.”
Bogart continua insistindo que aquela é a hora de Allan partir para o abraço, o beijo, os finalmente. Allan resiste: – “Não consigo. O que vai ficar parecendo? Eu a convido para vir aqui e aí a ataco como um degenerado sexual. O que eu sou, um estuprador?”
Bogart: – “Você está perdendo o controle. Você pensa demais. Vá lá, vá em frente.”
Allan: – “Somos amigos platônicos. Não posso estragar isso indo pra cima dela. Ela vai dar um tapa na minha cara.”
Bogart: – “Ah, eu já levei um monte de tapas na cara.”
Allan: – “É, mas você não usa óculos. Os meus vão voar longe.”
Allen conta que a história é bem autobiográfica
Woody Allen contou a Eric Lax – o autor que o entrevistou dezenas de vezes ao longo de várias décadas e em 2007 lançou o livro Conversas com Woody Allen – que Play it Again, Sam é de certa forma bem autobiográfico. Ele escreveu a peça na época em que ele e Louise Lasser estavam se separando, após três anos de casamento de papel passado.
(Louise foi o segundo casamento oficial de Allen, depois de Harlene Susan Rosen, união que durou de 1956 a 1962. O casamento com Louise foi em 1966 e o divórcio saiu em 1970, quando a peça Play it Again, Sam já havia estreado. Com Diane Keaton e Mia Farrow não houve papel passado. O terceiro casamento foi com Soon-Yi Previn, a filha adotiva de Mia Farrow e o maestro André Previn; casaram-se em 1997, e estão juntos até hoje.)
“Sonhos de um Sedutor foi escrito na época em que a Louise e eu estávamos nos separando. Quando começamos a ensaiar, ela tinha acabado de mudar de casa. (…) O que realmente aconteceu foi que amigos casados diziam: ‘Ah, nós conhecemos uma garota ótima para você’. Ou então me convidavam para uma festa e me apresentavam a uma garota. E era sempre uma coisa esquisita, porque essas coisas sempre são esquisitas, e volta e meia eu agia como um idiota. Então descobria que com as mulheres dos meus amigos, com quem eu não teria pensamentos românticos nem em um milhão de anos, eu era natural e verdadeiro, e elas me achavam uma companhia muito melhor do que as mulheres que eu me esforçava para impressionar. E foi isso que me deu a idéia. Você se esforça com uma estranha e fica totalmente à vontade com seus amigos porque não se importa, e é o amigo que te vê como uma pessoa real, enquanto as outras pessoas te vêem como um coitado nervoso ou intensamente grotesco.”
A história de Diane e Woody é uma maravilha
Um dos defeitos de Play it Again, Sam é não haver close-ups do rosto de Linda-Diane Keaton.
Diane Keaton é uma mulher de fato linda, sempre foi, e ainda é. Em 1972, aos 26 aninhos, tinha uma deliciosa baby face, era bela de matar. O diretor Herbert Ross e seu diretor de fotografia Owen Roizman não quiseram ou não souberam tirar vantagem da beleza da moça, não foram pródigos nos close-ups dela. Se há close-up do rosto lindo de Diane Keaton, é um ou dois. Fiquei com a sensação de que não há nenhum.
É uma beleza de história de Diane Keaton e Woody Allen. Uma maravilha de história. Neste ano de 2019, foi lançado a minissérie Fosse/Verdon, a história de Bob Fosse e Gwen Verdon; algum dia poderiam fazer uma minissérie Allen/Keaton – a trama é de cinema…
Conheceram-se quando ela fez um teste para o papel de Linda na peça que iria estrear na Broadway, em 1969. “De onde veio a Diane Keaton?”, perguntou Eric Lax. E a resposta foi:
“Rigorosamente de um teste. Estávamos testando as mulheres e nos disseram que o Sandy Meisner, do Neighborhood Playhouse, tinha dito que a próxima garota da lista era a mais talentosa da classe dele. Ela veio, eu li com ela no palco, e era claramente maravilhosa.”
Em uma carta para sua mãe, Dorothy Deanne Keaton Hall, em 30 de janeiro de 1969, a jovem Diane Hall, que adotara para a carreira artística o sobrenome da mãe, contou que havia se mudado de apartamento na véspera, que estava ouvindo muito Nina Simone e Morgana King, sua favorita, elaborou uma rápida lista com suas despesas, e, no meio dessas notícias, escreveu:
“Os ensaios estão indo bem. Woody Allen é bonitinho e, é claro, engraçadíssimo.”
Mãe e pai – dona Dorothy e seu Jack Newton Hall – foram a Nova York para a estréia da peça Play it Again, Sam. Dorothy anotou: “Conhecemos Woody Allen depois. Ai, meu Deus. Ele era tão tímido e quieto, nada do que eu esperava. A peça foi engraçadíssima. Diane ficou bonita no palco – estava de franja, o que fez o cabelo dela parecer bem grosso.”
Em nova carta à mãe, em 18 de fevereiro de 1969, Diane escreveu: “Parece que você acabou de sair daqui. Como é que passou tão depressa? Woody não é hilário? Gostou mesmo da peça?”
E mais adiante: “Acho que tive um encontro com ele. Fomos à famosa churrascaria Frankie and Johnnie’s. Tudo ia bem até que raspei o garfo no prato e fiz um barulho normal (reafirmo: normal) de cortar. Devo tê-lo deixado maluco, porque ele deu um berro. (…) Duvido que jantaremos juntos tão cedo.”
Woody Allen contou a Eric Lax:
“Quando estreamos em Washington, a Keaton e eu começar a namorar a sério. Ficávamos juntos, depois não, nunca com certeza, juntava e separava, até que chegou a hora de ir fazer Bananas. Nesse momento, precisávamos tomar uma decisão e decidimos em favor um do outro. (Ele sorri.) Ela foi comigo para Porto Rico e lá vivemos juntos, no Hotel Delmonico, durante uns cinco meses, enquanto terminavam a reforma do meu apartamento de cobertura. E depois moramos nele por uns dois anos.”
Bananas (1971), que foi filmado em Porto Rico, não tem Diane Keaton, que estava vivendo com o diretor – mas tem Louise Lasser, a ex. Woody Allen é daquele tipo feliz de homem (como eu mesmo, por falar nisso) que convive bem, em absoluta harmonia, com as ex-mulheres. Continuou amigo de Louise Lasser da mesma maneira com que continuou e continua amigo de Diane Keaton. Isso não foi possível com Mia Farrow, mas seguramente o problema aí não é dele.
Woody Allen e Diane Keaton fariam, depois deste Play it Again, Sam, cinco filmes consecutivos: O Dorminhoco (1973), A Última Noite de Bóris Grushenko/Love and Death (1975), Annie Hall (1977), Interiores (1978) e Manhattan (1979). Foi a época em que Woody Allen passou de um jovem realizador promissor a grande cineasta, dos melhores que já houve.
Mais tarde, em plena Era Mia Farrow, Diane Keaton faria uma participação especial em A Era do Rádio/Radio Days (1987). E faria o principal papel feminino no primeiro filme dele após o encerramento da Era Mia Farrow, Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993).
Numa homenagem mais ou menos recente de Hollywood a Woody Allen – já nesta segunda década do século -, o próprio homenageado não foi, assim como deixou de comparecer a algumas festas do Oscar quando algum filme seu havia recebido indicações. Quem o representou, quem fez as honras da casa em nome do homenageado foi Diane Keaton.
É. Allen/Keaton daria um bom filme, uma boa série.
Um criador de diálogos primorosos
Um diálogo especialmente delicioso de Play it Again, Sam. Linda e Allan estão no Museu de Arte Moderna de San Francisco. Diante de um quadro de Jackson Pollock, “Guardians of the Secret”, há uma moça atraente, interessante (interpretada por Diana Davila, na foto acima). Linda incentiva Allan a chegar perto dela, puxar um papo.
Ele vai.
Allan: – “Este Jackson Pollock é muito belo, não é?”
A moça: – “É.”
Allan: – “O que ele diz para você?”
A moça: – “Ele reafirma a negatividade do universo. O terrível vazio solitário da existência. O nada. A difícil situação do momem forçado a viver numa eternidade estéril, sem Deus, como uma tíbia chama que tremula num imenso vazio com nada a não ser lixo, horror e degradação, formando uma camisa de força inútil e desoladora no negro absurdo do cosmos.”
Allan: – “O que você vai fazer no sábado à noite?”
A moça: – “O suicídio.”
Allan: – “Que tal na noite de sexta?”
Um filme mais “convencional” que seus primeiros
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas ao filme: “Deliciosa adaptação da peça do próprio Woody sobre fanático por cinema que é incentivado pelo fantasma de Bogart é impressionar uma garota após sua mulher ter divorciado dele. Mais ‘convencional’ do que outros dos primeiros filmes de Allen, mas tão engraçado quanto eles.”
A avaliação de Maltin demonstra que de fato Woody Allen estava certo ao achar que o filme poderia atingir uma audiência mais ampla do que a de seus próprios filmes. É isso mesmo, é exatamente isso: é um filme mais “convencional” do que os outros do período inicial de sua carreira.
O grande Roger Ebert – que deu ao filme 3 estrelas em 4 – também realçou a mesma coisa em sua crítica. Antes disso, porém ele descreve um pouco da história. Eis o delicioso primeiro parágrafo:
“Allan vive num apartamento mobiliado com coisas de cinema. Ele dorme abaixo de um pôster de Across the Pacific (no Brasil, Garras Amarelas, como já foi dito), faz a barba com Casablanca refletido no espelho, e frita seus ovos perto de The Big Sleep (no Brasil À Beira do Abismo). Não há um lugar no apartamento em que os nomes de Mary Astor e Sydney Greenstreet não possam ser lidos. Ele é fã de Humphrey Bogart. Ele é mais que isso. Ele é aluno de Humphrey Bogart.”
E lá adiante, depois de relatar algumas das confusões em que o personagem se envolve:
“Tudo isso é levemente menos louco que a comédia usual de Woody Allen, talvez porque Play it Again, Sam seja baseado em uma peça da Broaway escrita por Woody, e com uma peça é um pouco mais difícil de trabalhar como um assassinato na América do Sul narrada por Howard Cosell. (Uma referência ao filme Bananas.) De qualquer maneira, esta é uma comédia muito engraçada. Woody Allen é um daquele raros comediantes que entendem que o humor pode ser baseado em pathos tanto quanto em sadismo. Enquanto alguns cômicos nos esmagam com um humor agressivo, Woody está no em algum lugar do banheiro sendo atacado por um secador de cabelo.”
Interrompo o Roger Ebert para dizer que é engraçadíssima, hilariante, essa sequência em Allan-Woody Allen se atrapalha todo no banheiro, nervosíssimo porque os amigos vão chegar com uma moça para ser apresentada a ele, e acaba sendo atacado pelo secador de cabelos. É uma daquelas gags típicas das comédias do cinema mudo, uma coisa absolutamente pastelão, que tanto Allen quanto Jerry Lewis sempre gostaram de fazer.
E Ebert conclui:
“A idéia de usar um personagem Bogart é surpreendentemente bem sucedida. A imitação de Bogie feita por Jerry Lacy é boa, se não grande, e o filme começa e acaba com variações do grande final de Casablanca. Isso, e a estrutura de trama bastante convencional, à la Broadway, dá mais coerência ao filme do que nos anteriores Take the Money and Run e Bananas. Talvez o filme tenha coerência demais, e a trama seja previível; esta é uma fraqueza de filmes baseados em peças bem feitas da Broadway. Ainda assim, isso é uma queixa pouco séria diante de algo tão engraçado quanto Play it Again, Sam.”
Grande Roger Ebert!
E grande Jean Tulard. O Guide des Films de Jean Tulard também dá 3 estrelas em 4 para Tombe les Filles et Tais-Toi!, como o filme se chamou na França. Tombe les Filles et Tais-Toi! Algo próximo de “derrube as garotas e cale a boca!”, com ponto de exclamação e tudo.
“Por que razão é Herbert Ross que assina este filme? A peça original é de Woody. O roteiro é de Allen. Quanto ao intérprete principal, ele se chama Woody Allen, e ele aproveita para fixar definitivamente nas telas o personagem com o qual passeará de filme em filme. Um homenzinho fracote, agitado, inquieto, complexado, egocêntrico, intelectual de óculos, judeu, nova-yorquino e, sobretudo, pouco à vontade diante das mulheres, com as quais comete fracassos monumentais. Em Tombe les Filles et Tais-Toi!, ele vai conseguir deixar frígida uma ninfomaníaca! Isso diz tudo. Essas piadas de todos os instantes se conjugam aqui com um toque de nostalgia cinéfila. Ao ressuscitar Bogart (bem interpretado por seu sósia Jerry Lacy), ao parodiar (com amor) a última sequência de Casablanca, presta uma homenagem ao grande cinema hollywoodiano do passado. Mas, de fato, por que diabos foi Herbert Ross que assinou o filme?”
Anotação em setembro de 2020
Sonhos de um Sedutor/Play it Again, Sam
De Herbert Ross, EUA, 1972
Com Woody Allen (Allan), Diane Keaton (Linda), Tony Roberts (Dick), Jerry Lacy (Bogart)
e Susan Anspach (Nancy), Jennifer Salt (Sharon), Joy Bang (Julie), Viva (Jennifer), Susanne Zenor (a moça da discoteca), Diana Davila (a moça do museu), Mari Fletcher (a Sharon da fantasia),
Roteiro Woody Allen
Baseado em sua peça de teatro homônima
Fotografia Owen Roizman
Música Billy Goldenberg
Montagem Marion Rothman
Produção Charles H. Joffe, Jack Rollins, Frank Capra Jr., Paramount Pictures.
Cor, 85 min (1h25)
***1/2
Título na França: Tombe les filles et tais-toi! Em Portugal: O Grande Conquistador.
7 Comentários para “Sonhos de um Sedutor / Play it Again, Sam”