Nota:
Guerra Fria, de 2018, é o segundo filme escrito e dirigido por Pawel Pawlikowski de volta à sua Polônia natal após ter se radicado na Inglaterra e feito todos os seus primeiros dez filmes como diretor ali.
E, exatamente como Ida, o filme de 2013 que marcou seu retorno à Polônia, este Guerra Fria tem sido um incrível sucesso de crítica. Como Ida, foi escolhido pela Polônia para representar o país na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Ida levou o cobiçadíssimo prêmio. Guerra Fria ficou entre os indicados – e ainda teve duas outras indicações ao Oscar, nas categorias de direção e fotografia.
Exatamente como Ida, Guerra Fria tem uma fotografia estupenda, maravilhosa, chocantemente bela, em um preto-e-branco que remete diretamente aos maiores clássicos de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Carl Dreyer, e também de seus conterrâneos Andrzej Wajda, Roman Polanski.
O diretor de fotografia de Guerra Fria, Lukasz Zal, foi um dos responsáveis pela fotografia de Ida, ao lado de Ryszard Lenczewski.
Desde que foi apresentando no Festival de Cannes, em maio de 2018, até fevereiro de 2020, Guerra Fria conquistou 45 prêmios, fora outras 112 indicações. Ao Bafta, por exemplo, teve indicações nas categorias filme em língua não inglesa, roteiro original e fotografia. Ao César e ao David di Donatello, respectivamente os Oscars da França e da Itália, teve indicação como melhor filme estrangeiro. Em Cannes, onde foi escolhido para participar da mostra competitiva, ganhou o prêmio de melhor direção.
Musicólogos pesquisando as canções do povo
Para quem prefere não ler sequer as sinopses, para aproveitar melhor os filmes, Guerra Fria demora um pouquinho a mostrar a que veio. Um letreiro informa o onde e o quando: “Polônia, 1949”. O filme começa mostrando pessoas do povo – no interiorzão do país mal refeito da invasão do exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial e em seguida da invasão do exército soviético que expulsou o nazista – cantando canções tradicionais, acompanhando-se de algum instrumento. Pessoas do povo, em formações variadas – um trio, uma moça sozinha… Tem de tudo.
Canções tradicionais, de domínio público, sem autor identificado, passadas oralmente ao longo das décadas de uma geração para outra, pais para filhos. Nos países de língua inglesa usa-se a expressão folk songs – que, mais que exatamente canções folclóricas, significa canções do povo. Nos anos 30 e 40, nos Estados Unidos, pesquisadores recolheram folk songs nas áreas rurais, nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos, onde era mais fácil preservar a tradição oral; o grande etnomusicólogo Alan Lomax, por exemplo, recolheu milhares de canções e entrevistas país afora para o Arquivo da American Folk Song do Congresso Americano e, com seu trabalho, ajudou a tornar conhecidos, entre tantos outros, os compositores e músicos Woody Guthrie, Burl Ives, Leadbelly, Robert Johnston, que tiveram imensa influência sobre os vários estilos musicais americanos da segunda metade do século XX.
Me lembrei de Alan Lomax e do trabalho dele e de outros musicólogos americanos quando, depois de uma certa surpresa nos primeiros minutos do filme, comecei a compreender que era exatamente isso que estava fazendo aquela equipe que vemos na tela: eram estudiosos de música recolhendo peças do folclore, da música do povo do interior da Polônia. Não tinha a menor idéia de que, naquele início do período comunista na Polônia, tivesse sido feito esse trabalho de garimpagem da arte, da canção popular.
A equipe é uma dupla, um homem e uma mulher. O homem, veremos logo depois, é, além de um musicólogo, também um grande maestro e um pianista virtuoso. Chama-se Wiktor – o mesmo nome do pai do diretor Pawel Pawlikowiski.
Wiktor (o papel de Tomasz Kotv) e sua companheira de trabalho Irena (Agata Kulesza) estão percorrendo em um caminhão boa parte do interior da Polônia gravando as pessoas do povo cantando canções tradicionais – mas seu trabalho inclui ainda mais do que isso. Eles estão encarregados de escolher, entre as pessoas que gravam país afora, os melhores cantores e dançarinos, para com um grupo deles formar um conjunto, uma companhia, uma trupe para se apresentar nas grandes cidades do país e também, se tudo desse certo, nos países amigos, em especial, é claro, o país mais amigo de todos, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
A política fica em segundo plano; é uma história de amor
O filme não se dá ao trabalho de classificar a função de Wiktor e Irena, mas eles poderiam ser definidos como os diretores artísticos do projeto, que é tocado em nome do Partido, o partido único, que ainda não tinha então o nome de Partido Operário Unificado. Kaczmarek (o papel de Borys Szyc) é o administrador, o gerente, o burocrata ligado ao Partido encarregado de tocar o projeto.
Logo Wiktor e Irena estarão diante de um figurão do governo, provavelmente um ministro, que pedirá que o grupo de cantores e dançarinos interprete alguma canção assim encorajadora, engajada… Irena responde com dureza que aquele grupo foi feito para cantar canções tradicionais e dançar danças tradicionais. Logo em seguida a trupe está apresentando, num grande teatro, uma canção em homenagem a Josef Stálin, enquanto um gigantresco painel com o rosto do ditador vai se desdobrando atrás do palco; Wiktor está regendo a orquestra – e não vamos voltar a ver Irena.
Os governos dos países comunistas europeus eram especialistas em fazer sumir do mapa as pessoas que não concordavam com seus desígnios.
Como se vê, há política, é claro, é óbvio, em Guerra Fria. Já há política nesse comecinho, e haverá política a rigor o tempo todo – mas ela ficará em segundo plano. O filme, como já foi dito, demora um pouco para dizer a que veio: ele veio para contar uma história de amor em tempos da guerra fria.
Ainda estamos aí com apenas uns 10 dos 89 minutos de duração de Guerra Fria quando duas mulheres se põem diante de Wiktor e Irena para cantar uma música. Na sequência imediatamente anterior, havíamos visto que uma daquelas duas, uma loura muito bonita, tinha se proposto a fazer um dueto com a outra. As duas cantam, Irena dispensa as duas rapidamente, mas Wiktor pede para a bela loura ficar e cantar alguma outra canção.
A bela loura, o papel de Joanna Kulig, tem o apelido de Zula – o mesmo da mãe do diretor Pawel Pawlikowiski. Guerra Fria é a história de amor entre Wiktor e Zula.
Começa bem, promete muito – depois se esfacela
Quem criou a história do filme foi o próprio Pawel Pawlikowiski. (Ele também assina o roteiro, ao lado de Janusz Glowacki e com a colaboração de um terceiro, Piotr Borkowski.) Nas informações sobre o filme, há elementos que indicam que o autor e diretor colocou na trama elementos da história real de seus pais – e da sua própria vida. Nascido em Varsóvia em 1957, Pawel Pawlikowski conheceu, é claro, a vida sob o regime comunista. E Wiktor e Zula, seus pais, tiveram uma relação conturbada, turbulenta, com separações e novas reuniões, e com temporadas em outros países – exatamente como os personagens centrais do filme.
Antes dos créditos finais, aparece a dedicatória: o realizador dedica o filme a seus pais.
Não há detalhes, mas o IMDb informa que os personagens principais do filme foram também inspirados na dupla que criou um famoso grupo de canto e dança folclórica na Polônia, Zespól Piesni i Tanca Mazowsze. Chamavam-se Tadeusz Sygietynski e Mira Ziminska, e no pós-guerra viajaram pelo país à procura de jovens cantores e dançarinos talentosos. No filme, o nome Mazowsze foi trocado por Mazurek.
Guerra Fria seria, portanto, um filme com muitos toques pessoais. Uma obra pessoal do diretor Pawel Pawlikowski.
Muito bem. Tudo isso posto, apresentado, informado, coloco agora minhas opiniões.
Exatamente como Ida, Guerra Fria é um filme de grande beleza visual, como já foi dito.
Exatamente como Ida, é um filme feito com um esforço absurdo para ser considerado grande.
Vale para ele muito do que falei sobre Ida: Meu Deus do céu e também da terra, como o diretor Pawel Pawlikowski faz força para que seu filme lembre Bergman, lembre Antonioni! Momentos longos em absoluto silêncio. A própria escolha de se fazer o filme em preto-e-branco, e em formato quase quadrado, indo contra toda a tendência do widescreen de 99,9% dos filmes de hoje em dia. Uma danada de uma vontade de berrar: olhem como sou genial, como faço diferente de tudo o que se faz atualmente, olhem como eu filmo parecido com Bergman, com Antonioni!
Tem encantado platéias de festivais mundo afora – o que é absolutamente natural, já que as platéias de festivais se encantam é mesmo com esse tipo de filme. Eu, no entanto, sou velhinho demais, já vi filme demais na vida. Esse esforço todo para parecer importante, para ser considerado grande, não me encanta – me cansa.
Isso para não falar do exagero de loucura, do exagero de infelicidade na vida do casal. Meu Deus, que insano esforço para ser infeliz, que demente mania aquele casal tem de fazer todas as opções erradas.
Como perfeitamente definiu a meu lado a Mary, que não tem site de filmes, não se obriga a escrever sobre cinema: Guerra Fria é um filme que começa muito bem, e promete ser uma beleza – até um determinado momento, o momento em que Wiktor decide fugir para o Ocidente, e fica à espera de Zula. Depois disso, o filme se esfacela.
Depois disso, reforço eu, é uma chatice atroz.
Anotação em agosto de 2019
Guerra Fria/Zimna Wojna
De Pawel Pawlikowiski, Polônia-Inglaterra-França, 2018
Com Tomasz Kotv (Wiktor), Joanna Kulig (Zula)
e Borys Szyc (Kaczmarek, o administrador), Agata Kulesza (Irena), Cédric Kahn (Michel, o produtor francês), Jeanne Balibar (Juliette, a poeta francesa), Adam Woronowicz (o cônsul), Adam Ferency (o ministro), Drazen Sivak (detetive 1), Slavko Sobin (detetive 2), Aloïse Sauvage (garçonete), Adam Szyszkowski (guarda), Anna Zagórska (Ania), Tomasz Markiewicz (líder da ZMP), Izabela Andrzejak (do grupo Mazurek), Kamila Borowska (Mazurek), Katarzyna Ciemniejewska (do grupo Mazurek), Joanna Depczynska (do grupo Mazurek), Gracjana Graczyk (do grupo Mazurek), Dominika Ladziak (do grupo Mazurek), Martyna Mankowska (do grupo Mazurek)
Roteiro Pawel Pawlikowski & Janusz Glowacki, com a colaboração de Piotr Borkowski
Baseado em história de Pawel Pawlikowski
Fotografia Lukasz Zal
Montagem Jaroslaw Kaminski
Casting Estelle Chailloux, Magdalena Szwarcbart
Produção Opus Film, Apocalypso Pictures, MK2 Productions, ARTE,
BFI Film Fund.
P&B, 89 min (1h29)
**1/2
Assisti esse filme ontem e concordo plenamente com vc. Estava maravilhoso e exatamente no momento que vc citou houve uma guinada decadente que me decepcionou. Poderia ser um filme excelente mas não é para todos os cinéfilos como nós que acompanhamos o cinema há muitos e longos anos. Infelizmente.