Louco por Saias / Girl Crazy

Nota: ★★★☆

(Disponível em DVD.)

Há momentos, situações, diálogos absolutamente, terrivelmente bobinhos, tolinhos, em Girl Crazy, no Brasil Louco por Saias (1943), o oitavo dos dez filmes da parceria Judy Garland & Mickey Rooney. Daqueles que chegam a deixar os espectadores (ou ao menos alguns deles) com vergonha. No entanto e ao mesmo tempo, é um filme delicioso de se ver.

Até mesmo Pauline Kael, a prima donna da crítica norte-americana, uma cricri dos diabos, encantou-se: “Em seus termos”, pontificou ela, “o filme é praticamente irresistível”.

A trama é assim:

O mocinho, Danny Churchill, Jr. (o papel de um Mickey Rooney com 23 aninhos e às vezes cara de uns 17), é um playboy de Nova York, girl crazy, louco por saias, como bem definem os títulos, que se diverte nos bons nightclubs da metrópole sempre em companhia de mocinhas lindas e é benquisto e bem recebido por todos nos lugares em que vai gastar o dinheiro do Papai, Mr. Churchill Senior (Henry O’Neill), um magnata da imprensa, dono de mais de uma dúzia de jornais.

Papai se cansa de ver nos jornais reportagens sobre as aventuras do filho nos nightclubs da cidade, e o envia para uma duríssima, super rígida Faculdade Cody de Minas e Agricultura, lá nos confins do Oeste. – “Lá tem ar fresco”, diz Papai para um chocado, atônito playboyzinho louco por saias. – “Há uma boa possibilidade de fazerem de você um homem por lá. E outra coisa. Só para você não levar um choque. Não tem nenhuma mulher lá, desde a Guerra Civil.”.

Quando estamos com 9 dos 99 minutos de duração do filme, Danny Churchill, Jr. está chegando à estação de trem de Codyville. De lá até a Faculdade são oito milhas, que o rapaz terá que percorrer a pé, carregando duas pesadas malas.

Só que…

Embora dono de jornais, Papai estava mal informado: há sim, uma garota na parada. Comparece sempre à Faculdade Cody de Minas e Agricultura a neta do reitor Phineas Armour (Guy Kibbee). Ela trabalha nos Correios e se encarrega da correspondência entre alunos e professores e o mundo lá fora. A garota, Ginger Gray, é o papel de Judy Garland, obviamente, já que este é um filme de Rooney & Garland…

Como resumiu com ironia e graça o crítico Leonard Maltin: “Rooney é enviado para escola no Sudoeste para esquecer as garotas, mas encontra Garland, e é isso aí”.

That’s it!

Uma dúzia de canções dos Gershwin. E mais Tommy Dorsey

Em 1943, o ano de lançamento do filme, Judy Garland estava com 21 aninhos, dois menos com seu parceiro Mickey Rooney, quatro a mais do que tinha quando foi lançado O Mágico de Oz (1939), aquela delícia que é um dos filmes mais adorados de todos os tempos. Já havia deixado para trás a condição de atriz infantil e, diacho, nunca esteve tão absolutamente linda, na minha opinião. Figura forte, de imenso, incomensurável carisma, magnetismo, voz extraordinária, imenso talento para a comédia assim como para o drama, Judy Garland não era propriamente uma mulher de beleza estonteante como – só para citar umas poucas – Ingrid Bergman, Grace Kelly, Elizabeth Taylor. Pois é. Mas, neste Girl Crazy aqui, está lindérrima.

E Judy Garland e Mickey Rooney, a fantástica química que tinham juntos – eles são apenas algumas das características que fazem de Girl Crazy um filme delicioso, “praticamente irresistível”, como diz Dame Kael.

Há a presença de Tommy Dorsey e sua orquestra em vários, vários momentos – e, creio que como em nenhum outro filme, neste aqui o band leader com quem Frank Sinatra iniciou a carreira como crooner atua como ator. Claro que ele interpreta a si mesmo.

Há as canções dos irmãos George & Ira Gershwin. Doze músicas dos Gershwin – e, portanto, doze das mais belas peças da Grande Música Americana. Só pela sequência em que Judy Garland canta “But Not for Me” já valeria a pena ver o filme, mas tem mais, tem muito mais. Algumas delas:

* “Embraceable You”, com Judy Garland;

* “I Got Rhythm”, tocada nos créditos iniciais e reprisada no grand finale com as vozes de Judy Garland e Mickey Rooney, e Tommy Dorsey & His Orchestra;

* “Fascinating Rhythm”, com Tommy Dorsey & His Orchestra, solo de Tommy Dorsey no trombone e Arthur Schutt ao piano  (sendo “dublado” por Mickey Rooney):

* “Treat Me Rough”, com June Allyson, Mickey Rooney, The Music Maids, The Stafford Sisters e Tommy Dorsey & His Orchestra;

* “Could You Use Me?”, com Judy Garland e Mickey Rooney;

* “Bidin’ My Time”, com Judy Garland, The King’s Men e coro;

* “Sam and Delilah”, com Tommy Dorsey & His Orchestra.

De quebra, como um elemento cômico, gozativo, há na trilha vários momentos em que ouvimos acordes de “Home on the Range”, aquela espécie de hino não oficial do Oeste, composto em 1904 por Daniel E. Kelley.

E, at last, but not at least, há o glorioso grand finale, cerca de sete minutos de magia, em que Judy Garland canta, roupa de cowgirl e coxinhas à mostra, acompanhada por Tommy Dorsey e sua orquestra, “I got rhythm” em uma festa, um grande rodeio, com cerca de uma centena de figurantes executando uma coreografia com a grife do mais fantástico encenador de números musicais para trocentos dançarinos ou mais, o mago Busby Berkeley (1895-1976).

Ah, meu, é irresistível – e o advérbio “praticamente” pode ser jogado na lata do lixo.

O grande Busby Berkeley gastou demais – e foi demitido

Girl Crazy começou a ser dirigido por Busby Berkeley, que vinha de três indicações seguidas, consecutivas, ao Oscar de melhor direção de dança, por Mordedoras de 1935/Gold Diggers of 1935, Cavadoras de Ouro de 1937/Gold Diggers of 1937 e Aprenda a Sorrir/Varsity Show. Berkeley começou pelo final: antes de mais nada, filmou aquele fantástico número de “I Got Rhythm” que é o grand finale do filme e leva sua marca registrada – e aí foi demitido pelo produtor Arthur Freed, e substituído por Norman Taurog.

Falou-se que os motivos da demissão de Berkeley tinham a ver com o fato de que ele gastou muito mais do que o orçamento previa, e demorou muito mais do que determinava a programação do estúdio. Falou-se também que houve um embate duro entre Judy Garland e ele. A estrela se queixava dos métodos de trabalho do diretor, das suas exigências como coreógrafo, de todo o esquema exaustivo de filmagem. Mickey Rooney, então a principal estrela da MGM, apoiou as queixas da atriz – e aí não tinha mais jeito.

Bem. Mas nem Norman Taurog nem o produtor Arthur Freed são loucos, e o que Busby Berkeley já havia filmado foi preservado e usado na montagem final do filme. E então o fato é que dá para a gente ver, hoje, do que a jovem Judy Garland estava falando: na complexa coreografia do grand finale, tanto Ginger Gray quanto Danny Churchill, Jr. são várias vezes lançados ao ar e carregados por dançarinos interpretando cowboys que os seguram pelos pés, enquanto outros cowboys disparam tiros para o alto. O resultado é ótimo de se ver – mas para os dois jovens atores deve ter sido de fato um suplício filmar aquilo.

O estúdio evidentemente não pretendeu esconder a verdade óbvia de que o filme tem os dedos do grande coreógrafo e diretor. Nos créditos iniciais é dito, em letras grandes, que o número “I Got Rhythm” é dirigido por Busby Berkeley.

Eu gostaria muito de um dia eu me dedicar a mergulhar nos filmes coreografados e/ou dirigidos por Busby Berkeley. O cara é um gênio.

É necessário registrar que o diretor Norman Taurog (1899-1981) teve uma carreira longa e sólida. Sua filmografia como diretor tem 185 títulos, inclusive alguns grandes sucessos de Elvis Presley – Feitiço Havaiano/Blue Hawaii (1961), Garotas e Mais Garotas/Girls! Girls! Girls! (1962) e Loiras, Morenas e Ruivas/It Happened at the World’s Fair (1963). Em 1931, ganhou o Oscar de melhor diretor por Skippy.

Os créditos iniciais também registram, em letras pequenas, que Charles Walters foi o diretor das “danças e da dança solo de Miss Garland”. Charles Walters (1911-1982) dirigiu 30 filmes, ao longo das décadas de 40 a 60, inclusive Desfile de Páscoa/Easter Parade (1948), Alta Sociedade/High Society (1956), Elas Querem é Casar (1959) e Já FomosTão Felizes/Please Don’t Eat the Daisies (1960).

Só tem gente boa nos créditos de Girl Crazy.

O produtor Arthur Freed ((1894-1973) era um craque – e musical era com ele mesmo. Foi o responsável pela produção de, entre outros, Agora Seremos Felizes/Meet Me in St. Louis (1944), O Pirata (1948), Desfile de Páscoa (1948), Um Dia em Nova York/On the Town (1949), Núpcias Reais (1951), Cantando na Chuva (1952), A Roda da Fortuna/The Band Wagon (1943), A Lenda dos Beijos Perdidos (1954).

E, at last but not at least, Sinfonia de Paris/An American em Paris, o grande clássico de 1951 de Vincente Minnelli que, como este Girl Crazy aqui, tem trilha sonora de George & Ira Gershwin.

A peça teatral deu origem a três filmes – e um novo musical

Os irmãos George & Ira Gershwin assinam a autoria da peça Girl Crazy, que teve o libreto escrito por Guy Bolton and John McGowan.

Foi a 11ª das peças musicais com composições de George Gershwin. Estreou na Broadway em 1930, marcando a estréia no palco de Ethel Merman ((1908-1984), atriz hoje menos lembrado do que mereceria, e a transformação em estrela de uma então jovem atriz e bailarina de imenso talento – Ginger Rogers.

Sim: na peça teatral, Girl Crazy são duas as personagens femininas importantes. Há Kate Forthergill, uma showgirl da Broadway que Danny leva para o Oeste (o papel de Ethel Merman) e há Molly Gray, a moça que trabalha no Correios, por quem Danny se apaixona.

Na montagem original, a peça, um grande sucesso, teve 272 apresentações. Nada menos que 62 anos depois, em 1992, seria adaptada para um novo musical, Crazy for You, que venceu o Tony de melhor musical e teve nada menos de 1.622 apresentações.

A peça original foi filmada apenas dois anos depois de encenada pela primeira vez na Broadway: em 1932, foi lançado o filme Girl Crazy, com direção de William A. Seiter e um monte de nomes que não reconheço no elenco – Eddie Quillan como Danny, Arline Judge como Molly Gray.

Em 1965, a MGM refilmaria a peça, com direção de Alvin Ganzer e Connie Francis no papel principal. O título foi mudado para When the Boys Meet the Girls; no Brasil, Quando Eles e Elas se Encontram…

Para este filme produção A de 1943 aqui, os roteiristas Fred Finklehoffe, Dorothy Kingsley, Sid Silvers e William Ludwig fizeram mudanças na trama, e sumiram com a personagem Kate Forthergill, concentrando as atenções na moça dos Correios. O sobrenome dela, Gray, foi mantido no filme – mas o prenome Molly foi substituído por Ginger. Uma homenagem à atriz que fez o personagem no musical da Broadway e com ele obteve o passaporte para se transformar em estrela de Hollywood.

De Molly Gray para Ginger Gray…

Em sua autobiografia, Ginger Rogers, essa atriz fantástica que dançou alguns centímetros acima do chão, quase no céu – heaven, I’m in heaven – com Fred Astaire, e soube provar que sabia fazer drama em filmes como A Viúva Negra/Black Widow (1954) e Ratos Humanos/Tight Spot (1955), escreveu que, uma noite, seu parceiro Allen Kearns, que fazia Danny, errou a fala e, em vez de dizer “Molly, I love you”, disse “Ginger, I love you”. A platéia morreu de rir da pisada na bola do ator – e foi tanto, mas tanto, que decidiram repetir o “erro” nas apresentações seguintes…

Não sei, é claro, o eventual leitor – mas eu adoro essas historinhas de bastidores…

O IMDb traz 33 itens na página de Trivia – informações, curiosidades – sobre o filme. Essa aí é apenas uma delas.

Não está na página de Trívia, mas, como já foi dito na abertura do texto, este Girl Crazy foi o oitavo filme da parceria Mickey Rooney & Judy Garland. Ao todo, foram dez filmes juntos, entre 1937, o ano de Menino de Ouro/ Thoroughbreds Don’t Cry, e 1948, em que fizeram Minha Vida é uma Canção/Words and Music.

Não foram apenas Leonard Maltin e Pauline Kael que gostaram de Girl Crazy. O filme tem 100% de aprovação dos críticos no site agregador de opiniões Rotten Tomatoes.

Não há como resistir…

Anotação em maio de 2024

Louco por Saias/Girl Crazy

De Norman Taurog (e Busby Berkeley), EUA, 1943

Com Mickey Rooney (Danny Churchill, Jr.),

Judy Garland (Ginger Gray)

e Gil Stratton (Bud Livermore), Robert E. Strickland (Henry Lathrop), “Rags” Ragland (Rags), June Allyson (Specialty), Nancy Walker (Polly Williams), Guy Kibbee (o reitor Phineas Armour), Tommy Dorsey and His Orchestra (eles mesmos), Frances Rafferty (Marjorie Tait, a filha do governador), Howard Freeman (governador Tait), Henry O’Neill (Mr. Churchill, Sr.), Sidney Miller (Ed), Eve Whitney (showgirl morena), Carole Gallagher (loura), Kay Williams (loura), Jess Lee Brooks (Buckets),

Roger Moore (cameraman), Charles Coleman (Maitre d’Hotel)

Roteiro Fred Finklehoffe, Dorothy Kingsley, Sid Silvers, William Ludwig

Baseado na peça de George e Ira Gershwin, Guy Bolton e Jack McGowan

Fotografia William Daniels, Robert Planck

Música George e Ira Gershwin

Direção musical George Stoll

Montagem Albert Akst

Direção de arte Cedric Gibbons

Coreografia Charles Walters, Busby Berkeley

Produção Arthur Freed, MGM.

P&B, 99 min

***

Título em Portugal: “Doidinho por Saias”.

 

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