Sua Única Saída / Pursued

2.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 3/2023.)

Em 1947, o grande Raoul Walsh dirigiu Teresa Wright, Robert Mitchum e Judith Anderson (os nomes aparecem nessa ordem, nos créditos e nos cartazes originais) em Pursued, perseguido, no Brasil Sua Única Saída. É um western, mas a rigor é um baita dramalhão, uma coletânea de dramas familiares – até o caso de amor entre os dois protagonistas é um drama familiar. Alguém usou para ele a expressão “western freudiano”.

O western é um gênero em que cabe de tudo. Política, metáfora política, como Matar ou Morrer/High Noon (1952). Estudo sobre o ódio, o instinto de vingança, o racismo, como Rastros de Ódio/The Searchers (1956). Metáfora sobre religião, como O Purgatório/Purgatory (1999). O protagonismo feminino, a força das mulheres, mesmo em sociedades e ambientes absolutamente machistas, como A Renegada/Woman They Almost Lynched (1953) e Johnny Guitar (1954). A divisão entre quem defende a barbárie e quem prefere a civilização, como Consciências Mortas/The Ox-Bow Incident (1942).

Por que não caberiam o melodramão, os dramas familiares, como Almas em Fúria/The Furies (1950), Um Pecado em Cada Alma/The Violent Men (1955) e este Sua Única Saída/Pursued aqui?

Anthony Mann, um dos grandes realizadores de westerns nos anos dourados de Hollywood, disse, numa entrevista: “Você pode pegar qualquer dos grandes dramas, não importa se é Shakespeare ou uma das peças gregas. Tudo. Sempre se pode situá-los no Velho Oeste. De algum modo ganham vida, e esse tipo de paixão, esse drama, você pode ter parricídio, qualquer tipo de homicídio no Velho Oeste. E vai dar certo, porque é onde toda a ação se desenrola.”

Raoul Walsh (1887-1980), 140 títulos como diretor, entre eles Pacto de Honra/Saskatchewan (1954), Nas Garras da Ambição/The Tall Men (1955), Um Clarim ao Longe/A Distant Trumpet (1964), é um realizador de respeito. “Sua carreira resume a história de Hollywood das origens a 1965”, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “Ele trabalhou para todas as companhias (Paramount, Fox, MGM, Universal, Warner, RKO, United Artists, Columbia); dirigiu todos os grandes atores (Flynn, Cooper, Mitchum, Fairbanks, Gable, Wayne, Cagney, Raft, Bogart, Kirk Douglas, Peck, Ladd) e todos os coadjuvantes (Elam, Van Cleef. G. Roland); abordou todos os gêneros (western, filme policial, comédia musical, história de capa e espada, espetáculo oriental, grandes produções bíblicas).”

Este western-melodramão aqui é produção bem cuidada, com trilha sonora de Max Steiner (um tanto estridente, como outras do celebrado compositor) e uma esplendorosa fotografia em preto-e-branco do mestre James Wong Howe (nove indicações ao Oscar, dois troféus levados para casa), explorando com maestria as paisagens belíssimas, impressionantes, das formações rochosas do Novo México.

Pois é. No entanto…

Um bom roteirista e escritor. Mas aqui ele errou a mão

Não me pareceu um bom filme este Pursued – e o problema, na minha opinião, é facilmente identificável. O problema é a história. A tal da trama, o enredo, o entrecho.

É um roteiro original, ou seja, uma história escrita diretamente para o filme. O autor é – como tanta gente envolvida na produção, à frente e atrás das câmaras – um profissional conceituado, respeitado. Niven Busch (1903-1991) tem 30 títulos como roteirista em sua filmografia, inclusive o clássico noir O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice (1946) e o clássico musical Na Velha Chicago/In Old Chicago (1938),

Mais ainda: com os méritos como roteirista já reconhecidos, Niven Busch passou a escrever romances. Em 1944, já casado com a jovem estrela ascendente Teresa Wright, lançou Duel in the Sun – e, quando o todo-poderoso produtor David O. Selznick se mostrou disposto a fazer um filme baseado no livro, Teresa Wright foi naturalmente cogitada para o papel central – que acabou indo para a atriz por quem Selznick estava apaixonado, Jennifer Jones.

É também de autoria de Niven Busch o romance The Furies – o que virou o excelente filme de Anthony Mann já citado aqui, Almas em Fúria – um western que era também um grande drama familiar, um melodramão, como este Pursued aqui.

Só que, ao criar a trama deste Pursued, Niven Busch, na minha opinião, errou na mão. E errou feio.

Uma mulher e homem criados como irmãos

O filme abre com uma sequência visualmente bela, toda feita com planos gerais da ampla paisagem do Novo México (um letreiro informa que estamos no território do Novo México, na virada do século – não havia necessidade de explicitar que era do XIX para o XX), em que vemos, pequenininha, uma pessoa a cavalo, em velocidade.

Veremos que é Thor Callum – o papel de Teresa Wright, lindíssima aos 29 anos de idade no ano do lançamento do filme, 1947, famosa e respeitada depois de Rosa de Esperança/Mrs. Miniver (1942), A Sombra de uma Dúvida /Shadow of a Doubt (1943) e Os Melhores Anos de Nossa Vida (1946), Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo primeiro.

Ela procura e encontra a casa abandonada, semidestruída de um rancho, onde está escondido Jeb Rand – o papel de Robert Mitchum, 30 anos de idade, 31 filmes já no currículo, carreira em grande ascensão,

Aquela casa em ruínas havia sido a dele quando era bem garotinho, aí de uns três anos. Ele tinha algumas poucas lembranças daquele passado já bem distante – lembranças que volta e meia o assaltavam em pesadelos e também em vigília, ao longo de toda a vida. Havia ali um buraco no chão da sala, onde ele havia sido colocado – e ele se lembrava de ruídos altos e o espocar de luzes.

Jeb começa a contar isso para Thor assim que ela chega à casa em ruínas. Que sempre sonhava que estava ali no buraco do chão da sala e havia ruídos altos e o espocar de luzes. Tiros, obviamente.

Jeb conta então que se lembrava vagamente de que uma mulher o havia resgatado daquele buraco – a senhora Callum (o papel de Judith Anderson).

A senhora Callum o havia pego lá na sua casa e o levado para a casa dela, e o colocado junto com seu filho mais velho, Adam, e a mais nova, que era exatamente da mesma idade dele, Jeb – Thor, exatamente Thor.

E ela havia criado os três como se todos fossem filhos dela.

Depois que o filme terminou fiquei pensando: mas diabo: se Jeb e Thor viveram toda a vida juntos, desde que a sra. Callum o resgatou e o levou para sua própria casa, quando os dois tinham ali por volta de três anos, por que raios eles nunca haviam conversado sobre tudo aquilo? Por que raios só ali, naquele momento, os dois já por volta dos 30 anos, ele fugido e escondido exatamente nas ruínas da casa que havia sido de seus pais, foi que Jeb contou para Thor as lembranças que ele guardava da sua mais remota infância?

Uma antiga disputa de famílias

Isso aí que eu relatei acontece, insisto, bem no iniciozinho dos 101 minutos do filme. Jeb vai contando seu passado para a mulher que foi criada como sua irmã a vida toda – e o filme, claro, mostra o que ele vai contando. De tempos em tempos, voltamos para aquela situação inicial, Jeb e Thor na casa em ruínas, ele contando para ela – e bem rapidamente voltamos de novo para o flashback que vai relatando a história da senhora Callum e seus três filhos, Adam e Thor, de sangue, e Jeb, de criação.

Há uma sequência em que Adam está com 10 anos e Jeb e Thor com 8 (interpretados, então, pelos garotos Charles Bates, Ernest Severn e Peggy Miller). Jeb está passeando pelo campo, perto do rancho da mãe adotiva, em um potrinho que pertencia a Adam. Um homem mira de longe com um rifle e atira – e mata o potro.

Pouco depois, os garotos Jeb e Adam lutam um contra o outro, enquanto Thor tenta separá-los e, não conseguindo, chama a mãe.

A senhora Callum reúne os três e tem uma conversa paciente com eles. Tenta fazer com que eles entendam que são irmãos, e que nada, no rancho, pertence a um ou a outro – tudo pertence igualmente aos três.

Ela diz para os garotos que quem atirou é provavelmente um caçador – mas na verdade desconfia que o tiro que matou o potro provavelmente era para matar o menino Jeb. Vai à cidade, e vê que sua suspeita estava certa: o atirador era Grant Callum (o papel de Dean Jagger), que vem a ser o irmão do falecido marido dela. O espectador fica sabendo então que Grant Callum tem ódio total e absoluto da família de Jeb, os Rand. Os motivos, isso o filme vai escondendo até o final, como se, além de um western e um melodramão familiar, fosse também um filme de mistério, um whodunit, quem-matou-e-por-quê.

Há um corte no tempo, para quando os três já estão aí entre 18 e 20 anos de idade – e Jeb já é interpretado por Robert Mitchum, Thor por Teresa Wright e Adam por John Rodney. Os Estados Unidos da América estão em guerra contra os espanhóis, e os jovens estão sendo convocados. Um dos dois rapazes do rancho terá que se alistar, anuncia lá um militar.

Jeb propõe que a coisa seja decidida no cara ou coroa. Thor faz o cara ou coroa, e dá que Jeb é que tem que ir para a guerra.

Diante disso, Jeb e Thor revelam cada um para o outro, e os dois para o espectador mais distraído que ainda não havia sacado o óbvio: estão apaixonados.

Mais que depressa, o autor e roteirista Niven Busch bota Thor para argumentar, não sei se mais para ela mesma, para Jeb, para o espectador ou para os censores do Hays Office: nós não somos irmãos de sangue, nós nunca fomos irmãos.

Os dois irmãos de criação nunca se deram bem

Eu, pessoalmente, acho interessante como a sociedade, as pessoas em geral enxergam a questão do incesto. Formulam-se teses a respeito da questão de acordo com os interesses de cada um. Woody Allen foi acusado de ter uma relação incestuosa com Soon-Yi Previn – embora ele não tenha sido jamais pai adotivo dela, já que o pai adotivo foi o marido anterior de Mia Farrow, o maestro André Previn, e ele e Mia Farrow não tenham jamais morado juntos, sob o mesmo teto. Cada um tinha a sua casa.

No caso em questão no filme, é bem verdade: Jeb e Thor não eram irmãos de sangue – embora tivessem vivido na prática como irmãos a partir dos três anos de idade, e portanto ao longo da vida toda. Então no caso deles não seria incesto? Ah, incesto é só quando é uma questão biológica, de sangue, de DNA? Bem, nesse caso, porque tanta gente implicou com Woody Allen quando ele se casou com a filha adotiva da sua mulher que não vivia com ele na mesma casa?

Bem. Deixando de lado essas elocubrações e ficando só no filme, a verdade é aquilo que falei antes: até mesmo a história de amor que é um dos temas básicos, fundamentais da trama, é um drama familiar.

Tenho bastante preguiça de relatar um pouco mais da trama, mas creio que é necessário registrar que, na Guerra Hispano-Americana de 1898, Jeb chega a cabo, é ferido em batalha e volta para sua cidade no interior do Novo México como um herói. Durante sua ausência, Adam havia trabalhado duro e transformado o rancho em um negócio próspero e bastante lucrativo.

Fica absolutamente claro que Jeb e Adam, irmãos de criação, nunca se deram bem, nunca teriam condição de se darem bem. São explosivamente antípodas. Como se Grant Callum, o irmão do falecido marido da senhora Callum, tivesse razão na compreensão de que o mundo era pequeno demais para abrigar Callums e Rands.

O New York Times desceu a lenha no filme

Isso tudo aí que relatei não chega propriamente a ser spoiler. É só o começo da história. Haverá muito, muito mais drama, briga, desentendimento e morte pela frente.

Exatamente o que havia acontecido na casa dos Rand quando Jeb era garotinho de uns três anos, por que seus pais haviam sido mortos, porque esse cunhado da senhora Callum queria porque queria matar Jeb, isso tudo só é revelado no final da narrativa – e, obviamente, seria um spoiler absurdo, que eu jamais faria.

O que eu acho é que é uma história que pesa demais no melodrama, que exagera demais, demais, demais da conta no melodrama, e tropeça feio naquele absurdo que já apontei mais atrás: como era possível que Jeb e Thor tivessem passado toda a vida juntos e Jeb jamais tivesse contado para ela o que só resolve contar quando está escondido, fugitivo, nas ruínas da casa que havia sido a da sua família quando ele era garotinho?

Ah, meu, papo furado do cacete!

“As estranhas e raivosas ações que acontecem nesse drama parecem decididamente desconcertantes e absurdas”, escreveu o crítico Bosley Crowther no New York Times, na época do lançamento do filme. “O que é tão significativo sobre um sujeito – mesmo que ele possa ter sido uma criança adotada – que acha a vida um tanto opressiva em um rancho do Novo México? Como é possível dizer sem revelar aquilo que só é revelado bem no final, a premência dessas questões pesadas é dura de entender enquanto o filme vai rolando. E é bastante difícil sentir qualquer simpatia pelo herói, que parece entediado por todas as suas feridas. Isso talvez seja porque Robert Mitchum, que interpreta o herói, é um cavalheiro muito rígido e não nos dá mais animação do que uma Frigidaire em modo ‘descongela’.”

Uau, meu, isso é que é dar pau em um filme…

Euzinho aqui, quieto no meu cantinho, como dizia o Aloísio Maranhão, fiquei muito impressionado com a beleza e o talento de Teresa Wright – e em como era careteiro o grande Robert Mitchum…

Ah, falta uma outra opinião.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 ao filme e escreveu o seguinte: “Austero western sobre Mitchum determinado a encontrar os assassinos de seus pais; muito boas interpretações, cheio de suspense.”
“Muito boas interpretações, cheio de suspense” é opinião, e opinião é assim mesmo, cada um tem a sua. Mas, definitivamente, este não é um filme sobre o personagem de Mitchum determinado a encontrar os assassinos de seus pais. Jeb Rand, diabo, sequer sabia que seus pais haviam sido assassinados – ele só vai compreender isso no finalzinho do filme. Não poderia, portanto, estar determinado a encontrar os assassinos deles. Os assassinos deles é que estavam o tempo todo determinados a encontrá-lo.

A crítica de Maltin consegue ser pior que o filme…

Anotação em março de 2023

Sua Única Saída/Pursued

De Raoul Walsh, EUA, 1947

Com Teresa Wright (Thorley Callum),
Robert Mitchum (Jeb Rand),
Judith Anderson (sra. Medora Callum, mãe de Thor e Adam),

e John Rodney (Adam Callum), e Dean Jagger (Grant Callum, o cunhado da sra. Callum), Alan Hale (Jake Dingle, o dono do cassino), Harry Carey Jr (Prentice McComber, o rapaz que paquera Thor), Clifton Young (o sargento), Ernest Severn (Jeb aos 8 anos), Charles Bates (Adam aos 10 anos), Peggy Miller (Thor aos 8 anos), Norman Jolley, Lane Chandler, Elmer Ellingwood, Jack Montgomery, Ian MacDonald (os Callums), Ray Teal (capitão do Exército), Virginia Brissac (mulher no casamento)
Argumento e roteiro Niven Busch
Fotografia James Wong Howe
Música Max Steiner
Montagem Christian Nyby
Direção de arte Ted Smith
Figurinos Leah Rhodes
Produção Milton Sperling, United States Pictures, Warner Bros.

P&B, 101 min (1h41)

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