Dinheiro Maldito / Private Hell 36

Nota: ★★½☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em outubro de 2021. )

Lilli Marlowe usa um bracelete que imita jóias de verdade; custou US$ 11 e uns quebrados, ela mesma diz para Cal Bruner, sargento da Polícia de Los Angeles. Mais tarde, ela, Cal e também o espectador verão um bracelete quase idêntico ao dela, no braço esquerdo de uma mulher rica. Quase idêntico, só que com diamantes de verdade – uma jóia de vários milhares de dólares.

Jack Farnham, também sargento da Polícia, parceiro de Cal, aproveita que está mesmo a serviço no hipódromo de Los Angeles para tentar uma fezinha: gasta US$ 2 apostando num cavalo. Na fila ao lado, um homem segura um grande maço de dinheiro – a câmara mostra o monte de notas graúdas na mão do sujeito em close-up, como já havia mostrado a bijouteria de Lilli e o bracelete caríssimo da mulher rica. Naquele maço de notas há provavelmente mais dinheiro do que o sargento Jack ganha o ano inteiro para sustentar sua mulher Francey e filhinha bebê.

Lilli Marlowe e os sargentos da Polícia Cal e Jack são os personagens centrais de Private Hell 36, um policial com atmosfera noir de 1954 que no Brasil teve o título forte, um tanto óbvio e um tanto spoiler de Dinheiro Maldito.

Os atores que fazem Cal e Jack são bem pouco conhecidos hoje – Steve Cochran e Howard Duff, respectivamente. Francey, a mulher de Jack, é interpretada pela bela Dorothy Malone. Lilli Marlowe – nome tão falso quanto o bracelete que usa – é o papel da maravilhosa, extraordinária Ida Lupino.

De todos os nomes que aparecem nos créditos iniciais, Ida Lupino é sem dúvida o mais estelar. Mas há pelo menos dois outros nomes importantes: o de Don Siegel, que dirige o filme com mão firmíssima, e de David Peckinpah. Se de imediato não cair a ficha na cabeça do cinéfilo, teria que ser lembrado de que o nome completo do grande Sam Peckinpah é David Samuel Peckinpah; em 1954 ele estava em início de carreira, e aparece nos créditos como diretor de diálogos.

Só hem na metade o filme revela o cerne da trama

Não chega a ser, na minha opinião, um grande ou importante filme. Mas tem qualidades, sem dúvida alguma. Quem gosta do cinema dos anos de ouro de Hollywood e do gênero noir seguramente terá prazer em vê-lo. E há histórias em torno dele que são fascinantes.

O roteiro é daquele tipo que demora bastante para abrir para o espectador qual é exatamente o cerne da trama. Só quando o filme está com uns 40 dos 81 minutos de duração é que, depois de uma sequência de perseguição de carro por uma estrada sinuosa, de apenas duas pistas, que se transforma numa estrada de terra, finalmente fica claro qual é o ponto central de tudo.

Isso aí não é uma crítica, uma reclamação: é a descrição factual da forma com que o roteiro foi elaborado. É um estilo, um jeito, uma opção dos autores. Não há mal nenhum nisso.

A questão é apenas que os resumos da história, as sinopses, acabam sendo spoilers. Ora bolas: os roteiristas e o diretor quiseram fazer assim, optaram por explicitar o coração da matéria apenas depois da metade do filme. Se a sinopse conta qual é esse cerne da coisa, joga fora o jeito com que os realizadores quiseram contar sua história, diacho.

A sinopse do IMDb tem apenas uma única frase, uma única sentença, de, segundo o Word, 124 caracteres, contando os espaços. A primeira frase do verbete de Leonard Maltin sobre o filme tem 106 caracteres; inclui uma avaliação – “well-balanced account”, relato bem balanceado, equilibrado – e, como a sinopse do IMDb, é spoiler.

A frase do IMDb e a frase do Maltin estragam o prazer que o espectador teria em ir descobrindo as coisas à medida em que a narrativa vai se desenvolvendo. Frustra a vontade dos realizadores da história, que era contar daquela maneira, demorando para revelar as coisas.

Eu mesmo fiz a besteira de olhar a sinopse do IMDb antes de ver o filme. Passei os primeiros 40 minutos esperando a hora em que iria aparecer na tela aquela informação que a porcaria da sinopse do IMDb já havia me antecipado.

Um ano após um assalto, aparece uma das notas roubadas

O filme começa em Nova York. Os primeiros poucos minutos do filme mostram – de forma brilhante – que houve um assalto, no qual foram roubados US$ 300 mil, uma absoluta fortuna naquele ano de 1954 em que o filme foi lançado.

Aí há um corte, e todo o resto do filme se passa do outro lado do país, a 4 mil quilômetros de distância em linha reta (por terra, são cerca de 4,5 mil quilômetros), em Los Angeles.

Há um narrador aí nessa abertura. É fascinante. Tomada geral dos prédios de Manhattan à noite. Tomada de um prédio específico. Trilha sonora com melodia com acordes típicos de momento de tensão, suspense. Tomada em close-up do marcador do elevador, um daqueles marcadores bem antigos, com uma grande seta percorrendo um espaço de 180 graus, do térreo ao último andar – o marcador indica que o elevador está no térreo. Plano americano de um homem com uniforme de porteiro ou ascensorista; a câmara se abaixa e mostra que ele segura uma pasta gorda. Acorde mais alto, a câmara se abaixa mais e vemos um homem morto no chão do elevador.

Plano de conjunto, o homem de uniforme corre para o carro da fuga que o espera.

Volta a mesma tomada geral dos prédios de Manhattan com centenas de janelas iluminadas. A voz do narrador: – “O crime: um assassinato. O motivo: dinheiro. US$ 300 mil que não chegaram a ser depositados no banco conforme seria o esperado. O lugar: New York City. O assassino e o dinheiro desapareceram. Um trabalho feito a sangue frio.”

Uma pausa. E o narrador prossegue, com aquela voz emproada dos antigos, mas muito antigos homens do rádio: – “E foi só um ano mais tarde que, na cidade de Los Angeles, o crime voltou à cena. O detetive-sargento Calvin Bruner, do Departamento de Polícia de Los Angeles, estava trabalhando em um caso de assalto. Havia terminado seu turno, estava a caminho de casa, quando seus olhos e ouvidos treinados o fizeram parar…”

Cal Bruner (o papel, repito de Steve Cochran) passava diante de uma farmácia, e percebeu algo errado.

Aperto aqui a tecla de fast forward, e tento relatar mais rapidamente o início da trama criada por Collier Young e Ida Lupino, os dois também autores do roteiro.

Cal entra pela porta dos fundos da farmácia, mata um ladrão e prende o outro. Retira dos ladrões o dinheiro que eles haviam roubado do caixa, após dominarem o comerciante. Na delegacia, para onde vai com o ladrão preso e o comerciante agradecido, o capitão Michaels (oi papel de Dean Jagger) ouve o relato, manda os técnicos examinarem o local – e aí se descobre que uma nota de US$ 50 que havia sido tirada do caixa da farmácia pelos ladrões era uma das notas marcadas que haviam sido roubadas um ano antes em Nova York.

Com a ajuda dos registros, o farmacêutico consegue identificar o homem que deu a ele aquela nota em pagamento por medicamentos. Destacados para ir atrás de quem havia usado aquela nota, o próprio Cal e seu parceiro e amigo Jack Farnham (o papel, repito, de Howard Duff) chegam ao sujeito indicado pelo farmacêutico – um barman de um bar-boate chamado Emerald Club.

O barman (o papel de Dabbs Greer) conta que estava precisando de dinheiro, e havia pedido algum emprestado à sua colega Lilli – e ela havia dado a ele aquela nota de US$ 50. Lilli, explica o barman, é a cantora da casa, que chega às 17h – ih, olha ela aí chegando.

Quando o filme de 81 minutos está com 17, surge em cena Lilli, a cantora do Emerald Club, na pele de Ida Lupino, estrela, co-autora do roteiro original e dona da companhia produtora do filme.

Prometi apertar a tecla de fast-forward, e então vamos lá:

Depois de um bom tempinho se negando a dar objetivamente as informações, Lilli finalmente abre o jogo. Sim, lembra-se bem de quem foi o cara que havia dado a ela a gorjeta de US$ 50. Afinal, não é todo dia que alguém dá a ela uma nota de US$ 50. Era um sujeito que estava muito bêbado, e a aplaudira demais quanto ela cantara “Smoke gets in your eyes”. Pedira para ela cantar de novo, e de novo, e de novo – e aí dera a gorjeta graúda.

Uma outra nota graúda daquelas marcadas, do assalto de um ano antes do outro lado do país é encontrada no hipódromo de Los Angeles. O capitão Michaels pede a Lilli – a única pessoa que havia visto o homem que dera a nota marcada de US$ 50 – que auxilie a polícia. Que vá às corridas no hipódromo com os sargentos-detetives Bruner e Farnham, circule por lá, e tente localizar o sujeito da gorjeta por “Smoke gets in your eyes”.

Dorothy Malone está linda, mas o brilho é de Ida Lupino

OK, aqui já dá pra tirar o dedo da tecla de avanço rápido.

Há várias sequências dos três personagens centrais da história no hipódromo de Los Angeles, tentando achar aquela agulha no palheiro. Entre elas estão as que descrevi na abertura deste texto – o bracelete de diamantes, a mão com um maço imenso de notas.

Ficamos conhecendo a casa, a mulher, a filha de Jack Farnham. Francey é uma mulher que sabe que não tem estofo para ser casada com um policial – tem absoluto pavor da possibilidade de Jack ser morto numa ação qualquer de enfrentamento de bandidos. Demonstra ser muito apaixonada pelo marido.

Dorothy Malone – que bela mulher, que presença forte. Quando eu era bem garoto, fiquei absolutamente deslumbrado com Dorothy Malone (na foto acima) em O Último Pôr-do-Sol, o excepcional western de 1961 dirigido por Robert Aldrich, em que seu personagem, Belle Breckenbridge, casada com o de Joseph Cotten, é amada e disputada pelos personagens de Rock Hudson e Kirk Douglas. Ela tornou a me fascinar como a loucamente infeliz filha do milionário do petróleo no melodramão de Douglas Sirk Palavras ao Vento/Written in the Wind (1956), também com Rock Hudson.

Mas o papel de Dorothy Malone aqui não é tão importante assim– apenas o da mulher de um dos dois policiais protagonistas da história.  Quem brilha mais na tela, claro, é Ida Lupino. Não apenas porque acontece de ser a dona da produtora e a co-autora do roteiro original, mas também porque era mesmo a grande estrela, e a personagem feminina central da história.

Quando o filme está ali com 40 minutos – bem na metade –, Lilli Marlowe-Ida Lupino finalmente identifica o homem que havia dado a ela a tal nota der US$ 50. E então os policiais Cal e Jack passam a perseguir o carro em que está o sujeito que usou para dar gorjeta a uma cantora de nightclub de Los Angeles uma nota que estava na pasta roubada um ano antes em Nova York.

Há a perseguição de carro, aquele barulho dos pneus cantando nas curvas, aquele troço pelo qual os vários cinemas americanos, até mesmo o bom cinema americano, tem absoluta paixão, obsessão. Aí o carro do sujeito que Lilli havia identificado fica sem controle, sai da estrada e cai numa imensa ribanceira.

Cal e Jack descem a ribanceira. O homem está morto. Uma mala havia sido expelida do carro e se aberto no chão. Dentro dela há uma absurda quantidade de notas graúdas de dólar. Estamos com uns 45 minutos do filme de, repito ainda uma vez, 81.

Um policial sobre seres humanos comuns

Quando terminei de ver este Dinheiro Maldito/Private Hell 36, não consegui decidir se essa história toda aí, até o momento em que há a perseguição de carro, o acidente, e vemos a mala cheia de dinheiro, é muito bem bolada, interessante, fascinante mesmo, ou uma porcaria de uma trama absolutamente sem sentido.

Diacho: se era uma mala de dinheiro que seria depositada à noite em um banco, mas foi roubada no elevador, como é que a polícia do país inteiro ficou sabendo da numeração das notas? Se era uma mala de dinheiro novinho em folha, com números sequenciais, então não poderia estar sendo carregada num elevador de prédio de Nova York por apenas um homem que foi morto no assalto…

Ou essas perguntas, essas tentativas de ver alguma lógica, são absurdas, são coisa dos idiotas da objetividade de que falava Nelson Rodrigues, e simplesmente não deveriam ser feitas?

Passaram-se dois dias desde que vi o filme, e minhas dúvidas continuam exatamente iguais. O fato de ter escrito tudo isso aí acima não me aclarou nada quanto a essa dúvida: essa trama é genial ou imbecil?

De fato não consigo chegar a uma conclusão.

O que me fascinou, o que me fez gostar do filme, não tem muito a ver com a lógica ou falta de lógica dessa parte aí da trama, da questão das notas marcadas.

O que me fascinou é que Dinheiro Maldito/Private Hell 36 é um filme sobre pessoas comuns, simples, como o eventual leitor e eu. Não super-homens, não super-heróis, nem bandidos cruéis, serial killers. Não, não, não, nada disso. Este é um filme policial, um thriller, com uma ambientação bem noir, que fala sobre seres humanos.

Lilli Marlowe – que usa nomes falsos há tanto tempo que já nem consegue se lembrar direito de seu nome verdadeiro – não é uma femme fatale, uma serpente, um ser maligno que enfeitiça um homem bobo, bocó, um pato, para que ele faça tudo por ela, para que ele a cubra de diamantes. De forma alguma. É apenas uma pessoa que gostaria de ter mais do que a vida permitiu que ela tivesse.

O sargento Cal Bruner também não é um ser maligno, um horrível bandido. É apenas um sujeito que comete uma imensa besteira – por amor, por querer adular, mimar a bela mulher que surgiu em sua vida.

 Ida Lupino era casada com um ator e amante do outro

Ao longo de sua carreira, Don Siegel (1912-1991) adquiriu o respeito da crítica e do mundo do cinema como um competente diretor de filmes de ação, policiais e westerns. “Direção competente, condução dos atores perfeita, orçamentos modestos e raramente ultrapassados”, diz dele o crítico e historiador Jean Tulard. Clint Eastwood, que foi dirigido por ele várias vezes, interpretando o policial durão bateu-levou Dirty Harry, dedicou a ele e a Sergio Leone, seus mestres, a obra-prima Os Imperdoáveis (1992).

Em 1954, ainda não tinha a fama que ganharia mais tarde, mas não era um estreante. Tinha já dirigido oito longa-metragens quando aceitou fazer este filme para a produtora Filmakers, pertencente à estrela e co-autora do roteiro original do filme. Não foi um trabalho fácil: em sua biografia, o realizador contaria – segundo o IMDb – que ele e Ida Lupino discutiam demais, ao longo das filmagens. Os dois não concordavam em ponto algum.

Ida Lupino é uma figura admirável. Foi uma pioneira em Hollywood, quando, cansada dos papéis que davam para ela interpretar, passou a escrever os roteiros de seus filmes, e logo em seguida a dirigir. Foi, como diz o texto sobre ela na Baseline, uma base de dados americana sobre cinema, uma das poucas mulheres diretoras a ser bem sucedida nesse campo dominado pelos homens naqueles anos 1950.

Como atriz, seu currículo tem 105 títulos. Ela foi roteirista de cinco longa-metragens e diretora de sete, entre 1949 e exatamente 1954, o ano deste Dinheiro Maldito aqui. Depois disso, dedicou-se à televisão, e nela teve uma longa carreira como atriz e diretora.

Há um detalhe fascinante: durante as filmagens de Dinheiro Maldito, Ida estava casada com Howard Duff, o ator que interpreta Jack Farnhan. É do casal a garotinha que aparece como a filha de Jack e Francey Farnham. E ela havia sido casada com Collier Young, que assina com ela o a história e roteiro e é também o produtor do filme.

E conta-se que ela na época traía Howard Duff com Steve Cochran, o ator que faz Cal Bruner.

Mulher fascinante.

Anotação em outubro de 2021

Dinheiro Maldito/Private Hell 36

De Don Siegel, EUA, 1954

Com Steve Cochran (sargento-detetive Calvin Bruner),

Howard Duff (sargento-detetive Jack Farnham),

Ida Lupino (Lilli Marlowe)

e Dean Jagger (capitão Michaels), Dorothy Malone (Francey Farnham), Bridget Duff (a filhinha do casal Farnham), Jerry Hausner (o dono do nightclub), Dabbs Greer (o barman), Chris O’Brien (o legista), Kenneth Patterson (policial), George Dockstader (fugitivo), Jimmy Hawkins (o garoto da entrega), King Donovan (o ladrão)

Argumento e roteiro Collier Young & Ida Lupino

Diretor de diálogos Sam Peckinpah

Fotografia Burnett Guffey

Música Leith Stevens

Montagem Stanford Tischler

Direção de arte Walter E. Keller

Produção Collier Young, The Filmakers.

P&B, 81 min (1h21)

**1/2

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