(Disponível na Netflix em abril de 2023
¿Qué he hecho YO para merecer esto!!, assim, com o “yo” em maiúsculas e não um, mas dois pontos de exclamação, de 1984, foi o quinto longa-metragem de Pedro Almodóvar – e o quarto com Carmen Maura, essa atriz estupenda, fora de série. Veio logo antes de Matador (1986), A Lei do Desejo (1987) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), que estabeleceram definitivamente o cineasta madrilenho como um dos mais importantes do cinema mundial.
Já estão lá todas, ou praticamente todas, as características do cinema de Almodóvar. Cores berrantes, fortíssimas. Clima berrante, fortíssimo. Esquisitices, desvios, excentricidades, exageros, destemperos. Nada é próximo do normal, banal, comum, usual, costumeiro.
Ao ver o filme só agora, completamente fora da ordem cronológica, fiquei com a sensação de que, em seu quinto longa, o grande cineasta ainda não havia desenvolvido o que viria a ser um dos seus maiores méritos: o talento – admirável, incrível, sensacional – de criar histórias ricas, fascinantes, intrincadas, bem amarradas, surpreendentes.
Me pareceu que o filme é um caleidoscópio de personagens. Uma grande galeria de seres humanos muito bem desenhados, delineados – mas sem, ainda, uma trama maravilhosa como as que ele inventaria nos seus filmes seguintes.
Enquanto via o filme, me veio à cabeça a lembrança de Feios, Sujos e Malvados/ Brutti, Sporchi e Cattivi (1976) de Ettore Scola. Ele poderia perfeitamente ter o título de Feos, Sucios y Malos.
No meio desse conjunto de uma dezena, uma dúzia de personagens, só há uma figura que é alegre, de bem com a vida, simpática. É Cristal, uma puta (o papel de Verónica Forqué, sensacional.
É um circo de horrores.
Uma mulher que trabalha e sofre demais
O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? é o retrato de uma família classe média baixa, quase pobre, e seu entorno. E isso me pareceu interessante, por ser pouco usual na obra de Almodóvar: em geral, seus personagens são classe média média para alta, sem grandes problemas de falta das coisas básicas.
Gloria (o papel de Carmen Maura), a protagonista, a figura em torno da qual tudo gira, é semi-analfabeta, saiu de vilarejo do interior para Madri, trabalha duro, uma imensa quantidade de horas por dia, como faxineira, cada dia em um lugar, sem nada fixo. E, em casa, tem que fazer tudo – cuidar das compras, limpar, arrumar, lavar e passar roupa, cozinhar. Não tem ajuda alguma do marido, da sogra ou dos dois filhos.
O marido, Antonio (Ángel de Andrés López), não é apenas que não ajuda – ele atrapalha, e muito. Motorista de táxi, com um histórico de fraudes (diz ter imitado a letra de Adolf Hitler e escrito cartas que seriam depois atribuídas ao ditador, endereçadas a uma famosa cantora), é o machismo concentrado. Acha que a mulher é sua escrava, nada mais que isso.
O espectador não fica sabendo o nome da mãe de Antonio, que todos tratam como Avó, simplesmente. A Abuela (Chus Lampreave) é um tipo, uma figura esquisita, estranha, além de danada de feia. Tem a mania de recolher coisas na rua e levar para casa – pedaços de pau, trecos sujos. Lá pelas tantas, encontra um grande lagarto num parque próximo e o transforma em bicho de estimação; dá a ele o nome de Dinheiro. O bicho vira um personagem importante na trama.
O filho mais velho, Toni (Juan Martínez), garoto aí de uns 15 anos, creio, é um pequeno traficante de droga – de maconha a heroína.
O mais novo, Miguel (Miguel Ángel Herranz), aí de uns 12, 13, seduz os pais de amigos. Lá pelas tantas, Gloria simplesmente entrega o garoto para um dentista sórdido, homossexual e pedófilo. Entrega, dá de presente.
O pai sequer percebe que o filho já não está mais em casa.
Para aguentar essa vida, Gloria toma remédios, anfetaminas. E dá umas cheiradas de cola ou detergente.
Perto desta aqui, as famílias desajustadas são bem felizes
Essa família – que deixa as famílias desajustadas da imensa maior parte dos filmes parecendo felizes, certinhas, comportadas, caretas – mora em um dos “enormes prédios de apartamentos minúsculos e apertados de conjuntos habitacionais de Madri”, como define a crítica americana Pauline Kael.
Almodóvar e seu diretor de fotografia Ángel Luis Fernández fazem longas tomadas do conjunto de prédios, de vários ângulos. É tudo feio, triste.
Além de feia e triste, uma vizinha de Gloria, Juani (Kiti Mánver), é o exemplo mais que perfeito de mulher que não poderia jamais ter sido mãe. Trata com a maior brutalidade do mundo a filha, Vanessa (Sonia Anabela Hohmann), uma garota aí de uns oito, talvez dez anos. É uma coisa pavorosa.
Quase no final da narrativa, Vanessa vai surpreender Gloria – e os espectadores – da maneira mais fantástica e inesperada possível. Dizer mais que isso seria spoiler, eu acho.
Apesar da mãe bruta, Vanessa não é triste e feia. É uma exceção nessa galeria de tipos que Almodóvar criou para povoar o mundo de Gloria.
Mas bela e alegre mesmo é Cristal, a puta que é vizinha e a melhor amiga de Gloria.
Cristal está sempre, sempre de bom humor, em qualquer situação. Recebe bem todo tipo de cliente, atende a todas as suas exigências. Há um momento especialmente engraçado em que ela pede a ajuda de Gloria, para que a amiga participe do atendimento a um cliente exibicionista, que gosta de platéia, precisa de platéia. Gloria a princípio se assusta, nega – mas Cristal a convence de que nada acontecerá com ela, o cliente não encostará a mão nela. Basta que ela fique lá olhando a performance do exibicionista.
As cartas que Gloria-Carmen Maura faz são fantásticas.
É uma maravilha essa atriz Verónica Forqué, que faz Cristal. Que talento! Ela voltaria a trabalhar com Alomodóvar em Matador (1986) e Kika (1993). Entre os 93 títulos de sua filmografia estão o bem intencionado mas bobinho Vovó Saiu do Armário / Salir del Ropero (2019) e a boa série Natal em 3 x 4/Días de Navidad (2019). Ganhou 24 prêmios, inclusive quatro Goyas, o prêmio da Academia Espanhola.
Neste filme aqui alegre, alto astral como a puta Cristal, Verónica Forqué tinha períodos de forte depressão. Matou-se em 2021, poucos dias depois de completar 66 anos.
Cecília Roth aparece em um programa de TV
Em quase todos os seus filmes, Almodóvar incrusta momentos de alguma das outras artes. Ou um trecho de uma peça de teatro, ou um espetáculo de dança, ou uma apresentação de música – como Caetano Veloso cantando “Cucurucu paloma” em Fale com Ela (2002).
Como os personagens deste O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? são pobres, não tiveram acesso a boa educação, os momentos de outros meios que não o cinema são programas de televisão – daqueles muito, mas muito vagabundos. São dois números cômicos que passam na televisão da família de Gloria – e são mostrados para o espectador.
Em um deles, um homem vai fazer uma graça, um gesto afetuoso para a mulher, que está deitada em uma cama: vai levar para ela uma bandeja com o café da manhã. Só que ele tropeça, e o café quentíssimo queima o rosto da moça.
Credo. Que horror.
A moça é interpretada, numa participação especial, por outra atriz almodovariana de carteirinha, a argentina Cecilia Roth. A atriz assina também os figurinos de O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? Foi sua única experiência como figurinista.
No outro momento de TV que Almodóvar criou para este filme, ele próprio interpreta um sujeito vestido como se fosse uma espécie de príncipe de alguns séculos atrás cantando a música “La bien pagá”.
“O tratamento mais zoado do colapso de uma família”
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre Qu’est-ce que j’ai Fait Pour Mériter Ça!:
“Poderia ser uma espessa fatia de vida neo-realista sobre a condição operária. Mas, se Almodóvar denuncia bem as dificuldades do proletariado, ele o faz com humor e escárnio. Certo, seu filme é imundo, mas é igualmente alegre – chegando mesmo ao irracional (o lagarto da sogra, os clientes da vizinha prostituta, a morte com um presunto…) E Carmen Maura tem de sobra presença e energia.”
Leonard Maltin dá ao filme 3 estrelas em 4: “Excêntrica comédia de humor negro sobre uma excêntrica dona de casa (interpretada deliciosamente por Maura) e seus vários problemas e escapadelas. Um filme fresco, original, apresentando uma heroína feminista de proporções clássicas.”
Diz Dame Pauline Kael:
“Esse filme espanhol do autor-diretor e bad boy Pedro Almodóvar tem uma informalidade das peças de teatro bem alternativas. É uma farsa dadaísta em geral apreciável sobre uma família da classe trabalhadora dos enormes prédios de apartamentos minúsculos e apertados de conjuntos habitacionais de Madri. A heroína, Gloria (Carmen Maura) se arrasta através de dias de 18 horas de trabalho com a ajuda de drogas e ocasionais cheiradas de cola ou detergente. Trabalha como faxineira e também cozinha e limpa para seu marido motoristas de táxi (que é um talentoso falsário e se envolveu em um esquema de falsas memórias de Hitler) e seus dois filhos – um traficante de 14 anos e um vigarista de 12 que seduz os pais de seus colegas. Você provavelmente nunca vai ver um tratamento mais zoado do colapso de uma família e a decadência da sociedade. O filme é assim uma versão flip e desleixada de A Ópera dos Três Vinténs. Com Chus Lampreave como a mãe e Verónica Forqué como a prostituta.”
“Você provavelmente nunca vai ver um tratamento mais zoado do colapso de uma família e a decadência da sociedade.”
Dona Kael é uma figuraça. Às vezes – como nessa definição aí – ela acerta em cheio.
Anotação em abril de 2023
O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? / ¿Qué he hecho YO para merecer esto!!
De Pedro Almodóvar, Espanha, 1984
Com Carmen Maura (Gloria),
e Ángel de Andrés López (Antonio, o marido de Gloria), Verónica Forqué (Cristal, a vizinha puta), Chus Lampreave (a mãe de Antonio), Juan Martínez (Toni, o filho traficante), Miguel Ángel Herranz (Miguel, o filho homossexual), Luis Hostalot (Polo, o policial), Gonzalo Suárez (Lucas Villalba), Kiti Mánver (Juani, a outra vizinha), Sonia Anabela Hohmann (Vanessa, a filha de Juani), Cecilia Roth (a moça do anúncio na TV), Diego Caretti (o rapaz do anúncio na TV), Pedro Almodóvar (o que canta “La bien pagá” na TV), Fabio McNamara (do número “La bien pagá” na TV), Amparo Soler Leal (Patricia), Emilio Gutiérrez Caba (Pedro), Agustín Almodóvar (caixa), Javier Gurruchaga (o dentista homossexual e pedófilo), Jaime Chávarri (o cliente de Cristal que faz striptease), Katia Loritz (Ingrid Muller), Ryo Hiruma (Kendo, professor de artes marciais),
Argumento e roteiro Pedro Almodóvar
Fotografia Ángel Luis Fernández
Música Bernardo Bonezzi
Montagem José Salcedo
Figurinos Cecilia Roth
Produção Kaktus Producciones Cinematográficas, Tesauro.,
Cor, 101 min (1h41)
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Título em inglês: “What Have I Done to Deserve This?”
Um comentário para “O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? / ¿Qué he hecho YO para merecer esto!!”