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A cidade de Londres é um elemento fundamental em A 23 Passos da Rua Baker/23 Paces to Baker Street, produção da 20th Century Fox de 1956 dirigida com a competência de sempre do prolífico Henry Hathaway. A começar pelo título, claro, que remete ao que é um dos símbolos de Londres, da Grã-Bretanha – Sherlock Holmes.
Na verdade, a Baker Street – onde o mais famoso detetive do mundo morou, no número 221B, nas últimas décadas do século XIX e primeiros anos do XX – importa muito pouco na trama. A rigor, importa coisa alguma. Foi só, me parece, uma forma que os realizadores encontraram para mostrar, já no título, que a história se passa em Londres, e é uma história que envolve mistério, crime, investigação.
Londres – diferentemente da Baker Street, que é só uma licença poética – está presente em cada momento do filme. O Tâmisa, os barcos no rio, as paisagens com o sol se pondo, a visão da Catedral de St. Paul à distância, a Ponte de Waterloo, a estação de Charing Cross, o fog – e o pub, essa instituição britânica.
É em um pub que o mistério começa.
O protagonista havia perdido a visão
Phillip Hannon, o protagonista da história (interpretado por Van Johnson), vai sozinho ao pub perto do amplo, belo apartamento em que está vivendo, debruçado sobre o Tâmisa. O pub fica perto, é verdade – mas do outro lado de uma avenida movimentada, e a caminhada não é nada, mas nada simples para um homem cego. Mas Phillip, que havia ficado cego alguns meses antes, queria a cada momento provar que era capaz de se cuidar, de fazer o máximo de coisas sem a ajuda de ninguém.
O pub estava quase vazio àquela hora, meio da tarde, e a senhorinha que cuidava sozinha do lugar tratou o freguês com grande alegria, simpatia – e sequer reparou que ele era cego. (Na foto acima, a atriz Estelle Winwood como a senhora do pub.) Como Phillip pediu um scotch, e ela imediatamente notou que ele era americano, perguntou se ele queria com água e gelo – ao que ele respondeu que não, que beberia o scotch puro, como os ingleses fazem.
Phillip – a essa altura o espectador já sabia bem – era um dramaturgo americano extremamente bem sucedido, famoso, respeitado, rico. Mas não estava nada bem, sentado sozinho no pub praticamente vazio. Não estava nada bem fazia tempo, pelo que dá perfeitamente para o espectador perceber – desde que perdera a visão, era um homem revoltado, amargurado, duro, fechado, na defensiva. Mas naquela tarde estava especialmente agitado, nervoso: havia acabado de receber a visita de Jean (Vera Miles), que tinha vindo dos Estados Unidos com toda certeza para vê-lo.
Haviam conversado um pouco, e então, de repente, sem esconder sua irritação, ele havia dito que iria ao pub – e pedira a Bob, o inglês que trabalhava para ele como secretário particular (o papel de Cecil Parker), para chamar um táxi para Jean voltar para o lugar onde estava hospedada.
Depois que Phillip saíra do apartamento é que Jean havia contado para Bob – e para o espectador, é claro – que ela tinha trabalhado durante alguns anos como secretária dele, nos Estados Unidos. Tinham se apaixonado, tinham ficado noivos – mas aí aconteceu, e o noivado foi desfeito.
Não é dito o que aconteceu, mas o espectador compreende perfeitamente que aconteceu o fato – o acidente, a doença, o que for – que deixou Phillip cego. E foi por isso que ele rompeu o noivado, antes de embarcar para Londres, onde agora estava em cartaz uma de suas peças.
No pub, Phillip encosta a cabeça na divisória de vidro fosco que separa o salão principal do pub de um outro ambiente, fechado, privado. A câmara do diretor de fotografia Milton Krasner que o focaliza mostra para o espectador que, do outro lado do vidro fosco, no salão privado, há um homem e uma mulher. Dá para o espectador ver a silhueta dos dois rostos – e dá para ouvir o diálogo que Phillip está ouvindo.
Uma beleza de sequência: combina-se ali um crime?
A sequência é esplendidamente encenada. Phillip havia encostado a cabeça na parede divisória e fechado os olhos por um momento, absorto em seus pensamentos, sua evidente, óbvia, gritante angústia. Mas o diálogo que ele começa a ouvir chama sua atenção.
Parece que o homem está convencendo a mulher a participar de algo anormal, atípico – talvez um roubo, ou algum crime ainda pior.
Para aumentar a tensão do momento, da sequência esplêndida, o único outro freguês do pub está neste momento jogando numa máquina de pinball (na foto acima, o ator A. Cameron Grant). E e a máquina faz um barulho danado.
Algumas palavras da conversa do casal do outro lado da divisória envidraçada se perdem.
Phillip é todo ouvidos. Está concentradíssimo.
O casal termina de falar, abre a porta do salão privado, atravessa o salão principal do pub e vai embora.
Phillip chama a senhorinha que o atendera, pergunta se ela conhecia aqueles dois. Ela nunca os tinha visto antes. Ele pergunta se ela reparou neles, se poderia descrevê-los. A descrição que ela consegue fazer é bastante vaga – tinha tido pouquíssimo tempo para olhar o casal que passava e ia embora.
Bob Matthews, o secretário, entra no bar. Phillip pergunta se ele havia visto o casal que acabava de sair, mas, não, Bob não tinha visto.
Voltam para casa depressa. Phillip, que usava um imenso gravador de rolo para ditar textos que Bob depois datilografava, reproduz diante do microfone tudo o que havia ouvido da conversa. Dramaturgo, homem que vive de escrever diálogos, que treina como soam as frases, Phillip tem uma memória prodigiosa, e repete para o gravador exatamente as palavras trocadas no pub pelo homem e pela mulher desconhecidos.
Em pouco tempo, estão na sala do apartamento amplo debruçado sobre o Tâmisa um inspetor da Scotland Yard, o inspetor Grovening (Maurice Denham) e um auxiliar. Haviam sido chamados por Bob, e atenderam ao chamado.
Mas é óbvio que, para os homens da polícia, aquilo era muito pouco. Não havia prova alguma de nada – nem pista de quem poderiam ser aquelas duas pessoas.
O que aquele diálogo afinal revelava? O que Phillip achava que poderia ser o que aquele casal estava planejando?
Ele tem uma teoria: “A mulher trabalha com crianças; talvez seja babá. Ela trabalha para essas pessoas, nobres. (A mulher havia se referido a uma lady, que iria a uma ópera num determinado dia da semana.) O sr. Evans, com quem ela falava, a está forçando a fazer algo errado. Seja o que for, ela não quer fazer – mas tem medo de Evans. Está apavorada. Há algo que ele sabe sobre ela. (…) Pode ser que planejam raptar uma criança.”
Um início de narrativa feito com imenso talento
Esse diálogo de Phillip com os policiais acontece quando o filme está chegando aos 20 dos 103 minutos que ele dura.
Um pouco mais adiante, há uma sequência em que o inspetor Grovening, na sacada do apartamento de Phillip, Londres à sua frente, diz: – “Nove milhões de pessoas! Nove milhões de pessoas!” Como encontrar aqueles dois, no meio de uma metrópole daquele tamanho?
A missão de encontrar aquele casal, de tentar impedir que eles cometessem um crime, sem dúvida parecia impossível. Mas aquilo se tornou para Phillip – como Jean observa, feliz da vida – um desafio. Algo pelo qual ele passou a se interessar vivamente, depois de meses e meses de amargura, angústia e absoluta falta de ânimo.
Fiquei muito impressionado com o talento com que os realizadores conseguiram apresentar toda a situação, e nos mostrar muito bem as personalidades de Phillip e de Jean, logo nos primeiros 20, 25 minutos do filme. Comentei isso com Mary: os autores do roteiro foram de fato talentosos ao construir esse início do filme. Com 25 minutos, já está tudo lá, tudo já foi muito bem colocado.
A questão é saber como aquele sujeito obstinado, com a ajuda da mulher que o ama e do fiel secretário, conseguirá chegar até a agulha perdida naquele palheiro de 9 milhões de pessoas.
O roteirista e o autor do romance têm belas obras
O roteiro foi escrito pelo inglês Nigel Balchin (1908-1970), autor ou co-autor dos roteiros de 26 títulos, entre eles O Homem Que Nunca Existiu/The Man Who Never Was (1956), baseado no mesmo episódio da Segunda Guerra Mundial que foi novamente tema de filme em 2021 – o competente O Soldado Que Não Existiu/Operation Mincemeat. É dele também o romance A Way Through the Wood, filmado em 2005 por Julian Fellowes como Separate Lives, no Brasil Mentiras Sinceras.
O roteiro de Nigel Balchin se baseia em um romance, que teve dois títulos completamente diferentes, The Nursemaid Who Disappeared, a babá que desapareceu, e A Warrant for X, um mandado para X. O romance, lançado em 1938, é do inglês que se radicou nos Estados Unidos Philip MacDonald, figura, ao que tudo indica, bastante fascinante.
Philip MacDonald (1900-1980) foi um daqueles escritores prolíficos, que deixam obra vasta. Escreveu dezenas de romances policiais, assinados tanto por ele mesmo quanto por nada menos de cinco pseudônimos! Foi Oliver Fleming, Anthony Lawless, Martin Porlock, W. J. Stuart, Warren Stuart. E, além de autor de romances, foi também roteirista – mudou-se para Los Angeles em 1931 e, até 1963, escreveu roteiros para o cinema, o rádio e a televisão. Foi – só para dar um exemplo – um dos autores da adaptação do romance Rebecca, de Daphne du Maurier para o filme de Alfred Hitchcock.
Foi autor ou co-autor dos roteiros de 17 filmes – e outros 19 filmes se basearam em obras escritas por ele. Entre esses últimos está, além deste 23 Paces to Baker Street, A Lista de Adrian Messenger, que John Huston dirigiu em 1963 com uma penca de grandes astros.
Por que, raios, o próprio MacDonald, o autor do romance que teve dois títulos diferentes, não roteirizou ele mesmo sua história – ah, isso é um daqueles mistérios indecifráveis. Mais indecifrável do que o mistério do homem e da mulher que planejam algo que parece um crime e têm o azar de serem ouvidos por um dramaturgo cego que se torna obcecado com a história…
A angústia de quem não pode mais ver a beleza
De The Nursemaid Who Disappeared para 23 Paces to Baker Street – os estranhos caminhos dos títulos de um filme…
Quando estamos já na segunda metade do filme, há uma sequência em que o dramaturgo Phillip está caminhando, sozinho, em uma rua próxima à sua casa, e é abordado por um homem que está obviamente perdido. O homem usa um daqueles óculos de fundo de garrafa, o fog londrino está denso, e ele pede ajuda a Phillip para chegar até a Baker Street. Phillip então responde que estão perto, que a Baker Street está a apenas 23 passos dali – e ajuda o homem a ir até a rua em que Sherlock Holmes morou!
Um cego ajudando um míope! Coisa de cinema.
A Baker Street do título é mencionada apenas nessa sequência – mas ruas, bairros, edifícios de Londres estão presentes ao longo de toda a narrativa. É muito forte a importância da cidade dentro do filme. Já disse, mas repito aqui: há diversas, diversas belas tomadas gerais da cidade, em especial do Tâmisa.
Há uma sequência, ainda no início do filme, em que Phillip e seu secretário Bob Matthews estão em um barco, no Tâmisa, indo em direção a não me lembro o quê. O diálogo entre o escritor sensível, atento a todos os detalhes, que havia ficado cego, com seu secretário, homem simples, comum, sem apego a detalhes das paisagens, no momento em que estão viajando de barco pela belíssima, maravilhosa, milenar cidade, é inteligente, irônico – e bastante doloroso.
Phillip: – “Como está a vista? Está bonita?”
Bob: – “Sim, sim… Muito bonita… A paisagem, os prédios…”
Phillip (com sarcasmo na voz): – “Você faz tudo parecer tão vívido que quase consigo ver tudo.”
E, depois de algum tempo em silêncio, Phillip diz: – “5h30 da tarde. O sol deve estar se pondo à nossa frente. Alguma embarcação no rio?” E, depois que Bob informa que há dois grupos de barcos, ele prossegue, enquanto estamos diante de uma belíssima tomada em CinemaScope do Tâmisa, a Westminster Bridge adiante, o prédio do Parlamento surgindo à direita: – “O rio está dourado com o sol sobre ele. Os barcos ficam negros contra o dourado. A brisa faz a água brilhar e bate e dança no casco dos barcos.”
Planos gerais de Londres. A era do CinemaScope
Parte das filmagens foi de fato em Londres. Mas as cenas em interiores foram todas feitas no estúdio da Fox em Hollywood.
Belíssimas tomadas de Londres em CinemaScope.
Era o início da era das telas amplas, largas, bem retangulares – em contraposição à tela de base horizonte bem menor, quase quadrada, que havia sido usada desde os primórdios do cinema, pouco mais de meio século antes, e que, naqueles anos 1950, era o formato dos televisores. As telas dos aparelhos de TV eram quase quadradas – e as imagens eram apenas em preto e branco.
A tela ampla, retangular, em cores, começava a ser adotada por todos os estúdios de Hollywood como uma arma contra a televisão, que vinha roubando audiência das salas de cinema. O CinemaScope era a marca registrada pela 20th Century Fox, usada a partir de 1953 em uma série de filmes com muitas cenas de multidões. Foi a época de ouro dos filmes de aventuras ou passados na Antiguidade, com histórias inspiradas na Bíblia ou sobre os primeiros tempos do Cristianismo, como O Manto Sagrado (1953), Demetrius e o Gladiador, O Egípcio, Príncipe Valente, A Princesa do Nilo (todos de 1954).
A época dos planos gerais, para mostrar o que a concorrente TV não conseguia – amplas paisagens, vastas multidões. O close-up estava em baixa.
Quando nos decidimos a ver este filme, comentei com a Mary: – “Ih, não vamos ver close-up da Vera Miles!” De fato, não há close-up dessa bela atriz – o que há são planos gerais de Londres. Lindíssimos.
Filmes em amor em Paris e Roma. Policiais em Londres
É preciso registrar: Hollywood sempre adorou fazer filmes policiais, de mistério, de suspense passados na Inglaterra, em especial em Londres. Como sintetizou maravilhosamente a Mary, quando comentei isso com ela: filmes de amor em Paris e Roma, filmes policiais em Londres.
É isso: há dezenas e dezenas e dezenas de filmes de amor de Hollywood passados em Paris e Roma. E algumas dezenas de policiais passados em Londres.
A terra de Jack, o Estripador, O Médico e o Monstro, Sherlock Holmes, Hercule Poirot parece de fato o cenário perfeito para thrillers – e dá-lhe thrillers hollywoodianos passados em Londres. Para citar só alguns, os que primeiro me vêm à cabeça:
O Médico e o Monstro (1920, mais um em 1931, mais um 1941).
À Meia-Luz/Gaslight (1944).
Disque M para Matar/Dial M for Murder (1954).
A Teia de Renda Negra/Midnight Lace (1960).
Frenesi/Frenzy (1972).
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme: “Suspense filmado em Londres tem o dramaturgo cego Johnson determinado a frustrar os planos criminosos que ele entreouviu. CinemaScope.”
O livro The Films of 20th Century Fox diz: “Uma ótima história de suspense, tornada mais interessante pelo inteligente uso de locações em Londres e a atuação de Johnson como o homem cego que luta com a quase impossível questão de resolver um crime que ele não pode ver, atormentado pela frustração imposta pela ausência da visão.”
O Guide des Films de Jean Tulard faz essa avaliação sobre À Ving-Trois Pas du Mystère, como o filme foi exibido na França: “A cegueira do herói, tema já explorado, é um perfeito impulso dramático para essa história bem encenada por Hathaway.”
Tema já explorado. É verdade. Quando filme se aproxima do fim, e há uma longa sequência climática em que Phillip usa a escuridão como arma contra o bandido, é impossível a gente não se lembrar de Um Clarão nas Trevas/Wait Until Dark (1967), de Terence Young, em que Audrey Hepburn interpreta uma mulher que havia ficado cega e é aterrorizada por um trio de bandidos. Como Philip, a personagem de Audrey usa a escuridão como uma poderosa arma.
O fato de ser um tema já explorado não torna um filme ruim. De forma alguma. E eu achei que a cegueira que se abateu sobre esse Phillip Hannon é muitíssimo bem usada pelos realizadores e por Van Johnson, que tem uma excelente interpretação. O espectador percebe perfeitamente os sentimentos que tomam conta de Phillip – o inconformismo, a revolta dura, amargurada com sua condição, a vontade de a cada momento mostrar que pode fazer muitas coisas apesar de não enxergar. Toda a relação dele com a bela Jean é também muito bem explorada, e envolve o espectador. A gente fica torcendo por aquela mulher que tenta de todas as formas se conectar novamente com o homem que a amava mas bloqueou seus sentimentos ao ficar cego por temer que a mulher tivesse pena dele, piedade, dó.
Uma bela história muito bem contada, boas atuações. Um belo filme.
Anotação em janeiro de 2023
A 23 Passos da Rua Baker/23 Paces to Baker Street
De Henry Hathaway, EUA, 1956
Com Van Johnson (Phillip Hannon),
Vera Miles (Jean Lennox),
Cecil Parker (Bob Matthews),
e Patricia Laffan (Miss Alice MacDonald), Maurice Denham (inspetor Grovening), Estelle Winwood (a senhora do bar), Liam Redmond (Joe Murch), Isobel Elsom (Lady Syrett), Martin Benson (Pillings), Natalie Norwick (Janet Murch), Terence de Marney (sargento Luce), Queenie Leonard (Miss Schuyler), Charles Keane (policial), Lucie Lancaster (Miss Marston), A. Cameron Grant (o jogador de pinball), Ashley Cowan (ascensorista), Leslie Sketchley (policial), Ben Wright (porteiro de hotel), Phyllis Montifiere (Mrs. De Mester), Arthur Gomez (Mr. De Mester), Roteiro Nigel Balchin
Baseado no livro “The Nursemaid Who Disappeared” ou “A Warrant for X”, de Philip MacDonald, de 1938.
Fotografia Milton Krasner
Música Leigh Harline
Montagem James B. Clark
Direção de arte Lyle Wheeler, Maurice Ransford
Set designer Walter M. Scott
Figurinos Charles Le Maire, Travilla
Produção Henry Ephron, 20th Century Fox.
Cor, 103 min (1h43)
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Título na França: “A Vingt-Trois Pas du Mystére“; em Portugal, “A 23 Passos do Abismo”.