Ao encerrar a Trilogia das Cores, no que viria a ser o seu último longa-metragem para o cinema, Krzysztof Kieslowski fez uma obra-prima sobre a vida o amor a morte, uma ode às coincidências e aos acasos. Um quarto de século antes de o papa que veio do fim do mundo colocar o verso de Vinicius de Moraes em uma encíclica, Trois Couleurs: Rouge comprovou que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.
Enquanto a câmara inquieta insiste teimosamente em mostrar a proximidade física da protagonista com o rapaz seu vizinho, embora os dois não se encontrem jamais, Kieslowski vai tecendo a rede de eventos que fará com que Valentine, a jovem linda, ativa, cheia de simpatia e solidariedade pelas pessoas, vá injetando o vírus da esperança no juiz aposentado que havia perdido qualquer encanto pela vida.
Despertado de seu torpor de anos, o velho retribui presenteando Valentina com a oportunidade de viver a história rica e feliz que ele mesmo poderia ter vivido, se tudo tivesse sido diferente.
É uma trama fascinante – e a câmara virtuosística de Kieslowski e seu diretor de fotografia Piotr Sobocinski, a música absolutamente extraordinária de Zbigniew Preisner e as interpretações soberbas da maravilhosa Irène Jacob e do veterano Jean-Louis Trintignant fazem com que o espectador termine de conhecê-la com os pés alguns milímetros acima do chão.
Valentine tem um namorado que está longe dela
Na primeira sequência de Trois Couleurs: Rouge, no Brasil A Fraternidade é Vermelha, um homem disca um número no telefone, e a câmara segue o fio através do qual está passando a ligação.
É um daqueles momentos mágicos de puro cinema que a gente não esquece nunca.
O sinal do telefone vai pelo fio, que entra no mar, viaja através de um cabo submarino, volta à terra, prossegue – e toca o telefone.
Ouvimos o sinal de telefone chamando enquanto começam os créditos iniciais.
Depois de algum tempo chamando, o homem que ligou desiste, e recoloca o fone no gancho.
Em seguida vemos um sujeito jovem, aí de uns 28 anos, dentro de seu apartamento, amarrando alguns livros em um laço e em seguida colocando uma correia na coleira de um belo cachorro.
Corta, e vemos o rapaz saindo da porta de seu prédio com o cachorro. Ele atravessa uma rua, e a câmara, que o seguiu até o passeio do outro lado, já focaliza o toldo vermelho de um café, o Café Chez Joseph. A câmara abandona o rapaz e seu cachorro, e continua se movendo para a direta, um pouco para o alto, para a janela de um apartamento que fica logo acima do café – o apartamento de Valentine, estudante e modelo profissional. O telefone está tocando, e entra a secretária eletrônica com a voz de Valentine-Irène Jacob. Uma voz masculina começa a falar – e então Valentine chega em casa e atende ao telefone.
Vamos ouvir a voz de Michel, o namorado de Valentine, várias vezes ao telefone, durante os 99 minutos de duração do filme. Ele está na Inglaterra, a trabalho; ela mora em Genebra, onde se passa praticamente toda a ação do filme. Através das conversas entre os dois, ficaremos sabendo que Valentine ama bastante Michel – que, por sua vez, demonstra ser um namorado extremamente ciumento. Em vários telefonemas ele pergunta se ela está sozinha, o que fez durante o dia, o que pretende fazer em seguida.
Ao longo de todo o filme, a câmara vai insistir em mostrar, como já foi dito lá no início, como vivem bem perto um do outro Valentine e o rapaz que tem o belo cachorro e um Jeep vermelho, como eles muitas vezes passam perto um do outro, sem se verem.
Quando o filme já está bem depois da metade, saberemos que ele se chama Auguste (o papel de Jean-Pierre Lorit), estudou Direito e está fazendo concurso para ser juiz. Tem uma namorada, uma bela loura chamada Karin (Frédérique Feder).
A moça atropela um grande cão
Valentine é uma jovem de mil atividades. Tem aulas de dança, faz ginástica. Trabalha como modelo em desfiles de moda e também posa para fotos de publicidade – bem no início da ação, logo após receber aquele telefonema de Michel, vai para um estúdio, para uma sessão de fotos com um jovem e talentoso fotógrafo, cujo nome não ficaremos sabendo (ele é interpretado por Samuel Le Bihan).
A sessão de fotos é para publicidade de uma marca de chicletes – e a sequência nos faz lembrar, inevitavelmente, algumas daquelas em que Thomas-David Hemmings faz fotos de moda em Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni.
O fotógrafo, e também Valentine, gostam em especial de uma foto em que ela aparece de perfil, com um fundo de vermelho bem vivo. Será a escolhida para a campanha publicitária, e mais tarde veremos a foto ampliada (blown-up) em um gigantesco outdoor de quase três metros de comprimento em uma esquina de Genebra.
À noite, após um dia de muita atividade, Valentine está voltando para casa em seu carro. Está com dificuldade para achar uma boa estação no rádio do carro, prestando atenção ao dial, quando há um baque. Havia atropelado um grande, belo cachorro.
Ela desce do carro, examina o animal. Está vivo, tem um sangramento. A coleira informa que é uma cadela, chama-se Rita – e informa também o endereço.
Com dificuldade – Rita é bem pesada –, Valentine coloca a cadela em seu carro e vai até o endereço. Ela toca a campainha, ninguém atende. A porta está aberta, ela entra, caminha pela ampla casa até encontrar um homem sentado diante de uma mesa, aparentemente cochilando.
Bate na madeira, diz – “Desculpe, a porta estava aberta” – e então vemos pela primeira vez Jean-Louis Trintignant.
Não reparei neste detalhe ao rever agora o filme, pela primeira vez em muitos, muitos anos, mas quase não se fala o nome do juiz aposentado interpretado por Trintignant, o segundo personagem mais importante de A Fraternidade é Vermelha. Quando fui buscar os dados para a ficha técnica que coloco abaixo de cada anotação, vi que na página do cast do IMDb, está dito “le juge”, assim, em francês. O juiz. A mesma coisa na página do cast do AllMovie. Mas a atentíssima Fernanda Trapp leu este meu texto e informou (ver abaixo) que, na cena do julgamento da ação dos vizinhos contra ele, é dito seu nome: Joseph Kern. Um nome, penso aqui, que remete ao protagonista de O Processo de Kafka, que é Joseph K.
A doçura da moça invade a vida amarga do velho
Transcrevo aqui o diálogo entre Valentine e o juiz nesse primeiro encontro deles, quando o filme está com 13 minutos. É importante – e impressionante.
Valentine: – ““Desculpe, a porta estava aberta. Desculpe. Acho que atropelei seu cachorro, Rita. Um pastor alemão.
O juiz: – “É possível. Ela desapareceu ontem.”
Valentine: – “Ela está no meu carro. Viva. Não sei o que fazer.”
O homem não diz nada.
Valentine: – “Quer que eu a leve a um veterinário?”
O juiz: – “Faça como queira.”
Valentine: – “Se eu atropelasse sua filha, o senhor reagiria do mesmo jeito?”
O juiz: – “Senhorita, em não tenho filha.” E, depois de uma pausa: – “Vá embora. E não feche a porta.”
Mais tarde, o juiz dirá para ela: – “Eu não quero nada.”
E Valentina: – “Então pare de respirar.”
O juiz: – “Boa idéia.”
Para muita gente, a essa altura seria o caso de mandar o juiz tomar, virar as costas e nunca mais ver o imbecil.
Muitas pessoas sequer teriam descido do carro para socorrer o cachorro atropelado.
Valentine desceu do carro. E não virou as costas para nunca mais ver o imbecil.
Simpatia pelo ser humano. Solidariedade. A sensação de fraternidade.
Há quem tenha, há quem não tenha.
O mundo não se divide – ou não deveria se dividir – entre pretos e brancos, cristãos e muçulmanos, direitistas e esquerdistas, flamenguistas e fluminenses.
A diferença é entre quem tem simpatia pelos outros, solidariedade, fraternidade – e quem não tem.
A doçura de Valentine vai invadir a vida cheia de amargura do juiz.
Há coincidências por todos os lados na trama
A história de Trois Couleurs: Rouge foi criada por Kieslowski e outro Krzysztof, Krzysztof Piesiewicz. Os créditos finais informam também que três outras pessoas colaboraram na criação do roteiro, entre elas a grande Agnieszka Holland, que teve como mentor aquele que é provavelmente o maior de todos os realizadores poloneses, Andrzej Wajda – que foi também uma grande influência sobre o próprio Kieslowski.
Os autores espalharam coincidências por todos os lados da história desse inesperado encontro de uma jovem na flor da idade e um velho desencantado com tudo. A maior coincidência de todas, claro, é o fato de Valentine e Auguste serem vizinhos, passarem pelas mesmas ruas, e não se conhecerem. Mas há muitas outras. A loura Karin, namorada de Auguste, é vizinha do velho juiz.
Auguste faz concurso para ser juiz – a mesma profissão do velho amargurado. Auguste deixa cair na rua seus livros de Direito – e a página de um deles se abre justamente num tema que vai cair no concurso. Exatamente como havia acontecido com o juiz agora aposentado, quando ele era jovem e se preparava para a carreira.
A loura Karin vai trair Auguste – exatamente como fez a namorada do velho juiz, quando ele era jovem.
O homem com que a namorada do juiz o traiu mais tarde aconteceu de ser réu num processo que acabou indo parar em suas mãos.
Na sequência final do filme, vemos, bem rapidamente, Juliette Binoche, Julie Delpy e Zbigniew Zamachowski – e não é coincidência alguma. É absolutamente proposital. Juliette Binoche está ali como Julie, a a protagonista de A Liberdade é Azul/Trois Couleurs: Bleu (1993), e Julie Delpy e Zbigniew Zamachowski como Dominique e Karol Karol, os protagonistas de A Igualdade é Branca/Trois Couleurs: Blanche (1994). É uma brincadeira, um jogo, para explicitar que aquilo é uma trilogia, e a vida real – como disse Kieslowski numa entrevista a um repórter brasileiro – é cheia de coincidências.
Minha irmã Nilze sempre dizia e repetia que, segundo Nietzsche, as coincidências não existem. Nunca me animei a checar se Friedrich Nietzsche de fato escreveu isso, mas vejo agora, por acaso, por mero descaso (como diria o Chico) ou por coincidência que há nas livrarias um livro chamado Não Existem Coincidências, de uma certa Louise L. Hay. Dona Louise muito seguramente deve lembrar em seu livro que Albert Einstein disse que as coincidências são a maneira de Deus permanecer no anonimato.
Ou, como vejo agora que um sujeito chamado José Renato Sátiro Santiago escreveu, “coincidências não existem, são truques que Deus faz para não ter que explicar muito”.
As coincidências, os acasos. A moça e o rapaz que passam pelos mesmos lugares mas não se vêem – até a última sequência. Desde que vi A Fraternidade é Vermelha pela primeira vez, no Belas Artes, na época do lançamento, 1994, acho que o filme tem tudo a ver com as obras de Claude Lelouch no início da carreira, segunda metade dos anos 60 até os anos 70. E acho isso fascinante, porque Kieslowski é tão adorado pelos críticos do mundo inteiro quanto Lelouch é achincalhado.
Quero voltar às coincidências entre Lelouch e este Kieslowski – é um tema de que gosto especialmente. Mas primeiro vou fazer alguns registros e transcrever outras opiniões sobre esta maravilha que é A Fraternidade é Vermelha.
Como entrevistado, Kieslowski era bem ruim…
Kieslowski anunciou e garantiu que se aposentaria depois de concluída sua Trilogia das Cores. Repetiu isso na entrevista que deu a um brasileiro, e está como um extra no DVD de A Fraternidade é Vermelha lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo; a Versátil é uma empresa que costuma caprichar nas edições de seus DVDs, incluindo extras, especiais – mas cometeu a falha de não mencionar o nome do entrevistador, que eu não reconheci.
O fato é que o entrevistador insiste em perguntar sobre a aposentadoria, e o cineasta responde que sim, que seu plano é mesmo se aposentar, que na verdade já está aposentado. O repórter pergunta o que ele gosta de fazer em seu tempo livre, e o cineasta responde que até ali não tinha tido tempo livre na vida. O repórter volta a questionar: sim, mas e agora o senhor vai fazer o quê?
Com evidente má vontade, doido para a entrevista acabar, o cineasta diz que não sabe. Algo tipo assim: sei lá; viver; relaxar, não fazer nada.
Faz umas gozações com os críticos. Diz que não sabe muito bem o que afinal é Rouge, o último filme da trilogia. “O primeiro é um drama, quase uma tragédia. O segundo é uma comédia. O terceiro não sei como classificar. Os críticos vão colocar um rótulo, e então a gente vai ficar sabendo.”
Kieslowski era bem melhor como cineasta do que como entrevistado.
Trabalhou muito, muito intensamente: sua filmografia tem 42 títulos como roteirista e autor, 41 como diretor – a rigor, foi o autor do argumento e do roteiro de todos os filmes que dirigiu. E muitos deles são belos, grandes filmes.
Mas não trabalhou durante muito tempo: foram apenas 26 anos de carreira. Assinou o primeiro roteiro em 1969, de um documentário curta-metragem – e encerrou a carreira em 1995. Sim: não cumpriu o que havia anunciado e garantido. Depois deste Trois Couleurs: Rouge, fez ainda um filme para a TV polonesa e três curtas.
Não teve tempo algum para só viver, relaxar, não fazer nada: morreu em 1996, com apenas 55 anos de idade, de doença cardíaca.
Irène Jacob, maravilhosa, recusou oferta de Tarantino
Um registro: Irène Jacob é de 1966, estava portanto com 28 anos quando o filme foi lançado.
Jean-Louis Trintignant é de 1930, estava com 64.
Um detalhe interessante, importante: em 1987, sete anos antes, portanto, do lançamento do filme, um imenso ferry boat de oito andares, “Herald of Free Enterprise”, afundou no Canal da Mancha, após deixar o porto belga de Zeebrugge rumo à Inglaterra, matando 193 passageiros. Tomadas de telejornais da época foram usadas no filme.
Three Colors: Red, como a co-produção França-Suíça-Polônia se chamou nos Estados Unidos, recebeu três indicações ao Oscar, nas categorias melhor direção, melhor roteiro original e melhor fotografia. Foi também indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e aos Baftas nas categorias de melhor filme em outra língua diferente do Inglês, melhor direção, melhor roteiro e melhor atriz para Irène Jacob. Concorreu também na mostra competitiva de Cannes. Não levou nenhum desses importantes prêmios – o que não prejudica o filme em absolutamente nada.
Há na página de Trivia do IMDb sobre o filme uma informação saborosa, atribuída a Harvey Weinstein, no tempo em que ele era um figurão de Hollywood, e não ainda um acusado de abuso sexual. Boto entre aspas, para indicar que é literal do grande site enciclopédico: “Segundo Harvey Weinstein, depois de ver The Double Life of Veronique em Cannes, Quentin Tarantino o procurou para pedir sua ajuda para conseguir que Irène Jacob fizesse o papel de Fabienne em Pulp Fiction. Jacob não aceitou o papel para participar deste filme” – este sendo, claro, A Fraternidade é Vermelha.
A Dupla Vida de Veronique, em que Kieslowski dirigiu Irène Jacob no papel-título, é de 1991.
A ligação – ou, no caso, a não-ligação – entre Tarantino e a maravilhosa atriz torna ainda mais interessante esta “notícia” publicada no livro Cinema Year By Year 1894-2000 – em que eventos importantes e grandes filmes são comentados como se os textos fossem de reportagens dos jornais da época:
“Cheers and jeers greet violent winner”. Ou, sem a rima e a aliteração do título original, aplausos e zombarias cumprimentam o vencedor violento.
O texto da “notícia”, datada de Cannes, 23 de maio de 1994, diz o seguinte:
“O anúncio de que Pulp Fiction de Quentin Tarantino ganhou a Palma de Ouro deste ano no Festival de Cinema de Cannes foi recebida tanto com vaias quanto com aplausos. O prêmio surpreendeu especialmente porque Three Colors: Red de Krzysztof Kieslowski, o favorito, saiu de mãos abanando. A principal objeção a Pulp Fiction foi a excessiva violência do filme, na opinião da maior parte dos críticos sobre o filme anterior de Tarantino, o bem-recebido Reservoir Dogs. (…) Pensou-se que a escolha de Pulp Fiction, em vez de Kieslowski, se devia à influência de Clint Eastwood, o presidente do júri.”
E a partir daí o texto passa a falar dos vencedores nas categorias de melhor atriz, melhor ator, no Grande Prêmio do Júri.
Não tenho o que dizer sobre uma possível comparação entre Trois Couleurs: Rouge e Pulp Fiction. Não vi Pulp Fiction, não tenho interesse algum em ver, não tenho qualquer simpatia por Tarantino, creio que dele só vi Bastardos Inglórios, e tá bom demais. Vamos em frente.
“Seria humilhante compreender que a vida é acidental”
Leonard Maltin deu apenas 3 estrelas em 4: “Último filme da trilogia Três Cores de Kieslowski, o filme tem existência separada, própria, como Azul e Branco. Modelo Jacob conhece por acaso juiz aposentado e amargo Trintignant, e então desenvolve uma relação com ele e entra em seu mundo enclausurado e secreto. Passado na Suíça, o filme é uma história de várias vidas entrelaçadas; um olhar sobre a comunicação – e a falta dela – na sociedade moderna. Aclamado, mas não para todos os gostos.”
Roger Ebert deu 4 estrelas, a cotação mais alta. Ele começa assim sua longa e bela resenha:
“Uma das primeiras imagens de Vermelho é de linhas de telefone que se cruzam. É a mesma coisa na vida. Estamos conectados a algumas pessoas e nunca encontramos outras, mas poderia perfeitamente ter acontecido o contrário. Fazendo um balanço de toda uma vida, descrevemos o que aconteceu como se houvesse um plano. Compreender inteiramente o quão acidental e aleatória é a vida – quão vastas são as probabilidades contra qualquer evento acontecer – seria humilhante. Esta é a verdade a que Kieslowski está sempre voltando em seu trabalho.”
E ele conclui assim: “Vermelho é a conclusão da trilogia magistral de Kieslowski, depois de Azul e Branco, com as cores da bandeira francesa no título. Ele diz que vai se aposentar agora, aos 53 anos, e não vai voltar a fazer filmes. Ao final de Vermelho, os principais personagens de todos os três filmes se encontram – através de uma coincidência, naturalmente. Este é o tipo de filme que faz você se sentir intensamente vivo enquanto está assistindo a ele, e manda você de volta às ruas depois louco de vontade de conversar profunda e urgentemente com a pessoa que está com você. Seja quem for.”
O Guide des Films de Jean Tulard, assim como Roger Ebert, dá a cotação máxima de 4 estrelas ao filme:
“Menos brilhante que Azul, menos sarcástico que Branco, Vermelho é um filme mais intenso, mais sóbrio, que queima fogos do amor. A direção é de uma precisão e de uma inteligência impressionantes, cada detalhe aparentemente anódino vindo se inserir na lógica de uma narrativa impecável. A música quente e contudo discreta irriga o filme com sua serenidade. J.L. Trintignant, inquietante e atormentado, está magistral. Quando a Irène Jacob, é pouco dizer que sua beleza radiante e sua interpretação fina iluminam este filme muito belo. Esse Vermelho da fraternidade conclui magnificamente a soberba trilogia de Kieslowski.”
Há mais coincidências entre Kieslowski e Lelouch que…
Bem. Este texto já está grande até para os meus padrões, mas agora eu gostaria de falar sobre as coincidências entre os filmes de Claude Lelouch, o mais menosprezado cineasta do mundo, e esta maravilha que é Trois Couleurs: Rouge.
A câmara de Kieslowski faz um travelling numa rua de Zurique, para mostrar, num único plano, que Valentine e o rapaz Auguste são vizinhos.
Duas décadas antes, a câmara de Lelouch fez travelling semelhantes diversas, diversas, diversas vezes.
Há, por exemplo, para citar apenas um, um extraordinário, esplendoroso, magnífico travelling em um bar, se não me engano um bar de beira de estrada, com um longo balcão – e dezenas e dezenas de pessoas comprimidas junto ao balcão pedindo comidinhas e bebidas.
Estão ali, naquele momento, o rapaz e a moça da história, que ainda não se conhecem. Já passaram algumas vezes pelos mesmos locais, nós já vimos isso – mas ainda não se conhecem.
A câmara de Lelouch, colocada no alto, mostra a moça num lugar lá do balcão. Aí puxa para trás, mostra do alto toda aquela zorra, aquele monte de gente junto do balcão. Vira-se um tanto para o outro lado do balcão e faz um zoom de novo para se aproximar do moço.
Lembro perfeitamente, vividamente, da sequência, mas não tenho absoluta certeza de a qual dos diversos filmes em que Lelouch usa e abusa das coincidências ela pertence. Creio que é Si C’était à Refaire, Se Tivesse Que Refazer Tudo, de 1976, com Catherine Deneuve, Anouk Aimée, Charles Denner e Francis Huster. Mas pode ser também À Nous Deux, A Nòs Dois, de 1979, com Catherine Deneuve e Jacques Dutronc.
Mas não importa.
O que a câmara de Kieslowski faz em Trois Couleurs: Rouge a câmara de Lelouch já havia feito. Muitas vezes. Genialmente.
Há um outro detalhinho, uma outra coincidência: o ator que faz o juiz aposentado descrente de tudo é o mesmo ator que, 28 anos antes (por coincidência, a idade que Irène Jacob tinha em 1994), havia estrelado Um Homem, Uma Mulher, o filme do jovem Lelouch que venceu a Palma de Ouro de Cannes E o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Tem mais.
O homem e a mulher que caminham pelos mesmos lugares, durante um bom tempo, um bom tempo – mas só vão se encontrar na última sequência do filme.,,
Lelouch fez isso exatos 20 anos antes de Trois Coleurs: Rouge. Em 1974, em Toda Uma Vida/Toute Une Vie, os personagens de Marthe Keller e André Dussollier vão nos sendo mostrados ao longo de quase toda sua vida, desde bem jovens, adolescentes, até ali o início da maturidade dos 40 e tantos assim. Tipo assim: ele é pobre, ela é rica. Quando ele está ali com 18 anos, rouba um disco de Gilbert Bécaud numa loja e sai correndo; quando ela faz 18 anos, o pai faz uma baita festa com Gilbert Bécaud cantando para ela. (O próprio Bécaud fazendo o papel dele mesmo, é claro.)
Para contar quase todas as duas vidas de Sarah e Simon, Lelouch precisou de 150 minutos, duas horas e meia, exatamente – que passam depressa demais. Na última sequência, após duas horas e meia de coincidências, Sarah e Simon ficam se conhecendo.
Não estou, com isso, querendo de forma alguma desmerecer Trois Couleurs: Rouge. De forma alguma estou querendo sugerir que Kieslowski copiou, plagiou Lelouch. De forma alguma – até porque, como Lelouch sempre disse, em seus filmes e nas entrevistas, só existem duas ou três histórias na vida. E suas pequenas variações, é claro.
Só estou querendo dizer – repetindo Lelouch – que só existem duas ou três histórias na vida – e suas pequenas variações. E também – repetindo Lelouch e Kieslowski – que a vida é cheia de coincidências. E ainda – repetindo Lelouch, Kieslowski, Vinicius e o Papa Francisco – que a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida.
Anotação em novembro de 2020
A Fraternidade é Vermelha/Trois Couleurs: Rouge
De Krzysztof Kieslowski, França-Suíça-Polônia, 1994
Com Irène Jacob (Valentine),
Jean-Louis Trintignant (o juiz)
e Jean-Pierre Lorit (Auguste, o vizinho de Valentine), Frédérique Feder (Karin, a namorada de Auguste), Samuel Le Bihan (o fotógrafo), Marion Stalens (a veterinária), Teco Celio (o barman), Paul Vermeulen (o novo namorado de Karin), Jean-Marie Daunas (o funcionário do teatro), Roland Carey (o traficante)
Argumento e roteiro Krzysztof Kieslowski & Krzysztof Piesiewicz
Colaboração no roteiro Agnieszka Holland & Edward Zebrowski &
Edward Klosinski
Traduçao dos diálogos para o francês Marcin Latallo …
Fotografia Piotr Sobocinski
Música Zbigniew Preisner
Montagem Jacques Witta
Casting Margot Capelier
Produção Marin Karmitz, MK2 Productions, France 3 Cinéma, CAB Productions, Zespol Filmowy, Canal+. DVD Versátil.
Cor, 99 min (1h39)
Disponível em DVD.
R, ****
O nome do juiz é Joseph Kern, é falado na cena do julgamento da ação dos vizinhos contra ele. Abraços!
Uau, Fernanda! Muito obrigado pela informação! Vou corrigir meu texto!
Obrigado mesmo!
Um abraço.
Sérgio