A Taberna das Ilusões Perdidas / The Rat Race

3.0 out of 5.0 stars

O tempo mexe com tudo. The Rat Race, dirigido pelo ótimo Robert Mulligan em 1960, fala das terríveis durezas que aguardam os jovens interioranos que chegam à grande metrópole. Mostra, por exemplo, o apelo à prostituição, a violência dos bandidos, golpes inesperados praticados por gente que parece decente.

Mas é um filme tão terno, tão suave, consegue botar tanta doçura no amargor que mostra, que hoje pode até parecer ingênuo, naïf, como as pinturinhas. Pode até parecer datado, ultrapassado, antiquado – como o título escolhido pelos distribuidores brasileiros, A Taberna das Ilusões Perdidas. “Taberna” não era lá uma palavra usual nem mesmo em 1960, quanto mais hoje – e o mais espantoso no título infeliz é que não há taberna alguma na história.

O que há, conforme indica o título, é uma corrida de ratos. Peggy Brown (o papel de uma Debbie Reynolds linda de doer aos 28 anos de idade) fala de corrida de ratos quando o filme está aí com cerca de meia hora. É uma beleza de diálogo, escrito por Garson Kanin (1912-1999), o autor da peça de teatro e do roteiro do filme. Falado com o outro protagonista da história, o saxofonista Pete Hammond Jr. (o papel de um Tony Curtis belo como um Apolo aos 35 anos), ela define a vida na grande metrópole como “a rat race”.

Peggy ganhou um concurso de dança na sua cidade natal na Flórida, e mudou-se para a Nova York na esperança de brilhar como dançarina na Broadway. Já é quase uma veterana de Nova York, e comeu o pão que o diabo amassou para tentar sobreviver sem ceder aos apelos que o dono do salão onde ela dança por uns centavos de dólar por minuto faz sem parar: é só ela topar o esquema tão antigo quanto a humanidade que ela ganhará muito dinheiro, diz sempre o nojento Nellie Miller (Don Rickles).

Pete é um recém-chegado; nós o vimos, na abertura do filme, entrar no ônibus da Greyhound na distante Milwaukee, Winconsin, e fazer a longa, interminável viagem até Nova York. Ao chegar, fez questão de caminhar – carregando seus instrumentos de sopro e mais as malas de roupa – até a Times Square, deslumbrado como um religioso diante da Grande Mesquita em Meca. (A imagem não é minha: é do próprio motorista do ônibus a quem ele pede informações.)

A vida não é a bela como na peça de teatro do ginásio

O acaso, as coincidências da vida imaginadas pelo dramaturgo acabam fazendo com que esses dois jovens aspirantes a um lugar no sol na capital do mundo acabem dividindo o quarto de pensão que era de Peggy mas do qual ela estava sendo despejada por falta de pagamento – todo o dinheiro que ganhava como taxi-dancer ia parar nas mãos do patrão Nellie, como pagamento da fortuna de US$ 500 que ela devia a ele.

Pouco antes de a dona da pensão, a sra. Gallo (Kay Medford), oferecer o quarto para o recém-chegado Pete, Peggy havia recebido a visita de um funcionário da telefônica (Norman Fell), que vinha para retirar o aparelho, por causa das contas não pagas. Sem saída, Peggy pediu que ele fizesse o especial favor de deixar o telefone ali por mais duas semanas – e fez o pedido de uma forma que ele poderia entender que haveria pagamento do favor.

Pete é colocado no quarto pela sra. Gallo, e Peggy se prepara para cascar fora – embora não tivesse a mínima idéia de para onde ir. Mas Pete, coração grande, oferece o acordo: ficariam juntos no quarto, até que conseguissem uma solução.

Tarde da noite, cada um dos dois se preparando para dormir em uma das camas do quarto, separadas por uma cortininha (como no clássico Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, de 1934), o homem da telefônica bate na porta, bêbado, e vai entrando e tirando o sapato. Ao ver que está ali um homem, pergunta quanto tempo ele vai levar.

E então, depois que se livra do homem da telefônica, Pete diz que pode ser de Milwaukee, mas sabe entender algumas coisas básicas. – “Acho que eu sou o último cara do mundo a acreditar que uma mulher bonita é uma melodia”, diz ele, convencido de que Peggy faz a única coisa que ela ainda se recusa a fazer para sobreviver.

O pequeno discurso que Peggy faz, em duas partes, é um brilho. Na primeira parte, ela está enfurecida:

– “Você precisa entender que não está mais numa peça de teatro do ginásio. Aqui é uma corrida de ratos, ao estilo de Nova York. E não existe nada mais difícil. Eu estou aqui há 5 anos tentando fazer com que meu nome seja mais que uma inscrição na caixa do correio. E já fiz de tudo para me manter viva nesta cidade – tudo, menos o que você está pensado.”

Na segunda parte, a voz de Peggy-Debbie Reynolds está bem mais fraca, frágil, quase quebrando:

– “Você acha que vai conquistar esta cidade em três meses. Pode levar a vida inteira e continuar sem nada. Espere até ser destroçado, levar dez chutes por dia, ver todas as portas baterem na sua cara. Espere para ver. Você vai mentir, roubar, trapacear, tentar se segurar pelas unhas, pegar dinheiro emprestado que você jamais vai conseguir pagar, prometer coisas que não vai conseguir cumprir.”

Um diretor sensível, inteligente

Vi The Rat Race bem garoto, duas vezes na mesma semana, em novembro de 1962, uma no dia 4, a outra no dia 8. Por uma coincidência fantástica, que vejo agora nas minhas anotações, entre uma e outra, vi outro filme de Robert Mulligan, Quando Setembro Vier/Come September.

Adolescente, vi vários filmes dele, e minha admiração nunca parou de crescer. Dá para dizer sem dúvida que Robert Mulligan (1925-2008) é um dos grandes realizadores americanos mais subestimados pela crítica.

Não tem uma filmografia ampla, vasta. Começou na então nascente TV, em 1952, e dirigiu mais de 100 shows e episódios de séries e filmes para a TV até 1960. Este The Rat Race foi apenas seu segundo longa-metragem – e ele faria um total de 20 filmes, até 1991, ano do último, No Mundo da Lua, um drama sobre a chegada à maturidade nos tempos de Elvis.

Entre The Rat Race e The Man in the Moon, fez uma obra-prima, O Sol é Para Todos/Too Kill a Mocklngbird (1962), e uma penca de filmes muito, muito bons: Houve uma Vez um Verão (1971), O Preço de um Prazer (1963). O Gênio do Mal (1965), À Procura do Destino (1965), A Inocente Face do Terror (1972), Tudo Bem no Ano que Vem (1978).

“Revelou, desde 1957, uma personalidade sensível e inteligente, cuja obra induz a estima”, escreveu Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “Dizem que os heróis de Mulligan são na maioria das vezes solitários, que não conseguem se integrar na sociedade. Mulligan nos dá de seus personagens retratos em tons claros. A delicadeza de seu traçado permite a ele expressar tudo o que deseja, especialmente no comovente e célebre Houve uma Vez no Verão.”

E o 501 Movie Directors complementa: “Nunca um realizador gritante, chamativo, fez uma série de filmes sensíveis, ambientados no passado, sobre a adolescência e o amadurecimento, como Summer of ’42 (1971) e adaptações literárias, como Same Time, Next Year (1978). Mesmo quando fazia um western ou um filme de gângster, tinha um enfoque cheio de nuance, mais lento, deixando o suspense surgir de situações tornadas inteligíveis através dos personagens, em vez de usar as armadilhas do gênero.”

Garson Kanin, o autor da peça em que se baseia o filme e também do roteiro, tinha um texto brilhante, e era um grande roteirista. Foi ator de teatro na Broadway, dirigiu 15 filmes, mas sua obra principal são os roteiros, às vezes em parceria, alguns deles com sua mulher Ruth Gordon (que também trabalhou como atriz em, entre outros, O Bebê de Rosemary, Ensina-me a Viver/Harold and Maude. e até em um episódio, ótimo, da série Columbo).

Kanin é autor ou co-autor dos roteiros de belos filmes da época de ouro de  Hollywood: Original Pecado/The More The Merrier, de George Stevens, 1943; A Costela de Adão, de George Cukor, 1949, com o casal Spencer Tracy-Katharine Hepburn; Nascida Ontem, também de Cukor, 1950; A Mulher Absoluta/Pat and Mike, ainda de Cukor e com Tracy-Hepburn, 1952, para citar só alguns.

Dois grandes músicos em pequenos papéis       

Uma curiosidade que tem que ser registrada: dois grandes músicos fazem pequenos papéis em The Rat Race. O saxofonista Gerry Mulligan faz papel de Gerry, um dos músicos que tocam no navio que faz um cruzeiro até a América do Sul. E é dele o saxofone nas sequências em que Pete-Tony Curtis está tocando.

Gerry Mulligan (1927-1996) é uma figura. Aventurou-se algumas vezes como ator de cinema. Naquele mesmo ano de 1960, fez o papel de um rapaz que tem um encontro – terrivelmente mal sucedido – com a protagonista de Essa Loura Vale um Milhão/Bells Are Ringing, interpretada pela ótima Judy Holliday. E, ainda em 1960, interpretou um reverendo em Os Subterrâneos da Noite, um drama com Leslie Caron e George Peppard.

O outro músico que tem um pequeno papel no filme é o autor da trilha sonora, o gigante Elmer Bernstein, que compôs as trilhas de 130 filmes e teve 11 indicações ao Oscar (levou um, por Positivamente Millie, de 1967, o musical com Julie Andrews).

Ele faz o papel de um dos membros do falso conjunto Red Peppers – o grupo de bandidos que aplica um terrível, doloroso golpe no pobre Pete.

A atmosfera real da grande cidade

Diz o livro The Paramount Story:

“Robert Mulligan, que tinha feto uma impressionante estréia na direção com Fear Strikes Out, voltou de seu trabalho na televisão para seu segundo longa, The Rat Race, de novo um vencedor, mas numa veia mais leve que o primeiro. Tony Curtis interpretava um músico de jazz e Debbie Reynolds uma moça de dance-hall, ambos pobres em uma cidade rica, mas lutando para chegar acima das multidões de outras pessoas em busca do sucesso em Nova York, e dividem um apartamento – no início, platonicamente. Além de seu romance que começava, não havia praticamente mais trama alguma no roteiro que Garson Kanin adaptou da sua própria peça de teatro: uma série de incidentes e esquetes com personagens típicos de Manhattan mantinham o filme indo em frente, com tal peculiar charme que a falta de uma história sólida passava despercebida. (…) A produção de William Perlberg-George Seaton, com sua trilha jazzística por Elmer Bernstein e o hábil trabalho de câmara de Robert Burk em Technicolar, capturou a atmosfera real da grande cidade.”

Há aí a incorreção de se falar em dividir um apartamento, quando na verdade se trata de um quarto de pensão.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 ao filme, que resumiu assim:

“Comédia-drama sobre candidato a músico (Curtis) e dançarina (Reynolds) chegando a Nova York, dividindo platonicamente um apartamento e se apaixonando. Gostosas participações especiais de Okie e Medford. Roteiro de Garson Kanin, baseado em sua peça.”

O Guide des Films de Jean Tulard é sucinto sobre Les Pièges de Broadway, as armadilhas da Broadway, o título escolhido pelos distribuidores franceses: “Um músico de jazz e uma dançarina dividem um apartamento de Nova York e enfrentam juntos as dificuldades das profissões. Um ‘estudo do meio’ bem sucedido, com bons números de jazz.”

Em cada país, um título bem diferente dos outros

Les Pièges de Broadway, as armadilhas da Broadway. É, os distribuidores tiveram dificuldades em encontrar um título para The Rat Race. Na Itália o filme se chamou Ragazzi di Província. Na Espanha, Perdidos en la Grand Ciudad. Em Portugal o título foi melhor que no Brasil: A Pousada das Ilusões. Um nome correto, já que os dois protagonistas vivem numa pensão, uma pousada, e não há taberna alguma na história.

O mais parecido com taberna que há é o bar-lanchonete do Mac, bem em frente ao prédio em que fica a pensão da sra. Gallo. Mac é interpretado por Jack Oakie e a sra. Gallo, como já foi dito, por Kay Medford – e é estranho que Leonard Maltin se refira aos dois atores como tendo participações especiais. Não são participações especiais: os dois personagens, o dono do bar e a dona da pensão, são os mais importantes da história, depois dos dois protagonistas, Pete e Peggy.

São personagens muito interessantes, esse Mac e essa sra. Gallo. Mac é velho um descendente de irlandeses que tem coração gigantesco. Trata com o maior carinho os dois jovens interioranos que foram tentar a sorte na grande metrópole e só encontram azares.

Mac percebe – talvez antes que a própria Peggy – que a moça está se apaixonando pelo músico ingênuo mas bom caráter que aceitou dividir o quarto com ela porque ela não tinha para onde ir. Sugere isso para ela, que ela está se apaixonando, e ela nega como pode. O comentário que Mac faz em seguida é uma delícia:

– “Não se envergonhe disso, não, é perfeitamente normal. Metade do mundo está procurando pela outra metade, você nunca reparou? Veja só: compradores e vendedores querendo se encontrar, e vice-versa. Bandidos procurando por patos, rapazes por moças. Empregos procurados por gente, gente procurando por empregos… ou por confusão. Ah, não, querida, não há nada de que se envergonhar.”

A sra. Gallo – a frequentadora mais assídua do bar de Mac – a princípio parece uma megera: não gosta de Peggy, em parte porque ela atrasa o pagamento, em parte talvez por inveja da juventude e da beleza da moça. Quer se ver livre dela. É dinheirista, está o tempo todo pensando em esquemas para ganhar um dólar a mais dos hóspedes. Mas, ao longo do filme, acaba se revelando até uma boa pessoa, por trás da máscara de avara e durona.

Talvez a simpatia toda de Mac, e o fato de a sra. Gallo ir se demonstrando afinal uma boa pessoa, ajude a tornar o filme um tanto ingênuo, aos olhos dos espectadores de hoje em dia. A verdade é que não foi o filme que envelheceu: foi o mundo que ficou muito mais brutal, impiedoso, cínico, ao longo destes quase 60 anos desde que The Rat Race foi lançado.

(A foto acima é uma preciosidade: Debbie Reynolds no set durante as filmagens de The Rat Race com a filhinha, Carrie Fisher. A futura Princesa Leia de Star Wars.)

Anotação em janeiro de 2019

A Taberna das Ilusões Perdidas/The Rat Race

De Robert Mulligan, EUA, 1960

Com Tony Curtis (Pete Hammond Jr.), Debbie Reynolds (Peggy Brown)

e Jack Oakie (Mac), Kay Medford (Mrs. Gallo), Don Rickles (Nellie Miller), Marjorie Bennett (Edie Kerry), Hal K. Dawson (Bo Kerry), Norman Fell (o funcionário da telefônica), Lisa Drake (Toni), Joe Bushkin (Frankie J), Sam Butera (Carl), Gerry Mulligan (Gerry)

Roteiro Garson Kanin

Baseado em sua peça teatral

Fotografia Robert Burks

Música Elmer Bernstein

Produção William Perlberg e George Seaton, Paramount Pictures.

Cor, 105 min (1h45)

R, ***

Título na França: Le Pièges de Broadway. Na Itália: Ragazzi di província. Em Portugal: A Pousada das Ilusões. Na Espanha: Perdidos en la Grand Ciudad.

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