Psicose é um grande filme. Ninguém discutiria isso. Mas é mais, muito mais. Psicose é uma paixão, um fenômeno, uma mania, uma obsessão.
Psicose é algo assim como Sherlock Holmes, o Conde Drácula, Frankenstein – ou, para pegar algo que tenha sido criado nos últimos 60 anos, e não no século XIX, Jornada nas Estrelas.
É uma compulsão. As audiências parecem sempre querer mais Psicose, como sempre quiseram mais Sherlock Holmes, Drácula, Frankenstein, Jornada nas Estrelas.
Houve Psicose – 2ª Parte, Psicose IV – O Início.
Houve Psicose versão 1998, algo, que eu saiba, inédito – uma refilmagem que copiava o original sequência por sequência, quadro por quadro, dirigido por um cineasta de grande prestígio, Gus Van Sant, com atores respeitáveis: Anne Heche com Marion Crane, Vince Vaughn como Normal Bates, Julianne Moore como Lila Crane, Viggo Mortensen como Sam Loomis, William H. Macy como Milton Arbogast.
Já houve um Bates Motel, em 1987, um filme para a TV em que um sujeito de cabeça ruim herda o motel de Norman Bates.
Ainda agora, 2013, 53 anos depois do original de Alfred Hitchcock, vem a série Bates Motel, mostrando a adolescência de Norman Bates, com a ótima Vera Farmiga como a mãe do personagem.
E ainda há Hitchcock, de 2012, um filme inteiramente dedicado a reconstituir como foi a filmagem do Psicose original, de 1960.
Um dia ainda vão fazer um livro, um filme, ou centenas de teses de mestrado para demonstrar que, mais ainda que um grande filme, o Psicose de Hitchcock foi uma das maiores estratégias de marketing da História.
Não há como negar: Psicose é um fenômeno cultural.
Não dá para não admitir que Psicose é um grande filme. E Hitchcock é uma maravilha
Já que sou mesmo um incorrigível sujeito que faz textos pessoais, nada objetivos, digo logo: nunca fui um fã especial de Psicose. Nunca achei Psicose uma obra-prima, nunca achei que Psicose fosse tão bom quanto diversos outros filmes do mestre Hitch.
Isso existe, gente que discorde da maioria – e é bom que exista. Unanimidade não é uma coisa inteligente, como dizia Nelson Rodrigues. Meu amigo Sandro Vaia, por exemplo, acha Os Pássaros um lixo – e é absolutamente salutar que haja alguém que não pense como a imensa maioria.
E então confesso: tinha preguiça de ver Hitchcock, o filme. Tinha visto A Garota, feito no mesmo ano de 2012, e gostado demais. Achava meio overdose dois filmes do mesmo ano sobre Hitchcock.
Mas Mary queria ver, e então me sentei diante do filme, embora com uma certa preguiça.
Hitchcock é uma maravilha de filme.
E aí deu vontade de rever Psicose. Umas três horas depois que vimos, extasiados, o filme do jovem diretor inglês Sacha Gervasi, nos sentamos para rever Psicose.
Psicose é um grande filme.
Não dá para não respeitar o filme. Não dá para não admitir que é um grande filme.
Embora eu continue achando que há vários outros filmes do mestre que são melhores, não dá para negar: Psicose é um grande filme.
Pessoalmente, personalissimamente, achei que Hitchcock é ainda melhor do que Psicose. Mas isso é apenas minha opinião pessoal, e ela vale menos que uma nota rasgada de três guaranis paraguaios.
Anthony Hopkins incorporou o verdadeiro Hitch. O espírito de Hitch baixou nele
Hitchcock venceu minha resistência, e me conquistou de imediato, já na primeira, soberba sequência.
Um letreiro informa que estamos na fazenda de Ed Gein, Wisconsin, em 1944. Há um diálogo entre dois homens, os dois irmãos Gein, que estão apagando um resto de incêndio na grama da fazenda. Um diálogo bem curto: um deles, Ed (Michael Wincott), mata o outro, Henry (Frank Collison), com uma pazada certeira na nuca. A câmara se move suavemente, como se movia a câmara dos filmes do mestre Hitch, e vemos Alfred Hitchcock, ao lado do lugar em que acabava de acontecer o crime. Tem uma xícara de chá na mão, e fala diretamente para a câmara, para o espectador. Fala com a voz de Hitchcock, com aquela voz estudadamente cavernosa, estudadamente marqueteira.
Claro, todos estamos cansados, exaustos de saber que Anthony Hopkins é um grande ator. Mas em Hitchcock ele se supera. Está com aqueles milagres protéticos todos, aquela maquiagem toda, para parecer rotundo e careca como o verdadeiro Hitch. Mas, por trás, pela frente, por muito além das protésticas e da maquiagem, Anthony Hopkins parece ter incorporado o verdadeiro Hitch. Como se o espírito de Hitch tivesse baixado nele, numa sessão pesada de candomblé baiano, embora eles sejam todos ingleses, e ninguém entenda os ingleses, incluindo eles mesmos.
Peço perdão por insistir nisso, mas insisto: Sir Anthony Hopkins é um grande ator, mas, faça o for, é sempre Anthony Hopkins. Seja o assassino serial e canibal Hannibal de O Silêncio dos Inocentes, seja o mordomo perfeito de Vestígios do Dia, seja o escritor de Terra das Sombras, seja o livreiro londrino da Charing Cross Road em Nunca te Vi, Sempre Te Amei, seja o ex-presidente John Quincy Adams de Amistad, ele é sempre, antes de tudo, Anthony Hopkins.
Pois não é que em Hitchcock, dirigido por um fedelho em seu primeiro longa-metragem de ficção, Sir Anthony Hopkins deixou de ser ele mesmo e virou Alfred Hitchcock?
Só lá pela décima fala reconheci a voz do ator, por trás da imitação maravilhosa da voz do personagem.
Hitch falava de crimes monstruosos como se eles fossem uma gostosa piada
Enquanto Alfred Hitchcock, xícara de chá na mão, de pé na fazenda de Ed Gein, se dirige à câmara, ouvimos uma melodia jocosa, brincalhona. Posso estar enganado, mas tenho quase absoluta certeza de que é a melodia da abertura do Alfred Hitchcock Presents, o programa de TV que ele manteve durante anos na década de 1950, e ajudou a transformá-lo em grife, em moda, em ídolo da cultura de massas.
Eis o que Alfred Hitchcock baixado em Anthony Hopkins diz para a câmara, para o espectador:
“Oh, boa noite. Bem, irmãos vêm matando irmãos desde Caim e Abel, mas nem eu esperava por isso. Fui tão surpreendido quanto o pobre Henry ali no chão. E pelo jeito as autoridades compartilharam a minha ingenuidade. Em outras palavras, acreditaram na história do jovem. Que Henry caiu, bateu com a cabeça numa pedra e morreu asfixiado pela fumaça. Por outro lado, se elas tivessem acreditado, Ed Gein não teria tido a oportunidade de cometer os crimes hediondos que o deixaram muito famoso. E nós, é claro, bem, não teríamos o nosso pequeno filme, não é?”
O tom dessa abertura de Hitchcock é extraordinariamente parecido com o tom com que o realizador falava para a câmara, fosse nas entrevistas marqueteiras produzidas pelos estúdios, fosse na introdução do programa de TV Alfred Hitchcock Presents.
Ele falava de crimes horrorosos com humor, como se os crimes fossem uma gostosa piada inglesa.
Hitchcock, o filme, mostra brilhantemente como Hitch, o gênio de cinema e marketing, não necessariamente nessa ordem, se apresentava tanto na vida quanto diante das câmaras – como uma estudado, criteriosamente auto-produzida persona. O mestre de suspense, o insuperável gênio, falava com humor. E escandia as sílabas propositalmente. Não falava the master of suspense, ou where the corpse lies; ele falava the mas-ter of sus-pen-se, the corp-se.
Exagerava na pronúncia britânica. Exagerava no uso de palavras que o diferenciariam do resto dos diretores de cinema. Naquele texto de abertura, por exemplo, ele usa naïveté, com a pronúncia francesa.
Adorava a palavra corpse – cadáver.
Os geniais marqueteiros de si próprios inventam um jeito de falar peculiar, marcante. Nós, brasileiros, conhecemos um exemplo perfeito disso.
Em 1959, falava-se que Hitch deveria se aposentar, que havia novos mestres do suspense
Da fazenda em Wisconsin em 1944 pula-se diretamente para Chicago, onde, na noite de 8 de julho de 1959, aconteceu a avant-première do então mais recente filme de Alfred Hitchcock, Intriga Internacional/North by Northwest. Um repórter pergunta ao celebrado diretor se já não estaria na hora de ele se aposentar.
De volta à bela mansão em que vivia em Los Angeles com sua mulher Alma Reville (interpretado por Helen Mirren, com o brilho de sempre), Hitch lê na banheira uma matéria do Times de Londres que fala dos novos mestres de suspense – Claude Chabrol, Jules Dassin, Georges-Henri Clouzot. E pergunta para Alma: – “Por que eles ficam procurando um novo, se têm o original?”
O filme mostra então Hitch procurando um novo projeto, naquela segunda metade de 1959. Quando lê o livro de Robert Bloch, recém-lançado, Psycho – inspirado nos crimes cometidos por Ed Gein em Wisconsin depois de ter dado aquela pazada fatal no irmão –, decide que aquele é o material básico para seu filme seguinte.
O que vem depois é uma maravilha.
Já foram feitos vários bons filmes sobre filmes, sobre como foram as filmagens de grandes obras. A Sombra do Vampiro, de E. Elias Merhige, recontando como F. W. Murnau fez seu Nosferatu, de 1922, é um belo filme. Sete Dias com Marilyn, sobre as filmagens de O Príncipe Encantado, é excelente. A Garota, de Julian Jerrold, também de 2012, não é apenas sobre as filmagens de Os Pássaros, e fala também de Marnie, mas pode entrar nessa categoria, e é fascinante.
Este Hitchcock é tão bom quanto A Garota; são dos melhores filmes que pode haver sobre como foi a produção de outro filme. E o fascinante é que os dois se completam, se complementam – até porque Os Pássaros foi o filme seguinte de Hitch, logo após Psicose. É fascinante como os dois não se chocam. Muito ao contrário: o retrato que pintam do realizador genial é bastante semelhante.
O filme vai fundo na relação singular entre Hitch e sua mulher Alma
O Hitch que Hitchcock mostra é presunçoso, cheio de si, um poço de empáfia, o eterno marqueteiro de si mesmo, sempre a fazer sua própria elegia – mas, ao mesmo tempo, no fundo, atrás da fachada, da façade, tinha fraquezas, temores, inseguranças. Dependia de Alma para tudo.
Eterno galanteador de suas atrizes, muitas vezes muito mais que galanteador, que beirava o assédio sexual, Hitch, segundo o filme mostra, era capaz de um ciúme quase doentio por Alma.
O filme do jovem Sacha Gervasi vai muito fundo na relação do casal. Fala tanto da gênese e da produção de Psicose quanto do relacionamento singular, único, entre Hitch e sua mulher.
Sempre se soube que Alma Reville exercia grande influência sobre Hitch e seus filmes. Seu nome raramente aparecia nos créditos, mas ela revisava os roteiros antes das filmagens, discutia cada cena com ele. Era do ramo, conhecia cinema profundamente: já trabalhava como montadora na Inglaterra antes que ele começasse a trabalhar na profissão. Foi chefe dele no início da carreira de Hitch.
Hitchcock, o filme, mostra que Alma Reville teve importância fundamental na feitura de Psicose.
Há um diálogo extraordinário que mostra bastante dessa relação especial entre os dois:
Hitch: – “Estou sob uma pressão extraordinária com este filme e o mínimo que você poderia fazer seria me dar total apoio.”
Alma: – “Total apoio! Nós hipotecamos nossa casa! Sou sua mulher! Eu comemoro com você quando as críticas são boas. Eu choro por você quando são ruins. Eu aguento todas essas pessoas que olham através de mim como se eu fosse invisível porque tudo o que eles vêem é o grande e glorioso Alfred Hitchcock!”
Os desempenhos dos dois atores que interpretam Hitch e Alma são estupendos, extraordinários. Foi a primeira vez que Anthony Hopkins e Helen Mirren contraceneram, embora sejam os dois veteranos, com longas carreiras. Ele é de 1937, do País de Gales, tem mais de 120 filmes no currículo; ela é de 1945, de Londres, mais de 110 filmes.
Ao ver Hitchcock, a gente tem certeza de que valeu a pena esperar pelo encontro dos dois grandes atores britânicos.
A escolha dos atores não poderia ser melhor. James D’Arcy faz um perfeito Tony Perkins
O trabalho de casting foi uma maravilha. Scarlett Johansson foi uma belíssima escolha, e está excelente como a Janet Leigh que interpreta Marion Crane. Toni Collette, sempre ótima, faz uma perfeita Peggy Robertson, a assistente do diretor. Achei Jessica Biel pouco parecida fisicamente com Vera Miles, mas ela está bem.
Um dos grandes achados foi colocar James D’Arcy para interpretar Anthony Perkins, o então jovem ator que faria o papel central, o de Norman Bates.
A sequência em que Hitch recebe em seu escritório o garotão Anthony Perkins, e o jovem ator começa a falar, me deixou de boca aberta, queixo caído: aquilo ali não parece um ator interpretando Tony Perkins, é Tony Perkins aos 27 anos de idade, recém-saído do set em que tinha feito Tall Story, no Brasil Até os Fortes Vacilam, ao lado da gatérrima Jane Fonda aos fresquíssimos 23 aninhos!
Impressionante.
Vera Miles aconselha Janet Leigh a tomar cuidado com o diretor
Um pouquinho sobre as relações de Hitch e suas atrizes.
A Garota mostra, em detalhes, como Hitch ficou obcecado por Tippi Hedren, então com 33 anos de idade, uma bela carreira como modelo mas nenhuma experiência como atriz. Naquele encontro entre a bela e a fera, o monstro e a garota, Hitch fez de quase tudo. Torturou-a; assediou-a abertamente; quase a levou à loucura.
Hitchcock sugere que Hitch assediou Vera Miles pesadamente; os dois haviam trabalhado juntos em 1955 e 1956; Vera Miles trabalhou num dos episódios de Alfred Hitchcock Presents e depois em O Homem Errado.
Hitchcock não diz com todas as letras como foi o assédio, que tipo de avanço o velho safado fez para cima da atriz, mas mostra Vera Miles aconselhando Janet Leigh a tomar cuidado com ele.
Janet Leigh tinha com Tony Curtis um casamento bastante estável para os padrões de Hollywood; tinham-se casado em 1951, eram pais duas crianças, Jamie Leigh Curtis e Kelly Curtis (que viriam a ter suas carreiras como atrizes). Era tida como uma jovem mulher certinha.
Sobre ela, segundo mostra o filme, Hitch não avançou. Derramou-se em elogios à sua beleza, durante o primeiro encontro, em um restaurante, em que Alma estava também presente. Os galanteios deixaram Alma irritadíssima – a cena é ótima, Alma se refugiando no banheiro para respirar fundo e não demonstrar sua raiva.
Mas não passou disso. Ao contrário do que parece ter feito com Vera Miles, e seguramente fez com Tippi Hedren, com sua estrela de Psicose Hitch não avançou o sinal.
E é gostoso – especialmente para quem gosta de saber esses detalhinhos – ver Janet Leigh, na pele esplendorosa de Scarlett Johansson, dizer para Vera Miles-Jessica Biel que, para quem havia trabalhado com Orson Welles, ser dirigida por Hitch era até fácil. (Orson Welles dirigiu Janet Leigh em A Marca da Maldade/Touch of Evil, em 1958, o ano anterior às filmagens de Psicose.)
Janet Leigh chega a oferecer uma carona ao velho safado, após um dia de filmagem em que o carro do diretor não apareceu para apanhá-lo. Dirigia um Fusquinha, e o rotundo gênio faz uma observação a respeito da pequenez do veículo, mas – ao contrário do que fez com Tippi Hedren, em situação semelhante, no filme A Garota, não tenta botar suas mãozinhas gordas na senhora Tony Curtis.
Assim como A Garota, este Hitchcock mostra mais de uma vez a fixação do mestre por Grace Kelly, a atriz que ele e Hollywood haviam perdido para o príncipe Rainier, do Mônaco.
Um filme de poucas e longas seqüências, com diferentes climas, atmosferas
Rever Psicose logo após ver Hitchcock é uma experiência fascinante.
Nada, no filme, parece indicar todo o clima de tensão que cercou a produção – o embate duro e freqüente com a censura, o Motion Picture Production Code, a falta de apoio do estúdio, a Paramount, o fato de Hitch ter resolvido bancar o filme com seu próprio dinheiro, a pressão de não poder atrasar um dia as filmagens para não estourar o orçamento, as crises de ciúme e de insegurança do realizador.
O resultado não deixa transparecer nenhum problema.
Psicose é uma beleza de filme.
Três características me impressionaram muito, nesta revisão agora, após tanto tempo.
A primeira: é fantástico como o roteiro é enxuto. O filme tem 109 minutos, que passam assustadoramente depressa; mas o incrível é como há poucas seqüências. São seqüências longas, feitas de planos longos, bem ao contrário do que seria o costume em especial a partir dos anos 1980.
A única exceção, o único momento em que os planos são bem rápidos, é a seqüência do chuveiro. E esse detalhe – a mudança de ritmo que acontece uma única vez – realça ainda mais aquela sequência, dá a ela uma dimensão especial.
Se fosse um livro, Psicose teria poucos capítulos – todos um tanto longos.
O roteiro foi escrito por Joseph Stefano, que não havia trabalhado antes com Hitch e não tinha ainda grande experiência; antes de Psicose, havia escrito roteiros para quatro séries de TV e um único longa-metragem, A Orquídea Negra, de Martin Ritt, um dramalhão com Anthony Quinn e Sophia Loren.
Apesar da pouca experiência, e do fato de estar colaborando pela primeira vez com aquele monstro-sagrado que inspirava medo nos colaboradores, Joseph Stefano fez um belíssimo trabalho. Bem – ou ele fez, ou Alma Reville o revisou bem, porque o roteiro é uma aula de concisão.
A segunda característica é como, tendo um número pequeno de seqüências, Psicose consegue ter climas, atmosferas diferentes, ao longo dos 109 minutos. É como se Hitch tivesse resolvido passear por diversos gêneros em um único filme.
Na abertura, vemos um drama romântico, quase um melodrama: uma bela mulher, Marion Crane (Janet Leigh), tem uma relação furtiva, ilícita, na época tida como “pecaminosa”, com Sam Loomis (John Gavin). Encontram-se em hotéis baratos na cidade em que ela vive, Phoenix, Arizona. Ele não gosta de ser visto com ela em lugares públicos. Não por ser casado – ele é solteiro. Mas não admite a possibilidade de se casar com Marion porque não está em condições de dar a ela uma vida confortável; ao morrer, o pai deixou para ele um armazém e uma grande quantidade de dívidas. (A gente sabe disso: alguns pais deixam heranças malditas para os filhos.)
E então encontram-se às escondidas, em hotéis baratos – o que deixa Marion embaraçada, envergonhada. Em 1959, 1960, aquilo era de fato considerado “pecaminoso”.
A sequência seguinte tem um clima de thriller, quase um noir: de repente, por um acaso fortuito, aquela mulher bela, já tendo passado bem dos 30 anos (naquela época, a juventude acabava cedo), se vê diante de uma pequena fortuna – US$ 40 mil em dinheiro, em notas de US$ 100.
Apenas quatro anos depois, em Marnie, Hitch contaria a história de uma jovem loura, boa secretária (Tippi Hedren, é claro), que é uma ladra compulsiva, uma cleptomaníaca.
Marion Crane, loura, boa secretária de uma imobiliária no centro de Phoenix, não é ladra, de forma alguma. Muito provavelmente jamais havia roubado um cent do patrão.
Mas de repente se vê, numa sexta-feira à tarde, depois de ter saído do hotel em que trepara com o amante endividado, com uma pequena fortuna em notas verdinhas.
A sabedoria popular diz que a ocasião faz o ladrão. Oscar Wilde dizia que a melhor maneira de enfrentar a tentação é ceder a ela.
E então o thriller, o quase noir, se transforma num road movie. E são espetaculares as tomadas de Marion Crane-Janet Leigh dirigindo pelas ruas de Phonix e depois pelas estradas do Arizona, rumo à cidadezinha da Califórnia em que mora o amante, carregando na bolsa o caminho para o casamento e a felicidade.
Vemos no rosto de Marion as dúvidas, as inquietações, os temores, enquanto na cabeça dela ressoam as vozes do amante, do patrão.
Roubar é para profissionais. Gente honesta roubar, pela primeira e única vez na vida, é uma tremenda fria.
O que começou como melodrama, virou thriller com tons noirs e depois road movie vira terror quando Marion Crane, exausta depois de dirigir o sábado inteiro, à noite, sob chuva, sai da estrada principal e vai dar no sinal que indica o Bates Motel.
Quando Norman Bates (Anthony Perkins) conversa com Marion Crane na sala atrás do escritório do motel, enquanto ela come um sanduíche que ele havia preparado, o espectador já começa a sentir calafrios.
O lugar é lúgubre, assustador. A sala é escura, com aquelas aves empalhadas na parede.
Aves! Aves assustadoras! Será que o gênio louco já pressentia que seu filme seguinte seria Os Pássaros, quando botou aquelas aves empalhadas na sala lúgubre em que Marion Crane ouve Norman Bates contar um pouco de sua triste história de vida?
Toda a trama é impressionantemente bem construída, sem furo algum
A terceira característica que me impressionou demais nesta revisão é como toda a trama que envolve Norman Bates e sua mãe é bem construída.
Fiz um esforço para ver o filme como se o estivesse vendo pela primeira vez, como se não soubesse o que viria em seguida, como se não soubesse o desfecho, a reviravolta. Claro que é impossível rever Psicose não sabendo do que virá, mas fiz um esforço. E, com isso, verifiquei mais uma vez como tudo é bem construído. Como não há furo, como tudo tem lógica, como as peças todas se encaixam.
A sequência do chuveiro vem quando o filme está com 45 minutos. Menos da metade da duração.
Não tem jeito: é, sem qualquer sombra de dúvida, uma das sequências mais impressionantes, marcantes, antológicas da história do cinema.
É absurdamente bem realizada. É um estupor.
Estranhamente, Hitchcock não menciona Pat, a filha do mestre
Volto em seguida, para encerrar esta anotação interminável, à sequência do chuveiro. Mas antes gostaria de fazer um registro sobre Pat Hitchcock.
Patricia Hitchcock, a filha única de Hitch e Alma, nascida em 1928, teve pequeninas participações como atriz em Pavor nos Bastidores/Stage Fright (1950) e em Pacto Sinistro/ Strangers on a Train (1951). Participou ainda de algumas séries de TV, inclusive em episódios da série Alfred Hitchcock Presents.
Em Psicose, aparece na segunda seqüência, a que se passa na imobiliária em que Marion Crane trabalha. Ela é Caroline, colega de Marion – as duas são as únicas funcionárias da imobiliária além do patrão. Quando Marion volta do encontro com Sam Loomis no hotel, ela e Caroline conversam durante alguns instantes.
Pat Hitchcock, ao que tudo indica, não se deu bem na carreira de atriz – talvez por não ter fina estampa, sei lá. Mas se tornou assim uma espécie de guardiã da história do pai; é presença constante nos longos documentários feitos para o lançamento dos filmes de Hitch em DVD.
Senti falta de Pat Hitchcock em Hitchcock. Não há qualquer menção a ela. Os pais não falam dela, ela não aparece na casa dos pais, nem no estúdio, em hora alguma. Não há menção a ela também nos fatos triviais sobre as filmagens de Hitchcock no IMDb.
Muito provavelmente Pat não aprovou a realização do filme.
Falta um nome fundamental nos créditos de Psicose
De volta à sequência do chuveiro – e encerrando.
Deve ser rigorosamente verdadeiro tudo o que Hitchcock mostra sobre a feitura da seqüência do chuveiro. Não há por que duvidar. O filme se baseia no livro Alfred Hitchcock and the Making of Psycho, de Stephen Rebello, que parece ser o resultado de extensa e cuidadosa pesquisa.
Agora, se for mesmo verdade, os créditos iniciais de Psicose – aliás, uma maravilha de créditos iniciais, bolados pelo gênio de Saul Bass – não refletem a realidade.
Falta um nome fundamental nos créditos iniciais de Psicose.
Houve um crime, nos créditos iniciais de Psicose. Uma omissão desse porte é crime. Hediondo.
Mas, é claro, não vou ficar relatando como se deu o crime. Seria spoiler. Seria estragar um dos muitos prazeres que Hitchcock dá ao espectador.
O fato é que Hitchcock indica que o velhinho inglês louco e safado era sem dúvida um gênio cinematográfico. Mas era ainda mais genial como marqueteiro de si mesmo.
Anotação em julho de 2013
Hitchcock
De Sacha Gervasi, EUA, 2012
Com Anthony Hopkins (Alfred Hitchcock), Helen Mirren (Alma Reville), Scarlett Johansson (Janet Leigh)
e Danny Huston (Whitfield Cook), Toni Collette (Peggy Robertson), Michael Stuhlbarg (Lew Wasserman), Michael Wincott (Ed Gein), Jessica Biel (Vera Miles), James D’Arcy (Anthony Perkins), Richard Portnow (Barney Balaban), Kurtwood Smith (Geoffrey Shurlock), Ralph Macchio (Joseph Stefano), Frank Collison (Henry Gein)
Roteiro John J. McLaughlin
Baseado no livro Alfred Hitchcock and the Making of Psycho, de Stephen Rebello
No DVD. Produção Fox Searchlight Pictures, Cold Spring Pictures e Montecity Picture Company). DVD Fox.
Cor, 98 min
***1/2
Psicose/Psycho
De Alfred Hitchcock, EUA, 1960
Com Anthony Perkins (Norman Bates), Janet Leigh (Marion Crane), Vera Miles (Lila Crane), John Gavin (Sam Loomis), Martin Balsam (Milton Arbogast)
e John McIntire (xerife Chambers), Lurene Tuttle (Mrs. Chambers), Simon Oakland (Dr. Richmond), Anne Dore dublê de Anthony Perkins na cena do chuveiro), Marli Renfro (dublê de Janet Leigh na cena do chuveiro)
Roteiro Joseph Stefano
Baseado na novela de Robert Bloch
Fotografia John L. Russell Jr.
Música Bernard Herrmann
Montagem George Tomasini
No DVD. Produção Alfred Hitchcock, Shamley Productions. DVD Universal
P&B, 109 min
R, ***1/2
Servaz: longo, sim, mas absolutamente saboroso: não perdi uma palavra. Não vi Hitchcock (o filme), mas a música de Alfred Hitchcock Presents (a série) era ‘Marche Funèbre d’une Marionette’, de Gounod.
Será que ‘Psicose’ é melhor do que ‘Janela Indiscreta’? Revejo um e acho que é o melhor, revejo outro e acho que é o melhor. E quando revejo ‘Os Pássaros’, discordando do amigo Sandro Vaia, também acho que é outro grande filme do mestre Hitchcock. E por falar em mestres:lá em cima, quando você escreve de filmes sobre filmes, não podemos esquecer de dois que, particularmente, considero grandes: ‘Coração de Caçador’ (White Hunter Black Heart), de 1990 dirigido e interpretado por Clint Eastwood e que, baseado no livro de Peter Viertel, conta um pouco da história do mestre John Huston chegando ao então Congo Belga, em 1951, para dirigir o imperdível ‘Uma Aventura na África” (The African Queen).
Luiz Carlos, caríssimo, muito obrigado pela mensagem – e pela informação sobre a música. Não sabia que era de Gounod. Vou atrás.
Elói, você tem toda razão: “Coração de Caçador” tem que entrar na lista dos belos filmes sobre filmes!
Um abraço!
Sérgio
Eu já havia comentado em ” A Garota ” , que gostei muito mais do Hitchcock na pele do Hopkins do que com Toby Jones , no resto , tudo ótimo.
” Ela não estará nua , estará usando uma touca de banho ” .
” Todos temos nossas trevas de violência ” .
” Nenhum filme americano nunca achou necessário mostrar um vaso sanitário , muito menos dar descarga” E Hitch responde .
” Talvez devêssemos gravar o filme na França e usar um bidê no lugar do vaso ” .
” Um filme de Hitchcock só tem um diretor “.
São frases que guardei deste ótimo filme.
Todo o elenco está ótimo e,na minha opinião, destaque especial para Hopkins ,Helen Mirren e também para a Scarlett e a Tony Collette.
“Psicose” já tem muito , muito tempo mesmo, que assisti e ainda o tenho todinho na minha lembrança. Um filmaço,não tem como esquecer.
Também lá em ” A Garota ” , digo que dos 6 filmes que vi do Hitch, os q
Não sei o que aconteceu . Teclei em algum lugar errado e meu comentário foi , sem que eu terminasse. Continuo daqui.
Dos 6 filmes que vi do Hitch , os que mais gostei foram ” Psicose ” – ” Os Pássaros ” e ” Janela Indiscreta ” ( este eu esqueci de citar, lá).
Aquela música da cena do chuveiro virou um clássico, não é mesmo ?
Foi dito também em algum lugar , não lembro, que a cena do assasinato na escada foi feita de uma maneira diferente.
Anthony Perkins teve uma atuaçãodeslumbrante.
Um filme maravilhoso . So mesmo Hitch para fazê-lo.
Continua sendo para mim o número 1 do Hitch.
Quero muito assistir ” Marnie ” mas ainda não encontrei .
Um abraço !!
Eu jurava que você já havia escrito sobre Hitchcock, o filme. Eu vi uns pedaços numa viagem de avião este ano, daquele jeito: com fones no ouvido, a tela pequena e meio longe e pra completar estava dublado em outra língua. Ainda tinha um chato puxando conversa. Mas gostei do pouco que vi. O mais interessante é que uma prima que estava comigo, de apenas 16 anos, também parou pra prestar atenção.
Eu sou boa fisionomista, mas fiquei surpresa ao saber que quem faz o Hitchcock é o Anthony Hopkins, ele está irreconhecível!
Voltei da viagem e esqueci do filme, só fui vê-lo depois de ler seu texto. Mas fiz o contrário de você: primeiro vi Psicose (eu ainda não tinha visto, era uma falha, só conhecia a cena “principal” do banheiro e a música).
Não achei tudo isso que falam, foram anos ouvindo sobre esse filme, e as expectativas eram altas, mas concordo com as qualidades que você diz que ele tem, principalmente o roteiro enxuto (acho esses filmes antigos meio engraçados por causa dos cenários fakes).
Não imaginava que a personagem principal morreria antes do fim, aliás, eu pensava que tivesse sido apenas uma tentativa de assassinato (nunca li spoilers). Hitch foi ousado.
Gostei do filme, mas acho que ele é apenas o mais famoso dele, não o melhor. Um dos meus preferidos ainda é Festim Diabólico, que eu vi bem novinha com minha mãe, sem nem saber quem era o diretor.
Oi Jussara, tudo bem amiga?
Vim aqui só para um ” papinho “.
Lá no texto do Sergio sôbre “A Garota” , não sei se voce leu ( podes ter lido e não ter feito comentário ) eu digo que vi também do Hitch , ” 39 Degraus ” – “Rebeca” – ” Pacto Sinistro ” e também ” Festim Diabólico “.
Tremenda paranóia daqueles dois loucos nesse filme. Gostei muito também mas sei lá , os meus 3 preferidos são esses que citei.
Aquela música, até hoje ela arrepia.
O Hitch de fato foi muito ousado para aquela época, principalmente com a cena do chuveiro.
Depois que vi o filme , li um comentário que por opção do Hitch, o filme foi feito em preto e branco porque em cores ficaria impactante demais pelo que tem nessa cena.
Era isso. Um bom domingo prá voce, amiga.
Um abraço, Sergio!!
Hitchcock também é bom, e já começa com uma referência à Psicose quando mostra Helen Mirrer se trocando, de saia e sutiã, lembrando a cena onde a Marion está no quarto do motel com o Sam, e começa a se trocar para voltar ao trabalho (o modelo do sutiã é idêntico, e nem é mais usado hoje). Dizem que ele faz várias referências aos filmes do Hitch, mas eu só percebi essa, pois faz anos que assisti aos seus filmes, preciso revê-los.
Não reconheci o Ralph Macchio, o eterno Daniel Larusso, de Karatê Kid, na pele do roteirista, tive que assistir novamente a essa parte onde ele aparece.
Sobre o Hitch ter ciúme quase doentio da Alma, talvez tenha a ver com a insegurança dele e a baixa auto-estima (com aquele corpanzil não devia ser difícil se sentir pra baixo – e naquela época a obesidade ainda não tinha virado epidemia); também dizem que quando uma pessoa é muito ciumenta é pq ela tem medo de que lhe façam o que ela faz (flertar, dar em cima descaradamente, galinhar). Ao mesmo tempo, dizem que ele era cruel com suas atrizes preferidas porque sabia que nunca teria nada com elas (explica mas não justifica).
Apesar de tudo, da fama e do sucesso, ele se ressentia por não reconhecerem o seu talento. Dizem até que seus filmes só foram considerados obras-primas mais tarde, que na época eles eram vistos apenas como diversão. A cena no psicólogo me fez sentir um pouco de pena.
Há muitas lendas sobre a sua personalidade, mas acho que qualquer pessoa meio gênio naquilo que faz, principalmente nesse meio onde há muita exposição e crítica, vai ter o ego inflado e vai ser sempre um pouco afetada, orgulhosa e até cruel se não tiver uma base sólida, os pés no chão, até pq faz-se sucesso e ganha-se muito dinheiro. Se para uma pessoa normal não é fácil lidar com críticas, fico imaginando a cabeça desses famosos; ainda mais ele, que era neurótico, exigente, compulsivo. Ele ainda teve a sorte de ter a Alma ao seu lado, do contrário, talvez não tivesse chegado tão longe. Na época do lançamento, a neta deles disse que se sentia agradecida por finalmente reconheceram a importância da avó dela.
Achei interessante eles dormirem em camas separadas (sou super a favor), mas queria saber o porquê.
Não sabia que o Anthony Perkins era homossexual, embora tenha sido casado com uma mulher, parece que ele nunca negou que fosse.
Não sou muito de ficar admirada com os cenários, porque Hollywood pode tudo, mas gostei muito da “casa” deles, dos móveis, da piscina, da grama super verde (acho que usaram algum filtro na câmara, não é possível), achei tudo de bom gosto, he. Eu gosto de como as construções eram antes, casas e decorações modernas não fazem meu estilo.
Oi, Ivan,
Eu li o texto e os comentários, não comentei porque não tinha visto o filme, e agora que assisti ao Hitchcock me deu preguiça.
Eu não vi nenhum desses filmes que você cita (se vi, não lembro); qualquer hora preciso baixar os que já vi, e daí aproveito e baixo esses que você falou também.
Festim Diabólico me marcou, e depois que descobri que ele teve apenas dois cortes, fiquei achando que Hitch era o cara e esse era o filme, hehehe. Preciso revê-lo pra saber se mantenho minha opinião.
Não sabia dessa questão da opção pelo preto-e-branco.
Aquela música virou um clássico, e na sequência do chuveiro o efeito que ela causa é sensacional. Eu vi o filme à noite, quase me arrependi. Tive que parar na metade porque fui ficando impressionada, aquele Norman Bates é muito sinistro.
Abraços.
Oi,pessoal, adorei,adorei,adorei o filme, tanto que o vi duas vezes seguidas. É muito bem feito e interpretado mas o personagem de quem mais gostei foi a Alma, com o seu senso de humor e com a força que deu ao Hitchcock nessa empreitada. Fiquei muito espantada de que a produtora não quisesse bancar o filme e o casal tivesse que fazê-lo às próprias custas. A Alma cortou muitas despesas para tanto, com reclamações do marido, como o foie gras importado de Paris rsrsrs. E o humor do Hitch não ficou atrás, sugerindo àquelas mentes puritanas que já que o vaso sanitário as incomodava tanto, usassem um bidê. E as outras gracinhas lembradas pelo Ivan são realmente impagáveis.
Acho que já vi todos os filmes do diretor, só não gostei dos pássaros, achei muito impactante e até repugnante, mas sou fã de carteirinha dele. Quanto ao preto-e branco, já li que tinha a ver com a cena do chuveiro, que todo aquele sangue em vermelho iria ficar meio over, não sabia que a escolha se referia ao filme todo. Mas é claro que essa escolha sempre dá mais dramaticidade a qualquer filme que seja do gênero.
Guenia Bunchaft
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