Chéri


Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: Na primeira vez em que se reuniram, em 1988, os ingleses Stephen Frears e Christopher Hampton e a californiana Michelle Pfeiffer realizaram uma obra-prima, Ligações Perigosas/Dangerous Liaisons. Ao se encontrarem novamente, 21 anos depois, em 2009, fizeram outro filmaço – Chéri é um brilho.

Não pode haver comparação, conforme certamente aprendeu qualquer pessoa que tenha estudado alguma coisinha, entre o valor literário da obra clássica de Chordelos de Laclos (1741-1803) que deu origem ao primeiro filme com a novelinha de Colette (1873-1954) publicada em 1920, em meio a seguidos escândalos que protanizou em sua vida real, e que é a base deste filme aqui. (Na verdade, o roteiro de Hampton mistura dois livros de Colette, Chéri e La Fin de Chéri, de 1926.)

 E, no entanto, Chéri tem muito a ver com Ligações Perigosas – e não só porque o diretor, o roteirista e a atriz são os mesmos.

As duas são histórias de sedução e sexo, e não necessariamente de amor; o amor, quando aparece, é de maneira inesperada, e não é bem-vindo. As duas mostram ambientes riquíssimos que se nutrem da beleza, da aparência, das roupas, da quantidade de bens materiais acumulados e da falsidade, da mentira, da falta de moral. As duas se passam na mesma França – a primeira, na França da nobreza, pré-Revolução de 1789; a segunda, na França da belle époque, os primeiros anos do século XX, pré-Primeira Guerra Mundial. Os personagens das duas histórias são gente muito rica, ociosa, avessa ao trabalho.

         Um filme visualmente deslumbrante, e com belo texto

Ou melhor: não é exatamente assim. Os nobres de Ligações Perigosas são, sim, gente que nunca trabalhou; as damas de Chéri já trabalharam bastante, na cama. Mas agora, já experientes, vividas, com décadas de profissão, vivem da fortuna acumulada. Porque a profissão de cortesã, de amante dos muito, muito ricos, rendia grandes, imensas fortunas.

É o que nos mostram as primeiras seqüências e o narrador de Chéri. As primeiras seqüências – assim como todas as dos 92 minutos deste filme – são visualmente deslumbrantes, de uma beleza extraordinária. E o texto que o narrador nos apresenta é igualmente brilhante (o narrador, de belíssima voz, verifico depois de escrever toda esta anotação, é o próprio Stephen Frears!). Fala de algumas cortesãs – usando o termo menos eufemístico de whore, ou puta – famosas da belle époque, até chegar a Léa de Lonval, nascida Léone Vallon, tida como a mais bela de todas. “Seu bom senso permitiu que ela evitasse o mais perigoso risco de sua profissão: se apaixonar.” Graças a isso, ao se livrar do mais recente amante, um nobre russo que voltara para sua terra deixando-a ainda mais rica do que era antes, e ao sentir que estava chegando ao que narrador chama de “uma certa idade”, Léa de Lonval começava a pensar na possibilidade de uma aposentadoria. 

Ela chega a dizer a Rose (Frances Tomelty), sua fiel camareira, ao se deitar na grande cama de sua ampla casa parisiense, que não há prazer maior do que deitar-se apenas para dormir. Usar a cama apenas para lazer, sem trabalho.

E aí, ao ver Michelle Pfeiffer no papel de Léa de Lonval, é impossível não lembrar dela em Ligações Perigosas. No filme de 1988, uma Michelle Pfeiffer deslumbrantemente bela aos 30 anos de idade, com aquele rosto sublime, diáfano, interpretava Madame de Tourvel, uma jovem inocente, cândida, pura, fiel ao marido (o que, naquela sociedade, era um ultraje, uma obscenidade), que se transforma em tema de uma aposta maliciosa, sórdida, entre dois seres abjetos, a Marquesa de Merteuil (Glenn Close) e o Visconde de Valmont (John Malkovich). Um personagem que é o oposto da Léa de Lonval, a prostituta de luxo extremamente bem sucedida, astuta, malandra, cobra criada, puta velha.   

Os 21 anos que se passaram entre a Madame de Tourvel e Léa de Lonval parecem não ter sido mais que dois meses: Michelle Pfeiffer está ainda mais bela agora do que quando fez Ligações Perigosas – se é que isso é possível.

         Chéri, filho de puta velha e rica, é um garoto mimado, estragado

Bem no início da ação, quando acabamos de saber um pouco sobre cortesãs da vida real da França da belle époque e já bastante sobre a cortesã inventada pela escritora Colette, acompanhamos uma visita dela a uma colega que, no passado, foi uma das maiores rivais, Madame Peloux (interpretada, com o talento de sempre, pela grande Kathy Bates). Madame Peloux sempre teve um extraordinário talento para cobrar caríssimo por seus favores, e agora vive numa gigantesca propriedade nas cercanias de Paris. Está muito preocupada com o filho, Fred Peloux, conhecido por todos pelo apelido de Chéri. Chéri, criado com muito dinheiro e quase nenhum contato com a mãe trabalhadora em período integral, está agora com 19 anos, e leva uma vida absolutamente desregrada, de visitas constantes ao Maxim’s e a camas das melhores profissionais de Paris. “Ele não me dá mais atenção alguma, mas estou certa de que ele prestará atenção a qualquer coisa que você disser”, explica Madame Peloux a Léa, a quem o garoto desde sempre considerou assim uma espécie de madrinha. Foi Léa, aliás, que lhe deu o apelido de Chéri.

As duas cortesãs já na idade madura estão conversando quando surge Chéri, a quem Léa não via fazia algum tempo.

Para fazer o papel do rapaz que dá o título da novela de Colette e do filme, Stephen Frears escolheu Rupert Friend. Não me lembrava nem do nome nem da cara dele, mas vejo que teve um pequeno papel em Orgulho e Preconceito, a versão de Joe Wright, com Keira Knightley, feita em 2005, e trabalhou também em O Menino do Pijama Listrado, de 2008. Em Chéri, está com um cabelão grande, que realça sua beleza quase feminina – um rosto de traços bonitos como os de Alain Delon ou Jean Sorel.

Ao ver que Léa e o filho começam a conversar, Madame Peloux escapole depressa para dentro de seu palácio. 

Chéri, o filho mimado e estragado de cortesã, lasca um beijo na madrinha, colega da mãe. Ela finge que não foi nada – mas em seguida há outro beijo.

Estamos com uns dez minutos de filme, apenas, e a história vai realmente começar a partir daí.  

É uma bela história. E o filme que a conta é ainda melhor que ela. Mestre em seu ofício, capaz de fazer bem todo e qualquer gênero de filme, Frears dá um show. Elenco, figurino, câmara, fotografia, direção de arte, é tudo absolutamente impecável, brilhante, de tirar o fôlego.

E a trilha sonora me surpreendeu a cada momento. Nos créditos iniciais aparecem apenas o nome do diretor e dos principais atores;  enquanto via o filme, achei que a trilha fosse do inglês George Fenton, autor da também belíssima trilha de Ligações Perigosas; não é – é do francês Alexandre Desplat, um novo talento prolífico e impressionante, autor, entre muitas outras, das belas músicas de Garota com um Brinco de Pérolas, Reencarnação/Birth, os dois de 2004, A Rainha, de 2006, Desejo e Perigo, de 2007, Coco Antes de Chanel e Julie & Julia, ambos de 2009.

         Danadinha, essa Dona Colette

Sem ter na história da literatura a mesma importância, a mesma dimensão de Chordelos de Laclos, Colette teve uma vida agitada, rica, ousada, que daria uns dois ou três bons filmes. Aos 20 anos de idade, em 1893, casou-se com Henri Gauthier-Villars, um escritor 15 anos mais velho e famoso por se afirmar bissexual. A partir dos 27 – no ano de 1900 – começou a publicar livros, sobre uma personagem chamada Claudine, que chocaram a sociedade francesa pela forma franca de abordar aventuras amorosas. Separou-se do marido em 1906 e teve alguns casos com mulheres famosas – há quem diga que Colette e Josephine Baker foram amantes durante algum tempo. Em 1907, junto com outra amante ocasional, criou uma pantomima apresentada no Moulin Rouge em que as duas se beijavam em cena – outro grande escândalo. Escreveu um balé para ser apresentado na Opéra de Paris musicado por Maurice Ravel. Casou-se pela segunda vez, e teve um caso com o enteado do segundo marido. Casou-se ainda uma terceira vez. Durante a Primeira Guerra (1914-1918), transformou a propriedade desse segundo marido em um hospital para os militares feridos em batalha, o que lhe valeria o título de Chevalier da Legião de Honra. 

Danadinha, a Dona Colette.

Em 1958, quatro anos depois da morte da escritora, Gigi, o filme baseado em um de seus livros, transformado em musical por Alan Jay Lerner e Frederick Loewe (os mesmos autores de My Fair Lady) e dirigido por Vincente Minnelli, ganharia nove Oscars, inclusive três dos cinco mais importante – filme, direção e roteiro adaptado. Na minha opinião, Gigi é um dos filmes mais superestimados da história das premiações da Academia. Escrevi isso na rápida anotação que fiz para mim mesmo quando revi o filme em 2001 (muito antes de este site existir, portanto): “Mas a moral, ou a completa falta de moral da história de Colette, a coisa de se criar a moça para ser, em suma, uma puta de luxo… Hum…”

         Um imenso deslumbramento diante da prostituição

Corro o risco de parecer moralista – coisa que absolutamente não sou –, mas o fato é que não me encanta muito o deslumbramento que Colette demonstra pelo mundo da alta putaria. Tudo bem, não é preciso dar lição de moral, fazer julgamento, condenar – mas também não acho que seja o caso de se deslumbrar com a profissão, como se fosse a coisa mais fascinante do mundo.

A história de Chéri, me parece, tem o mesmo tom de deslumbramento que está presente no filme Jogando com Prazer/Spread, também de 2009, que retrata o mundo dos jovens bonitos que vivem de vender sexo para mulheres e homens ricos em Los Angeles, a cidade dos sonhos.

Na minha opinião, o filme filtra bastante esse deslumbramento, esse elogio da putaria. E é um filme todo brilhante, que esbanja talento. Mas repito o que disse lá em cima: o filme é melhor que a história que ele conta.

 Interessante é que esses dois filmes feitos no mesmo ano tratam de relacionamento entre garotos bem mais jovens e mulheres maduras. Esse tema tem sido muito abordado nos últimos anos. Além de Chéri e Jogando com Prazer, ele está também em Terapia do Amor/Prime, de 2005, Nunca é Tarde para Amar/I Could Never Be Your Woman, de 2007, Novidades no Amor/The Rebound, de 2009, Por Amor/Personal Effects, outro de 2009. 

 Mais interessante ainda é que Michelle Pfeiffer, chegando aos 50 anos de idade, esteja em três deles.

 Para terminar: lá em cima, escrevi que é como se os 21 anos passados entre Ligações Amorosas e Chéri tivessem sido, para Michelle Pfeiffer, o equivalente a um mês. E é bem verdade – para a imensa maior parte dos 92 minutos de Chéri. Sem chegar a cometer um spoiler, é preciso dizer que, nas últimas seqüências, o rosto da atriz se transforma – embora não haja corte de tempo, avanço no tempo, vemos os anos de repente pesarem sobre o rosto dela. Assim, de repente, num abrir e fechar de olhos. Um trabalho admirável do diretor Frears, da ótima atriz que Michelle Pfeiffer é, do maquiador, do fotógrafo. Mais um brilho de talento num filme cheio de brilho.

Chéri

De Stephen Frears, Inglaterra-França-Alemanha, 2009

Com Michelle Pfeiffer (Léa de Lonval), Rupert Friend (Chéri, Fred Peloux), Kathy Bates (Madame Peloux), Felicity Jones (Edmée), Iben Hjejle (Marie-Laure), Frances Tomelty

Roteiro Christopher Hampton

Baseado no livro de Colette

Fotografia Darius Khondji

Música Alexandre Desplat

Produção BKL Films, Pathé, UK Film Council

Cor, 92 min

***

9 Comentários para “Chéri”

  1. Que belíssimo texto sobre um belo filme. Acho que eu gosto de não gostar de Michelle Pfeiffer, não porque não a considere excelente atriz – considero – mas porque quase sempre empatizo pouco com suas personagens. Um exemplo gritante é Madame de Tourvel. Nunca, nunquinha eu consigo entender como Valmont podia desviar a vista da inebriante Marquesa ou mesmo da tontinha da Cecile.Mas neste Chéri ela me prendeu e me comoveu…acho que os anos fizeram muito bem – senão a ela – a mim, pra poder apreciá-la.

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