Caindo no Mundo / Cemetery Junction

Nota: ★★★½

Uma beleza de filme, este Caindo no Mundo/Cemetery Junction. Uma pequena pérola sobre o rito de passagem da juventude para a idade adulta na classe trabalhadora da Inglaterra dos anos 1970, os conflitos de classes sociais e de gerações – um show de competência, com um gosto amargo mas alguma réstia de esperança.

Quem quiser pode tomar o filme como um fascinante compêndio de sociologia. É também uma lição de cinema, embora sem qualquer tom pretensioso ou professoral.

Como é de praxe nos filmes ingleses, traz belas, admiráveis interpretações, tanto as dos atores consagrados, Ralph Fiennes e Emily Watson, quanto de garotos das novíssimas gerações, Christian Cook, Felicity Jones, Tom Hughes, Jack Doolan.

Um jovem que sonha em não ser como seu pai, e ficar rico

Um letreiro informa que a ação se passa em 1973, em Cemetery Junction – e o nome do lugar, o título original do filme, é apresentado ao espectador como um bairro um tanto desolado de Reading, a cidade poucos quilômetros a Oeste de Londres.

As primeiras tomadas mostram um bairro suburbano, uma fábrica – uma metalurgia – e um escritório de uma grande empresa de seguros. Na empresa de seguros, um rapaz bem jovem, de terno, espera para falar com alguém visivelmente muito importante na hierarquia. O rapaz, veremos em seguida, chama-se Freddie Taylor (Christian Cooke, à esquerda na foto abaixo), e é o protagonista da história. O homem que vai recebê-lo, o sr. Kendrick (o papel de Ralph Fiennes), é o chefão da empresa de seguros em Reading.

– “Freddie Taylor” – diz Kendrick. “Vejo que você cresceu em Cemetery Junction. Estudou em Stonemead, uma das piores escolas do Sul da Inglaterra. Eles esperam que você saia de lá aos 14 anos, sem qualquer qualificação, e vá direto para a sucata da vida. Está certo?”

Freddy concorda. E então Kendrick prossegue:

– “Eu sei disso, porque eu cresci em Cemetery Junction, e freqüentei aquela escola.”

E então Freddie diz:

– “Eu sabia disso, senhor. É uma das razões pelas quais gostaria de trabalhar para o senhor.”

E, depois de uma interrupção, diz que Kendrick sempre foi uma inspiração para ele; sabe que Kendrick saiu do mesmo bairro onde ele, Freddie, nasceu e sempre viveu, e hoje tem um Rolls-Royce e uma mansão de 40 milhões de libras. Ao que o futuro patrão faz uma correção: 42 milhões de libras.

– “É isso que eu quero”, diz Freddie. Não quero acabar como meu pai.”

No escritório de Kendrick, assistindo à conversa, está um rapaz aí de uns 30 anos, Mike (Matthew Goode), um dos melhores vendedores de seguros da firma. Duas frases pronunciadas por Mike explicam o por que de seu sucesso: é um vendedor nato, alguém que não sente nada pelos demais seres humanos, um sujeito que seria capaz de vender a mãe se alguém pagasse um preço razoável por ela.

Três jovens amigos da working class, brincalhões, irreverentes

O pai de Freddie, o sr. Taylor (interpretado por Ricky Gervais, um dos dois roteiristas e diretores) trabalha na mesma fábrica onde o filho já trabalhou, e onde continua a trabalhar Bruce (Tom Hughes, à direita na foto), um dos dois maiores amigos do rapaz que agora se esforça para ganhar mais, subir na vida. O outro grande amigo é Snork (Jack Doolan, ao centro). Os três sempre foram inseparáveis; Bruce e Snork gozam a cara de Freddie por causa de sua opção de sair da fábrica, procurar outro tipo de emprego.

São grandes gozadores, brincalhões, jovens irreverentes, todos os três, naquela Inglaterra pós-Beatles e Rolling Stones. Naquela altura da vida, na faixa dos 20, 23 anos, no entanto, as diferenças entre eles estão ficando cada vez mais nítidas, mais visíveis.

Snork é um piadista, um cuca fresca, que fala demais sobre sexo, provavelmente porque não o pratica, e adora chocar as pessoas falando palavrões. Bruce é briguento, violento, revoltado com a vida. A mãe fugiu de casa com outro homem, o pai se afundou na bebida e na inação, e Bruce culpa o pai pela ausência da mãe. Fala frequentemente em sair de Cemetery Junction – mas nunca faz qualquer movimento para de fato mudar a vida.

Freddie também não gosta muito da família – e o que o espectador vê das relações entre o pai, a mãe e a avó paterna é de fato absolutamente desagradável. Mas, ao contrário de Snork e Bruce, está fazendo os movimentos para o que considera que pode ser uma vida diferente, e melhor.

Mas são, os três, jovens e cheios de energia, e volta e meia se metem em brigas ou confusões, e são levados presos para a delegacia de Cemetery Junction. Lá, no entanto, têm um protetor, o sargento Davies (Steve Speirs), que conhece bem os pais de todos eles.

A mulher do milionário leva para ele uma xícara de chá. Ele não olha para ela, não agradece

Um dia qualquer, na sede da empresa de seguros, Freddie se encontra com Julie (Felicity Jones, na foto ao lado). Não se viam desde que tinham 12 anos; fica muito claro que foram amigos na escola, e muito possivelmente tiveram uma paixonite adolescente um pelo outro. Julie é agora uma bela jovem mulher, assim como Freddie é um belo rapaz. Só que Julie agora é filha de rico: seu pai é Kendrick, o patrão.

Está noiva, ela informa a Freddie – e logo em seguida ele vê de quem. De Mike, o vendedor impiedoso, o braço direito do patrão. Num momento em que Julie não os pode ouvir, Freddie diz que não sabia que Mike estava noivo da filha do patrão – e Freddie responde, sem um pingo de sentimento na voz, que isso ajuda.

Mais tarde, Freddie vai conhecer a mãe de Julie, a mulher do patrão. A sra. Kendrick é interpretada por Emily Watson, aquela maravilha de atriz e mulher (na foto abaixo). Freddie notará que ela entrega uma xícara de chá ao marido e ele não agradece, nem sequer olha para ela.

Jovens atores que já tem estrada e demonstram muito talento

Dos quatro atores que interpretam os jovens Freddie, Bruce, Snork e Julie, só me lembrava de Felicity Jones. Ela está em Chéri, de Stephen Frears, de 2009, e em Reflexos da Inocência/Flashbacks of a Fool, de Baillie Walsh, de 2008.

E é uma fantástica coincidência que essa garota, nascida em Birmingham, em 1983, tenha sido escolhida para os papéis nesses dois filmes, Reflexos da Inocência e este Caindo no Mundo, porque os dois se passam na Inglaterra dos anos 70, em meio de gente da working class, e nos dois a importância do rock é muito grande. Em Reflexos da Inocência Felicity Jones faz o papel de Ruth, a garota mais bonita e interessante da cidadezinha, absolutamente apaixonada pelo glam rock de David Bowie e Roxy Music. Tanto Bowie quanto Roxy Music estão na trilha sonora de Caindo no Mundo – além, é claro, de T. Rex e Elton John.

A Inglaterra produz bons atores às pencas – dá mais bom ator naquela ilha do que chuchu na cerca –, mas acho que Felicity Jones ainda vai dar muito o que falar. A moça ainda não fez 25 anos e já está com 23 filmes e/ou séries de TV no currículo.

Christian Cooke, o jovem ator que faz Freddie, também deve dar o que falar. É mais jovem ainda do que Felicity Jones – nasceu em Lees em 1987. Vem de uma carreira firme na TV inglesa, mais de 15 séries, e tem uma fina estampa.

Mary, e também nossa amiga Andrea, que viu o filme conosco, ficaram também impressionadas com a figura de Tom Hughes, que faz Bruce, o rebelde violento. Como os outros garotos, já mostra talento.

Diálogos de pais e filhos, um sem ouvir o que o outro diz

Por se passar em 1973, por mostrar o conflito de gerações, por tratar dessa coisa de jovens que não querem ter o mesmo destino que os pais, este filme belo, sensível, honesto, amargo mas com uma ponta de esperança, me fez lembrar “Father and Son”, a belíssima canção que Cat Stevens compôs e gravou em Tea for the Tillerman, de 1970. Cat Stevens tinha ridículos 22 anos quando criou o diálogo impossível, de surdos, entre um pai que dá conselhos e um filho que não quer saber de conselho algum. Com uma maturidade inimaginável, inexplicável, o wonder boy conseguiu apresentar belos argumentos tanto para o pai quanto para o filho – pena que, em 1970, nenhum dos dois fosse capaz de ouvir o que o outro tinha a dizer.

Caindo no Mundo tem alguns diálogos assim, entre Freddie e o pai, entre Bruce e o pai. O mais forte, impactante de todos, no entanto, acontece entre o sargento Davies e Bruce, depois que este último é levado preso mais uma vez. É uma sequência difícil de esquecer. Como acontece bem próximo do final da narrativa, creio que não cabe transcrevê-lo.

Também é difícil de esquecer o rápido diálogo – quase sem palavras, feito mais de subentendidos do que de explicitude – entre a sra. Kendrick e sua filha Julie, também muito próximo do final do filme.

A sensação que se tem é de que os autores-diretores Ricky Gervais e Stephen Merchant estão falando de coisas bem conhecidas por eles. De que foram jovens da classe trabalhadora nos anos 60 ou 70, viveram aquela época de imensas mudanças, de choques espetaculares entre gerações, entre classes sociais.

Beleza, beleza de filme.

Anotação em janeiro de 2012

Caindo no Mundo/Cemetery Junction

De Ricky Gervais e Stephen Merchant, Inglaterra, 2010.

Com Christian Cooke (Freddie Taylor), Tom Hughes (Bruce Pearson), Jack Doolan (Snork), Felicity Jones (Julie), Ralph Fiennes (Mr. Kendrick), Emily Watson (Mrs Kendrick), Matthew Goode (Mike Ramsay), Ricky Gervais (Mr. Taylor), Steve Speirs (sargento Wyn Davies)

Argumento e roteiro Ricky Gervais e Stephen Merchant

Fotografia Remi Adefarasin

Música Tim Attack

Produção Columbia Pictures.

Cor, 95 min

***1/2

4 Comentários para “Caindo no Mundo / Cemetery Junction”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *