3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2002: O filme da diretora Anne Fontaine reconstituindo uma parte da vida de Coco Chanel é sóbrio, elegante, rico e requintado como as roupas criadas pela grande dama da moda francesa.
Rico, requintado: é uma senhora produção, bem cuidadíssima. O esmero da direção de arte, dos próprios figurinos, para a reconstituição de época é acachapante, é de babar. E não se fez economia: há belíssimas seqüências de exteriores, com centenas e centenas de figurantes, dezenas e dezenas de carros. A trilha sonora é de Alexandre Desplat, que vem se revelando grande a cada novo filme – e ele faz umas três trilhas por ano. Um deslumbre, um luxo.
Sóbrio, elegante: Anne Fontaine optou por um estilo clássico, sem nenhuma invencionice, sem foguetório, sem criativol. A câmara é suave, não chama a atenção do espectador para movimentos bombásticos – simplesmente porque não era necessário. Há belas, admiráveis seqüências, como a câmara bem no alto de uma alta grua focalizando a jovem Coco Chanel deitada no chão coberto de folhas amarelas, recostada numa grande árvore, ou a seqüência final, em que vemos a ainda jovem Chanel na sua Maîson refletida em diversos espelhos, vestida, como mais gostava, de preto e branco – e nesse momento a diretora se permitiu passar do colorido para o preto-e-branco. Um pequeno, sutil toque a mais de classe, no encerramento.
Nove entre dez diretores e/ou roteiristas muito provavelmente teriam optado pelo que eu chamo de narrativa-laço: começamos pelo final, para logo haver o flashback – voltamos atrás vários anos, e então vamos vindo para mais perto do presente. Nove entre dez teriam começado pelo início da seqüência final, a dos espelhos refletindo várias vezes o rosto de Coco Chanel, para então voltar atrás.
Uma narrativa rigorosamente cronológica
Nem isso Anne Fontaine fez. Sua narrativa é rigorosamente cronológica. Quando a ação começa, estamos em 1893, conforme nos informa um letreiro. A garotinha Gabrielle Chanel, de uns sete, oito, nove anos de idade, e sua irmã Adrienne, quase da mesma idade, estão sendo levadas numa carroça para um orfanato em algum lugar do interiorzão da França. Ao serem deixadas à porta do grande prédio do orfanato, Gabrielle olha com ansiedade para o homem que conduzia a carroça – seu pai. O homem não olha para trás, não diz uma palavra às filhas.
Há duas ou três seqüências no orfanato, para realçar duas realidades básicas da vida de Gabrielle (o apelido Coco viria um pouco mais tarde) Chanel: sua origem era bem humilde, provinciana, interiorana; e seu pai, homem pobre, da roça, abandonou as filhas num orfanato assim que a mãe morreu, e nunca mais as procurou.
Esses dois pontos assentados, a narrativa dá um salto de 15 anos, conforme nos explica novo letreiro, e passamos a acompanhar a vida dela a partir daí, quando está com uns 22, 23 anos, na cidade de Moulins. O ano não é especificado, mas não é necessário: estamos no início do século XX, aí por 1908. O ano do final da narrativa também não é explicitado, mas é algo por volta de 1920. É, como a feliz definição do título, a vida da jovem Coco antes de virar Chanel, o sinônimo mundial de classe, elegância.
Uma mulher de vida rica
Há dezenas de cinebiografias que acabam sendo filmes um tanto fracos, ou no mínimo pouco interessantes, pouco marcantes, simplesmente porque a vida do retratado não é rica, não é dramática, não é cômica, não é nada especial – é apenas uma historinha um tanto boba, um tanto chocha. Mesmo quando o biografado é uma pessoa importante, em alguma área. O fato de a obra da pessoa ter importância não significa que a vida dela tenha sido importante. Buddy Holly, por exemplo. O cara é importantíssimo para a música popular – mas a história de sua vida curtíssima, brevíssima, não tem absolutamente nada especial – a não ser o fato de que ele morreu jovem demais da conta, aos 23 anos de idade, num desastre aéreo. Deixou um legado incrível, fantástico – mas sua vida não tem elementos para virar filme ou peça, como virou.
A vida de Coco Chanel, ao contrário, mesmo o trecho inicial, até ela começar a se impor como um dos nomes mais importantes da moda de todo o mundo, é bastante rica. Contada com sobriedade, elegância, riqueza, requinte, só poderia mesmo resultar em um belo filme.
Depois do corte de 15 anos, pulando do orfanato para por volta de 1908, em Moulins, encontramos as irmãs Gabrielle (interpretada por Audrey Tautou) e Adrienne (a bela Marie Gillian) apresentando-se como cantoras em um bar, um cabaré. Fazem um número levíssimamente safado; cantam uma canção que diz: “Perdi meu pobre Coco, Coco, meu cachorro que eu adoro, perto do Trocadéro. (…) Quanto mais meu homem me traía, mais Coco me era fiel”. Será por causa da canção que Gabrielle passará a ser chamada de Coco.
De noite, cantavam no bar-cabaré; durante o dia, as irmãs órfãs trabalhavam como ajudantes de costureiras numa loja. No trabalho noturno, eram apenas cantoras, embora alguns clientes confundissem as cantoras com as putas que também freqüentavam o local. Adrienne se envolve com um cliente barão, que em seguida vai exigir que ela pare de cantar e se dedique apenas a ele, mediante a promessa de um casamento que será sempre adiado. O barão de Adrienne leva para o bar-cabaré um amigo, um oficial do exército, Etienne Balsan (Benoît Poelvoorde), que se interessa por Coco.
Com talento, agilidade, o roteiro nos apresenta como se desenvolve a relação entre Coco e Balsan; leva-se um pouquinho de tempo para que Balsan revele que é riquíssimo. Depois que Adrienne deixa a cidade de Moulins para viver teúda e manteúda pelo seu barão, à espera de um casamento que jamais virá, Coco resolve fazer a mala e aparecer sem ser convidada na casa de Balsan. A casa não é uma casa, é um gigantesco castelo. Estamos aqui com no máximo 20 minutos de filme.
Um ser em permanente infelicidade
O que virá a seguir não é exatamente um conto de fadas, tipo pobre órfã encontra o amor com homem muito, muito rico. A relação que se estabelece entre Coco e Balsan é um tanto difícil de se compreender; chega a parecer um tanto esquisita, mal explicada; é esquisita, sim; é um tipo de folie à deux, esse tipo de loucura bem mais comum do que se pode imaginar. Mas é um tipo de relação que – pelo que nos mostram a literatura e o cinema – era permitida, aceitada, na França, talvez mais do que nos países vizinhos. A existência da amante e o fato de a existência dela ser pública eram fatos considerados normais, ali – ao contrário, por exemplo, do que ocorria na vizinha Inglaterra.
O filme trata dessa questão, e da questão do imenso desnível social entre Coco e Balsan, de uma bela maneira – ao mesmo tempo ostensiva mas não como o mais importante.
O mais importante era que Coco se submetia à situação obviamente constrangedora, embaraçosa, deprimente – mas se submetia, ao mesmo tempo não a aceitava plenamente.
A jovem Coco Chanel que o filme retrata – e que Audrey Tautou expressa de maneira brilhante – é um ser em permanente infelicidade, em eterna revolta contra a condição de bem tratadíssimo animal de estimação, ou escravo, o que dá quase no mesmo.
A diretora Anne Fontaine não faz um discurso feminista, ou pelo menos não o enfatiza – mostra a situação absurda, apenas. Mostra uma mulher de vontades muito fortes, de grande determinação, que possui um talento imenso – a de criar roupas, adornos – embora ainda não saiba muito disso, muito menos como usá-lo, mas que suporta por muito tempo o papel de bichinho de pelúcia do milionário.
A atriz é muito mais bela que a verdadeira Coco Chanel
Há, na minha opinião, um pequeno problema de miscasting na escolha de Audrey Tautou para o papel da jovem Coco Chanel. Diabo, há algumas palavras em inglês que não têm um exato correspondente em português. Como definir em uma palavra o fato de um ator não corresponder exatamente ao papel que ele vai interpretar? Bem, paciência, vamos em frente. A questão é que Coco Chanel (na foto ao lado) não era exatamente uma mulher bonita. Tinha traços fortes – assim como suas vontades e seu talento –, mas não era exatamente bela. Audrey Tautou, essa gracinha, teve que ser maquiada para parecer menos bela do que é – e está, em 99% das cenas, de cenho franzido, cara fechada, mal humorada, para tentar ficar mais parecida com seu personagem.
É um pequeno problema, nada sério, nada grave. Audrey Tautou, que estourou, virou estrela jovem demais, com a delícia que é O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, teve aqui, acho, seu papel mais importante desde Coisas Belas e Sujas, o filme barra pesadíssima de Stephen Frears em que ela interpreta uma imigrante ilegal turca vivendo em Londres que come o pão que o diabo amassou muito.
Cheio de sutilezas, o filme levanta questões sobre moral
Uma das maiores qualidades deste ótimo filme é que ele levanta diversas questões importantíssimas sobre moral, costumes, comportamento, sem parecer que está sendo sério demais. É um filme que não é óbvio – ao contrário, é cheio de sutilezas. Não é esquemático na denúncia da injustiça social, não é esquemático na denúncia do machismo da sociedade, não é esquemático na defesa da mulher. É forte, sem ser óbvio. Coco Chanel não é uma heroína, uma perfeição – ela se aproveita das situações que odeia profundamente.
Um diálogo me impressionou muito. É já quando a narrativa se aproxima do final; Coco tinha tido dias maravilhosos em Deauville, com o inglês que os franceses chamam de Boy (Alessandro Nivola). Ela conta para Balsan, o homem que a mantém numa gaiola dourada, que Boy não teve vergonha de ser visto com ela em Deauville, que a levou para o baile no cassino. E Balsan retruca: “Se eu estivesse com você na Inglaterra, eu a levaria ao Palácio de Buckingham”.
Diferenciar o certo do errado não é muito fácil, demonstrou Bob Dylan numa canção em que dizia que, no passado, quando era mais jovem, tinha mais certezas, o preto era preto, o branco era branco.
Este filme de Anne Fontaine que conta a primeira parte da vida da modista apaixonada pela combinação do preto com o branco mostra, magnificamente, que a vida tem uma quantidade muito maior de tons cinzas do que a juventude, a falta de conhecimento, são capazes de imaginar.
Coco Antes de Chanel/Coco Avant Chanel
De Anne Fontaine, França, 2009
Com Audrey Tautou (Gabrielle Chanel), Benoît Poelvoorde (Etienne Balsan), Marie Gillain (Adrienne), Emmanuelle Devos (Émilienne), Alessandro Nivola (Boy Capel)
Roteiro Anne Fontaine, Jacques Fieschi, Camille Fontaine, Christopher Hampton
Baseado no livro de Edmonde Charles-Roux
Fotografia Christophe Beaucarne
Música Alexandre Desplat
Produção Haut et Court, Warner Bros., France 2 Cinéma
Cor, 105 min
***
Podem falar mal,mas adoro esse filme.
Audrey Tautou Poulain pra mim deu um show como Coco Chanel…
Opino agora, mas vi este filme na sexta, 26 deste mes.
Um filme muito bom.
Coco Chanel, talento nato. Estava no sangue.
Mulher corajosa, de garra, valente.
Botou o capacete e foi à luta, fazer aquilo que gostava e sabia e, muito bem. E deu no que deu.
Ela sabia o que queria,sim. Assim como sabia que nunca se casaria.
Quando ela ainda era ninguém, já “criticava” a maneira de como se vestiam certas mulheres.
Inclusive a sua amiga ” rica “.
Duas cenas: quando Balsan pergunta o que ela fez com o vestido que ele lhe dera e ela responde: ” pendurei na janela parecia uma das cortinas “. E a outra quando ela comenta que uma mulher destilava joalheria de tanta jóia pendurada no corpo e a outra de tão apertada que estava no vestido ía se partir em duas.
” Coisas de Coco Chanel ”
Sergio, houve um engano neste teu texto, com certeza um caso de toque na tecla errada.
Logo no comêço, abaixo da nota que deste. O ano da anotação, repare.
Um abraço !!
Ops !!! Esqueci de um detalhe. Talvez seja coisa minha mas não entendi bem a colocação que a Coco faz, quando está lendo um livro e comenta se não me engano com o Balsan:
” Aqui diz pobre feliz,isso é coisa de rico.”
Uai , pobre não pode ser feliz ?
Pesquisando li que foi Capel que a ajudou a abrir sua primeira loja de chapéus e foi ela também que criou a primeira calça feminina.
E, isto não foi preciso pesquisar: o famoso Chanel 5. Conheci este perfume, Trabalhei com ele quando estoquista em uma loja de perfumes de linha.
Um abraço, Sergio !!
Obrigado por chamar minha atenção para o erro da data, Ivan! Já corrigi!
Sérgio