4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2008: Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos Oliveira, não é apenas um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. É um dos melhores filmes de todos os tempos.
E é também, na minha opinião, a mais bela e arrebatada declaração de amor feita no cinema a uma mulher – Leila Diniz, aquela mulher esplendorosa, maravilhosa, que passou entre nós como um cometa e foi embora cedo demais.
Fazia muitos anos que eu não revia Todas as Mulheres. Quando minha sobrinha-neta Sarah pediu para vermos (seria a primeira vez para ela), fiquei até com uma ponta de medo. Tenho tido decepções ao rever filmes que adorava quando era bem jovem. São tantos os que ficaram datados, velhos, eram modismos, perderam o encanto. Pensei até em não ver, deixar Sarah vendo e fazer outra coisa. Depois pensei; vejo só o lead e saio.
É impossível ver só a abertura. O filme me pegou e me deixou maravilhado como da última vez que tinha visto, como das várias vezes que revi, como da primeira vez.
Todas as Mulheres resiste intacto ao teste do tempo. Quatro décadas depois, ele mantém o frescor, o brilho, a inteligência, a beleza, a criatividade transbordante.
OK, o filme é de 1967, e reflete isso o tempo todo, é claro. As roupas, os cabelos, os carros, as gírias, as ruas, o Rio de Janeiro que era ainda mais lindo, as modas todas da época, as músicas todas da época. Mas não envelheceu nada: o encanto é absolutamente o mesmo.
Todas as Mulheres antecipa Amélie Poulin no quesito criatividade de sobra. Antecipa o charme de Simplesmente Amor/Love Actually ou Quatro Casamentos e um Funeral. Antecipa as brincadeiras de narrativa de Pequeno Dicionário Amoroso. Tem uma câmara ágil como a de Um Homem, Uma Mulher, feito um ano antes. Tem jogos formais como Uma Mulher para Dois/Jules et Jim, feito cinco antes, do qual, aliás, cita uma frase – “Um dia voltarei à literatura com uma história de amor cujos personagens serão insetos”. Tem o tom brincalhão, jovem, à vontade, descompromissado, que Richard Lester deu aos dois filmes dos Beatles, A Hard Day’s Night e Help!
Não é pouco.
E tem uma das seqüências mais brilhantes da história, o momento em que surge Maria Alice/Leila Diniz, com aquela sua beleza apavorante, a festinha no apartamento de Paulo/Paulo José, ele se preparando para lançar um dardo na porta de entrada, a câmara lenta, a porta se abre e ali está ela – o que um sorriso tem que nenhum outro sorriso tem? – e a terra treme e o mundo jamais voltará a ser o mesmo.
Não é pouco.
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Quero registrar: olhei meus cadernos, e chequei que vi o filme pela primeira vez em julho de 1967, em Curitiba, e revi um mês depois. Era uma época em que via muitos filmes brasileiros, muito mais do que vejo hoje. Naquele ano, vi Ganga Zumba, de Cacá Diegues; Os Cafajestes, de Ruy Guerra; Terra em Transe, de Gláuber, duas vezes seguidas; A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos; O Menino de Engenho, de Walter Lima Júnior; mais uma vez Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Gláuber; O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade; Os Fuzis, de Ruy Guerra; O Circo, de Arnaldo Jabor; O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person; Esse Mundo é Meu, de Sérgio Ricardo; e Opinião Pública, de Jabor. E, no ano seguinte, 1968, eu veria Edu Coração de Ouro, o filme seguinte de Domingos Oliveira, de novo com o casal Leila Diniz e Paulo José.
Reveria Todas as Mulheres em 1993, apresentando o filme para Fernanda, minha filha. Acho que essa tinha sido a última vez, antes desta agora em 2008. E o filme reluz, brilhante, 15 anos depois daquela revisão.
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Sobre a única parte barra pesada deste filme luminoso, a parte paulista deste filme tão carioca, o trecho em que Maria Alice vai parar em São Paulo, no caminho de uma viagem a Curitiba que ela acabaria não fazendo, dias depois desta revisão do filme tive uma sensação doida, maluca.
Sim, a parte barra pesada. O avião para Curitiba só sairia daí a tantas horas, e então Maria Alice caminha por São Paulo e é seguida por um homem estranho, soturno…
E então me voltou essa passagem num momento em que, poucos dias depois desta revisão do filme, ouvi duas músicas – Woodstock, da Joni Mitchell, e The Anniversary, as duas cantadas por Eva Cassidy. Me impressionou profundamente como eu tinha sido incapaz de entender a letra de Woodstock durante tantos anos, como eu nunca tinha prestado atenção a essa letra grandiosa. Cacildabecker, a música está no Déjà vu de Crosby, Stills, Nash & Young de 1970; e está no Ladies in the Canyon, o CD de Joni Mitchell também de 1970. E eu só fui entender que a letra é grandiosa quando a ouvi cantada por Eva Cassidy, em 2007.
É exatamente isso o que diz o personagem criado por Domingos Oliveira e que segue Maria Alice pelas ruas de São Paulo: passei por ali sem prestar toda a atenção devida. Desperdicei meu tempo, portanto – e a gente nunca passa duas vezes no mesmo lugar. E depois que a gente passa por cada lugar está mais próximo da morte.
A mesma coisa com relação a The Anniversary. Eu tinha ficado impressionado com essa música em agosto de 2007; cheguei a anotar: “Levei um daqueles grandes tapas de surpresa que a gente tem na vida. Estava ouvindo as músicas da Eva Cassidy para decidir o que jogar fora e o que manter e me deparei pela primeira vez com ela cantando o seguinte (a música se chama Anniversary Song):
I never thought I’d get this old, dear,
Never had a reason to live so long.
Ela morreu com 33 anos.”
Ao ouvir a música de novo, agorinha há pouco, dias depois de rever Todas as Mulheres, foi que prestei atenção a toda a letra, e fiquei ainda mais impressionado com ela. Parece ter sido feita pela própria Eva Cassidy, nem 33 anos de idade e condenada à morte. No mínimo, foi feita para ela. É de um sarcasmo doloroso, pesadíssimo – parece isso, uma jovem condenada à morte por uma doença incurável dizendo, pô, meus amigos, vocês estão aí tudo com uma cara de tristeza, como se estivessem pedindo desculpas por me dar parabéns – tudo bem, gentinha boa, nunca pensei em chegar a ficar tão velha.
Todas as Mulheres do Mundo, o filme mais solar que este país já fez, é brilhante até quando faz seu momento barra pesada.
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Fiz a anotação acima em outubro de 2008, logo após rever mais uma vez o filme; pouco tempo depois, em março de 2009, li a biografia de Leila escrita pelo Joaquim Ferreira dos Santos, Leila Diniz, publicada pela Companhia das Letras em 2008 mesmo. É um belo livro, admirável, com muita pesquisa e um texto excelente, extraordinário. Todo mundo deveria ler o livro.
No meu comentário acima, eu disse que o filme é uma declaração de amor a Leila, mas não falei explicitamente o óbvio: que o filme é uma transposição para a tela, com as devidas liberdades poéticas, da história de amor de Domingos Oliveira e Leila Diniz. Aproveito então para corrigir essa falha, e acrescentar aqui algumas informações que estão no livro de Joaquim Ferreira dos Santos, que tem um capítulo inteiro dedicado a Todas as Mulheres do Mundo, o quinto:
* O filme foi feito no primeiro semestre de 1966, quando Domingos e Leila já não estavam mais juntos – eles viveram juntos por um ano e meio, em 1963 e na primeira metade de 1964. Quando se conheceram, Leila tinha 17 anos e Domingos, 25. Em 1966, o ano das filmagens, Leila estava com 21 anos – ela é de 1945.
* Está lá no livro:
“A minha intenção era clara”, diz Domingos. “queria reconquistá-la, casar de novo e tentar ser um homem melhor.”
* A cena esplendorosa em que Leila aparece na festa de Paulo/Paulo José, e que eu citei na minha anotação acima, é de fato, como diz o Joaquim Ferreira dos Santos, uma estilização de como Leila surgiu na vida de Domingos. Domingos estava preparando o apartamento em que morava, uma cobertura no Bairro Peixoto, em Copacabana, para uma festa na noite de 24 de dezembro de 1962 quando Leila chegou cedo, antes de todo mundo, aos 17 aninhos de esplendor, liberdade e uma furiosa alegria de viver:
“Uma amiga minha disse que aqui vai ter uma festa de Natal, é verdade?”
* O apartamento de Paulo/Paulo José é o próprio apartamento em que Domingos vivia. Para financiar pelo menos parte do filme, o diretor vendeu um fusca.
* O texto que Paulo José fala em off, enquanto a câmara passeia pelo corpo nu de Leila (“Se não fosse meu o segredo do teu corpo, eu gritaria pra todo mundo”), foi escrito por Domingos na kombi que levou a equipe para filmar no Quitandinha, em Petrópolis. Desde a separação, quase um ano antes, enfatiza o autor, Domingos não via Leila nua. “Eu gravava um plano e ia lá dentro chorar um pouco”, diria Domingos ao autor do livro.
* Joaquim Ferreira dos Santos diz no livro que o filme mostra influências de Richard Lester, Godard e Truffaut. Exatamente como eu notei e anotei aí acima, alguns meses antes de ler o livro.
* O filme ganhou 12 dos18 prêmios do Festival de Brasília.
* “Quando estreou em março de 1967, no cinema Ópera, na praia de Botafogo, o crítico Maurício Gomes Leite, da revista Manchete, escreveu: ‘É um dos melhores filmes já feitos no Brasil, o mais carioca de todos os tempos’.”
Todas as Mulheres do Mundo
De Domingos Oliveira, Brasil, 1967
Com Leila Diniz, Paulo José, Ivan de Albuquerque, Flávio Migliaccio, Joanna Fomm, Irma Alvarez, Fauzi Arap, Isabel Ribeiro, Ana Christina, Ana Maria Magalhães
Argumento e roteiro Domingos Oliveira
Fotografia Mario Carneiro
P&B, 86 min.
R, ****
Permita-me dizer alguma coisa. Eu morava no bloco C, e o Domingos na cobertura do bloco B. Em 65, deu-se definitivamente a separação. O grande Domingos tomou um porre de uma semana e chorou umas duas. Lembro da tomada da cena em que o Domingos ordenava “camera, ação!” e ela saia do elevador com uma mala na mão e o cão no colo, com o Paulo José logo atrás, de cueca samba-canção e implorando “não vá!”, recebendo uma “bolacha” na face. Outras vezes, ela descia do Gordini do Domingos em calças jeans úmidas pelo biquini molhado por baixo e era abraçada pelas crianças da vizinhança, que a adoravam e ela correspondia. Mulher fantástica!
Eu vi no cinema no começo dos anos 1980. Depois achei alguns jornais antigos, de 1967, num sótão, com propagandas do filme. Pena que não levei nenhum para casa. Muito bom este trecho, que vou reproduzir no meu Face, devidamente assinado, é claro: Todas as Mulheres antecipa Amélie Poulin no quesito criatividade de sobra. Antecipa o charme de Simplesmente Amor/Love Actually ou Quatro Casamentos e um Funeral. Antecipa as brincadeiras de narrativa de Pequeno Dicionário Amoroso. Tem uma câmara ágil como a de Um Homem, Uma Mulher, feito um ano antes. Tem jogos formais como Uma Mulher para Dois/Jules et Jim, feito cinco antes, do qual, aliás, cita uma frase – “Um dia voltarei à literatura com uma história de amor cujos personagens serão insetos”. Tem o tom brincalhão, jovem, à vontade, descompromissado, que Richard Lester deu aos dois filmes dos Beatles, A Hard Day’s Night e Help!
Gostaria de saber o nome da música na cena em que Maria Alice/Leila Diniz, aparece banhando de mar, logo no inicio do filme quando acaba a introdução narrada por Flávio Migliaccio. A música se inicia instrumental e decorre com uma voz feminina em estilo de ópera, não sei bem, e fica no filme por poucos segundos. Parabéns pela postagem, gosto muito do filme mesmo sendo tão distante de minha época. Abraços.
Meu Deus do céu e da Terra! Eu nunca me cansaria de ver duzentas vezes esse filme. Vc tem toda razão: um dos melhores filmes de todos os tempos! Nada a acrescentar, apenas q quando lembro do filme, dá taquicardia de felicidade.