Vientos de Agua

Nota: ★★★½

Vientos de Agua, série de 2006 do grande Juan José Campanella, é um imenso, gigantesco, incomensurável afresco, um painel ousado, ambicioso, um épico monumental. Pretende fazer nada menos que um retrato da História, das mudanças na vida da Argentina e da Espanha num largo espaço de tempo – de 1934 a 2005.

Como fio condutor, o roteirista e diretor criou uma epopéia familiar que abrange mais de uma dezena de personagens, interpretados por um grande e espetacular elenco. Os protagonistas centrais são um espanhol das Astúrias que emigra para a Argentina em meados dos anos 1930 e um filho dele que, na meia idade, já nos anos 2000, para fugir da eterna um crise econômica de seu país, faz o caminho inverso e emigra para a Espanha.

O imenso afresco de Juan José Campanella, o Guernica desse diretor extraordinário que nos deu maravilhas – O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (1999), O Filho da Noiva (2001), Clube da Lua (2004), O Segredo de Seus Olhos (2009) – passa pelas péssimas condições dos mineiros de carvão no Norte da Espanha nos anos 30, a Guerra Civil Espanhola, as proximidades do fascismo do generalíssimo Franco com Hitler e o nazismo, as levas de imigrantes da Europa pré-Segunda Guerra Mundial para as Américas, a chegada de imigrantes de várias partes do mundo a Buenos Aires, a formação da colônia judaica na Argentina, uma entre as maiores do mundo, o peronismo e o anti-peronismo ao longo das décadas de 40 e 50, a revolução cubana de 1959 (vista de longe, en passant), a crise econômica dos anos 2000, o congelamento das contas correntes e de poupança – o corralito –, a imigração de gente dos países de todo o Terceiro Mundo para a União Européia, a forte rejeição aos imigrantes na Espanha, a vida sob o signo do medo da deportação de estrangeiros ilegais.

É muita coisa, é coisa demais. Sete décadas de História na vida de dois países.

E que sacada maravilhosa, coisa de gênio: a exposição da absoluta diferença entre as migrações rumo às Américas na primeira metade do século XX e as migrações rumo à Europa no início do século XIX.

Buenos Aires recebendo de braços abertos aquela gente pobre que vinha em busca de uma vida melhor no Novo Mundo. Madri se negando a receber gente pobre que vinha em busca de uma vida melhor no Velho Mundo desenvolvido, rico.

Claro, claro: não é todo mundo em Madri que se fecha aos imigrantes. Há as exceções, há bons seres humanos sempre, em todas as épocas, em todo os lugares.

A série mostra muita tristeza, uma quase infinita quantidade de problemas – mas faz questão de realçar, o tempo todo, que o ser humano é capaz de uma imensa grandeza: a solidariedade.

Uma característica importantíssima da série é justamente mostrar isso, insistir nisso: a grande maioria das pessoas – exatamente como na vida real – é de gente boa, pessoas boas, de bom caráter. Apesar de um número absurdo de filmes – e de séries de TV em especial – tratar de bandidos, fora da lei, a imensa maioria das pessoas é de gente boa, e a imensa maior parte dos personagens de Vientos de Agua é assim, é gente como a gente, “normal”, ordinary people.

Gente simples, gente como a gente, gente “normal” – as aspas vão porque a rigor, a rigor, a rigor, não existe propriamente gente “normal”, como bem diz o Caetano em uma de suas belas canções. Mas gente simples, nem Super-homem nem bandido, gente como a gente – que, portanto, quer fazer as coisas direito, mas volta e meia faz asneiras, faz besteiras, comete erros, faz mal aos que ama.

Os protagonistas de Vientos de Agua cometem um monte incrível de erros com seus namorados, amantes, maridos/esposas, filhos.

Ah, sim, a série, naturalmente, não é apenas sobre a Grande História. De forma alguma. É uma série sobre pessoas, sobre seus amores, sentimentos, sensações. A vida o amor a morte, como dizia Claude Lelouch.

Vientos de Agua é muito seguramente o momento mais Ettore Scola da obra de Juan José Campanella.

É impossível não lembrar de Ettore Scola enquanto se vê a série, enquanto se fica pensando sobre ela entre um e outro de seus 13 episódios que duram cerca de 70 minutos cada um.

Scola é o cineasta dos afrescos, dos grandes murais, dos filmes que abrangem décadas e décadas, que mergulham na vida de um grupo de personagens enquanto o pano de fundo mostra a movimentação da Grande História – Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), O Baile (1983), A Família (1987), Splendor (1989).

Eu já estava acostumado com esse estilo Scola da série de Campanella quando, de repente, sem aviso prévio, no episódio oito, ele dá uma de Ingmar Bergman.

Vientos de Agua é uma série ousada, ambiciosa. Pretensiosa – por que não admitir?

É tão ambiciosa, tão pretensiosa que, mesmo sendo a obra de um grande cineasta, um dos maiores em atividade nas últimas décadas, em alguns momentos derrapa.

Em alguns momentos, derrapa, tropeça, se enrola, se enrosca, não se explica direito.

Confesso (ou declaro, lo que no és lo mismo, pero és igual) que, nos primeiros dois, três episódios, fiquei receoso de que Campanella tivesse errado a mão. Depois a história, os personagens, tudo na série foi me envolvendo mais e mais, e fui ficando encantado.

Ao final, a sensação que fica é de que há, sim, probleminhas. Mas eles são ínfimos, são bobagem, diante da grandeza da coisa toda.

Vientos de Agua é cinema de grande qualidade, feito com – além de grandes doses de Ettore Scola e um bom tanto de Ingmar Bergman – aquele humanismo, aquele imenso amor pelo ser humano e aquela resoluta esperança que se recusa a morrer de Frank Capra.

Não dá para pedir mais nada.

José assumiu a identidade do irmão Andrés

Um espanhol das Astúrias que emigra para a Argentina em meados dos anos 1930 e um filho dele que nos anos 2000 faz o caminho inverso e emigra para a Espanha.

O espanhol, Andrés Olaya, é interpretado, quando jovem e na maturidade, entre os 19 e os 43 anos, por Ernesto Alterio (à direita na foto acima), e, quando velho, bem velho, por Héctor Alterio. O sobrenome dá a pista, e é isso mesmo: Ernesto, que faz Andrés na juventude e na maturidade, é na vida real filho de Héctor, que faz o mesmo personagem quando bem idoso.

O tipo de escolha ideal de casting – a semelhança física é grande entre os dois. Sorte de Campanella de ter à sua disposição os dois Alterios, Ernesto e Héctor.

O filho de Andrés, que, para fugir da eterna crise econômica argentina, do desemprego, emigra já na faixa dos 50 anos para o país que o paí havia deixado na juventude, é o papel de Eduardo Blanco.

(Só para lembrar: Héctor Alterio e Eduardo Blanco já haviam trabalhado juntos sob a direção de Juan José Campanella na obra-prima O Filho da Noiva, de 2001, 35 prêmios e outras 11 indicações, inclusive ao Oscar de melhor filme estrangeiro.)

Andrés, na verdade, de batismo não é Andrés, é José, José Olaya. Andrés era seu irmão mais velho (o papel de Iván Hermés), que, mineiro das minas de carvão das Astúrias como o avô, o pai e o irmão, planejava cruzar o Atlântico e o Equador e começar nova vida na Argentina. Tinha comprado passagem de navio, e juntava dinheiro para a viagem, quando acabou morto numa série de eventos que se abateu sobre o vilarejo da família – houve uma explosão na mina, várias pessoas ficaram feridas, José em retaliação provocou um incêndio na mina, capatazes se vingaram incendiando casas e matando diversas pessoas.

José assumiu então a identidade de Andrés e apresentou-se com a passagem de terceira classe do irmão no navio que faria a travessia do Atlântico do Velho para o Novo Mundo.

Andrés é um sujeito que teve mulheres maravilhosas

O roteiro escrito por Campanella (com a ajuda de uma equipe de quatro profissionais, duas mulheres e dois homens, Juan Pablo Domenech, Alejo Flah, Aurea Martínez e Aída Bortnik), vai e vem no tempo ao longo de cada um dos 13 episódios da série. Vamos vendo, em paralelo, simultaneamente, os fatos da vida de José que vira Andrés Olaya e os fatos da vida de seu filho Ernesto.

Uma história que começa em 1934, nas Astúrias, passa um longo trecho no navio de imigrantes, e vai se desenvolvendo na Buenos Aires dos anos 30, 40 e 50. Misturada com uma história dos anos 2000 que começa em Buenos Aires e vai para Madri – e, ao final, num epílogo, de novo nas Astúrias, é claro.

Duas histórias – da mesma família, das mesmas pessoas – que se misturam, se alternam, muitas vezes quase se fundem, se interpenetram, se repetem.

Durante a longa travessia do Atlântico, José-agora-Andrés fica conhecendo três pessoas que o acompanhariam pela vida afora. Juliusz (Pablo Rago, à esquerda na foto acima) vai se tornar seu maior amigo. Quando ficaram se conhecendo, no início da viagem, eram extremamente diferentes um do outro. Húngaro, judeu, bem nascido, bem educado, poliglota, com imensa facilidade para aprender, Juliusz estava distante do mineiro pobre e analfabeto das Astúrias.

Os dois, rapazes aí de uns 20 anos de idade, desenvolvem juntos uma proximidade com Gemma, uma garotinha italiana de uns 12, que viajava praticamente sozinha – quem cuidava dela era um dos operários da sala de máquinas do grande vapor. Gemma havia ficado órfã, e estava sendo levada por aquele conhecido dos pais para ser entregue à tia que emigrara para Buenos Aires.

Gemma criança é interpretada por Francesca Trentacarlini; adolescente, depois mulher feita, por Giulia Michelin. De novo Campanella e sua equipe de casting tiveram muita sorte: a atriz-mirim, que aparece pouco tempo na tela, tem incrível semelhança física com essa Giulia Michelin, boa atriz.

A terceira pessoa que viaja com Andrés rumo à nova terra e terá grande importância na vida dele e na série é Laia (o papel de Pilar Punzano, na foto).

Laia é uma personagem fascinante, um tanto misteriosa, que vai se revelar, lá pelo meio da série, um caráter imenso, admirável, extraordinário.

Laia será a primeira mulher da vida de Andrés, e permanecerá amiga dele ao longo dos seus relacionamentos com as mulheres que virão depois.

Diabo, que sujeito para ter sorte com as mulheres esse Andrés.

Depois de seus primeiros anos em Buenos Aires, Andrés ganhará na Loteria ao conhecer Sophie (o papel de Caterina Marino, na foto abaixo), uma mulher de beleza espantosa, exagerada, fora de jeito, uma pianista talentosa, judia, viúva, filha de um viúvo bravíssimo, pouquíssimo aberto a relações com góis – os não judeus.

Pois o danado do Andrés não apenas vai comer a moça como se casará com ela e viverá com ela muitos e muitos anos – alguns muitos bons, outros nem tanto, por burrices, besteiras dele.

E muitos anos mais tarde Andrés ainda vai ter uma terceira imensa sorte na vida quando sua irmã Felisa (Bárbara Goenaga) faz de tudo para que ele conheça a grande amiga dela Lucia (Valeria Bertuccelli).

Engraçado, interessante: não pensei nisto enquanto via a série, mas, agora, escrevendo esta anotação, me ocorreu que, em ao menos dois pontos, esse Andrés Olaya tem bastante a ver comigo. Como Andrés, saí da minha terra, emigrei – e, como Andrés, me dei bastante bem na terra que escolhi para viver. E, exatamente como Andrés, tive a imensa sorte de encontrar essas mulheres maravilhosas que encontrei…

O argentino Ernesto terá vida dificílima em Madri

Ernesto Olaya, o outro protagonista da odisséia, é, a rigor, o quarto filho de Andrés Olaya – o quarto e o caçula. A mais velha, creio que Clara (Carla Pantanali Sandrini), é a filha do primeiro casamento de Sophie, que Andrés cria como sua, como é o que deve ser feito. Depois vieram Joaquin e um outro cujo nome, diabo, me escapa. E, finalmente, Ernesto.

Vemos Clara, a mais velha, e os dois irmãos que vêm depois dela, enquanto crianças. Ernesto, o caçula, não é mostrado criança – nós já o conhecemos, ali no começo dos anos 2000, na meia-idade. Ele é o papel, repito, de Eduardo Blanco, esse ator que está em tantos e tantos filmes argentinos – nascido em 1958, ele tem 37 títulos na filmografia. 37 filmes, alguns sob a direção de Juan José Campanella, alguns ao lado de Ricardo Darín – e uma cara que me faz lembrar, diacho, o grande Flávio Migliaccio. Como Flávio Migliaccio, ele ficou marcado por papéis um tanto cômicos, ou ao menos que envolvem alguns momentos de comicidade, mas sua cara é danada de triste.

É o ator perfeito para fazer esse Ernesto Olaya, arquiteto bem sucedido, casado com uma mulher simpática, inteligente, interessante, a médica obstetra Cecilia (Claudia Fontán), pai de dois jovens quase chegando à idade adulta, Tomás e Alicia (Mariano Bertolini e Manuela Pal), que, naquele país em eterna crise econômica, se vê sem trabalho, sem perspectivas, sem saída.

E é empurrado – pela situação, pela conjuntura, pelo pai espanhol, até mesmo pela mulher que quer vê-lo mais feliz – para emigrar.

E, no país natal do pai, enfrenta a barra pesada de ser um imigrante sem papéis formais, sem direitos, indesejado, rejeitado, mal-tratado.

Ernesto tentará validar seu diploma de Arquitetura argentino junto às instituições espanholas – mas o processo não será nada fácil.

E ele se verá naquela situação absurda, nonsense, absolutamente sem sentido mesmo de, sendo um profissional qualificado, diplomado, experiente, ter que se submeter a procurar empregos muitíssimo abaixo de sua competência – e, mesmo assim, ter imensas dificuldades.

A vida do arquiteto Ernesto em Madri será mil vezes mais difícil, mais dolorosa, sofrida do que a do iletrado pai dele ao chegar a Buenos Aires uns 60 anos antes – e esta, repito, é uma das belas, grandes sacadas desta maravilhosa série.

Tal pai, tal filho – ao menos em alguns pontos. Como Andrés, Eduardo foi um homem de sorte com as mulheres, casou-se com uma mulher interessantíssima. Em Madri, vai conhecer uma garotinha inteligente, sensível, um poço de solidariedade para com os imigrantes, Ana (o papel de Marta Etura, gracinha absoluta). Ana vai mexer uns pauzinhos para ele conseguir alugar um apartamento – mas ela manda uma outra imigrante despapelada para dividir o imóvel com ele. A moça que vai dividir o apartamento com Eduardo é uma colombiana chamada Mara – que vem na pele daquela coisa extraordinariamente bela que é Angie Cepeda.

Atores da Argentina, Colômbia, Espanha, Itália…

Aproveito a deixa para falar, ainda que rapidamente, sobre os atores – um danado monte de atores de várias origens e várias gerações que trabalham todos espantosamente bem.

De Eduardo Blanco (na foto acima), nascido em Buenos Aires, em 1958, essa espécie de Flávio Migliaccio portenho, já falei um pouco. Acho interessante que ele trabalhou ao lado de Ricardo Darín em vários filmes – uma dupla que me faz lembrar Paulo José & Flávio Migliaccio em Todas as Mulheres do Mundo (1967) e Edu, Coração de Ouro (1968).

Também já foi dito que Héctor Alterio (Buenos Aires, 1929) esteve em O Filho da Noiva, em que fez o noivo da noiva, o pai do personagem interpretado por Ricardo Darín que não havia casado formalmente com a mulher por aquelas coisas lá dos anos 60, 70 – éramos todos contra o Sistema, o Establishment, e suas formalidades.

Eu não conhecia (ou não me lembrava dele, o que dá mesma) o filho de Hector, esse Ernesto Alterio. Nasceu em Buenos Aires, em 1970, tem 74 títulos na filmografia. Numa rápida olhada nos títulos, não identifiquei nenhum; falha minha.

Feito o registro sobre os três atores que interpretam os dois protagonistas da história, é preciso dizer que, cacete, como tem mulher bonita essa série!

Tem mulher bonita pra tudo quanto é gosto.

Angie Cepeda (na foto abaixo), que faz Mara, a moça que divide o apartamento bem chinfrim com Ernesto, é um absurdo, uma coisa sem jeito. Nasceu em Cartagena de las Índias, Colômbia, em 1974, estudou arte dramática em Bogotá e começou a carreira em novelas da TV colombiana. O diretor peruano Francisco Lombardi a convenceu a fazer o papel de Olga Arellana, um dos principais do filme Pantaleão e as Visitadoras (2000), a segunda filmagem do romance de Mario Vargas Llosa. Ela estava com uns 25 anos quando fez o papel.

”Acho difícil entender por que essa moça, depois de Pantaleão 2000 – que, consta, foi grande sucesso de bilheteria no Peru, na Colômbia, na Argentina e na Espanha, e deve ter sido também em outros países da América Latina, pelo menos –, não virou uma grande estrela”, escrevi quando vi o filme. E continuava: “Não virou uma grande estrela, mas já participou de produções de diversos países. Esteve, entre outros, em Love for Rent (2005), co-produção EUA-Colômbia, O Amor nos Tempos do Cólera (2007), a produção americana que jogou fora o fantástico romance de Gabriel García Márquez, o belo espanhol ] (2010) e também no brasileiro Heleno (2001), de José Henrique Fonseca, a cinebiografia do grande jogador Heleno de Freitas, com Rodrigo Santoro.”

Angie Cepeda é uma força da natureza.

Marta Etura, que faz Ana, a garota espanhola que é sinônimo de solidariedade, é uma gracinha absoluta. É do País Basco – nasceu em San Sebastián em 1978, tem mais de 40 títulos na filmografia, inclusive O Impossível (2012), Eva – Um Novo Começo (2011) e Azul Escuro Quase Preto (2006).

Caterina Murino, que faz Sophie, a mulher de Andrés, essa eu não conhecia. Meu Deus, como é linda a moça! Nasceu na ilha da Sardenha, Itália, em 1977, e em 1996, com 19 aninhos, ficou em quarto lugar no concurso de Miss Itália. (Diabo, é inacreditável que tenham existido três mulheres mais lindas que ela naquele mesmo concurso!) Foi para Milão, virou top model. Em 2006, apareceu num James Bond, o 007 – Cassino Royale.

Valeria Bertuccelli, que faz Lucia, a mulher que surge na vida de Andrés depois de Sophie, é argentina de Buenos Aires, nascida em 1969. Entre os mais de 30 títulos de sua filmografia estão XXY (2007), um filme interessante, inquietante, e as comédias românticas Um Namorado para Minha Mulher (2008) e A Sorte em Suas Mãos (2012).

Pilar Punzano, que interpreta essa fascinante Laia, é espanhola de Madri, nascida em 1980. Tem mais de 30 títulos na filmografia, mas, numa passada de olhos, não reconheci nenhum deles.

Uma desnecessária insistência em se afirmar de esquerda

Um imenso afresco, um monumental mural – um quadro de um gigantesco tamanho, que pega gerações, décadas, amplos movimentos da História. Não é preciso mais nada para justificar minhas comparações da obra de Juan José Campanella às de Ettore Scola, o cineasta dos afrescos.

Mas é preciso falar da porção Bergman desta série grandiosa.

Acontece, como mencionei en passant, no oitavo dos 13 episódios.

O velho Andrés Olaya, interpretado por Héctor Alterio (na foto abaixo), caminha pela casa em que havia vivido uns 40 anos antes, posta-se junto a uma porta, ouve diálogos, e logo está presente em cenas de sua vida naquele passado já distante.

O personagem, já velho, vê eventos do passado distante, entra na cena em que os eventos são mostrados, observa tudo aquilo – vê sua mulher na época em que ele estava ali com uns 40 e tantos, quase 40 anos antes. Vê a si próprio. Ouve tudo, presencia o que está acontecendo.

Acontece bem no inicio do episódio número oito, acontece de novo algumas vezes.

Ingmar Bergman puro. Foi o gênio sueco que inventou essa coisa maravilhosa, em Morangos Silvestres, sua obra-prima de 1957. Meio século depois, o argentino Juan José Campanella usou a sacada do mestre para mostrar como Andrés, já bem velho, lembrava-se das besteiras que havia feito e quase acabaram com seu casamento com a linda, doce Sophie.

No final da série, bem no final, no 13º e último episódio, quando seu filho caçula Ernesto o leva para visitar, pela primeira vez em mais de meio século, seu povoado nas Astúrias, Andrés convive com fantasmas.

Um personagem, especialmente um personagem velho, conversar com fantasmas não é selo de nenhum cineasta, não é marca, não é copyright de ninguém – um porrilhão de realizadores já fez isso.

Todas as sequências em que o velho Andrés convive com fantasmas são absolutamente maravilhosas.

Faltou, creio, especificar um pouco aquela coisa que falei lá muito acima de que, em alguns momentos, a série derrapa, tropeça, se enrola, se enrosca, não se explica direito.

Vientos de Agua é uma série tão bela que fico com imensa preguiça de tentar justificar minha referência, lá em cima, a derrapadas, tropeços. Porque as derrapadas, os tropeços, são de fato pequenos diante do conjunto da obra.

Há pontos que achei mal explicitados, mal esclarecidos. Exatamente qual era a situação de Laia no navio, por exemplo; exatamente quem e por que a esperava na chegada dela ao porto; seu papel no prostíbulo; como e por que virou dona daquele belo bar-cabaré. O que vem a ser, exatamente, aquela instituição para crianças abandonadas, quem financiava aquilo.

O longo, cansativo discurso que Juliuzs pronuncia ao se despedir da instituição para crianças abandonadas é totalmente sem sentido: que diabo significa aquele monte de declarações pró-liberdade feita para criancinhas carentes?

O enfrentamento entre as pessoas da terceira classe com os alemães riquíssimos no navio que faz o percurso Europa-América do Sul. Que sentido tem aquilo?

Muitas dessas coisas que não têm sentido algum existem na série porque Juan José Campanella quis fazer um pronunciamento político. Quis demonstrar uma postura política. Quis proclamar que bom é o socialismo, a esquerda.

Parece que, para o cineasta, não basta demonstrar que a direita, o fascismo, é o horror dos horrores. É necessário proclamar que bom é a esquerda, o socialismo.

Não precisava de tanta ideologização.

Mas a verdade é que isso não tira os muitos méritos do trabalho descomunal. É uma beleza de série.

Anotação em março de 2021

Vientos de Agua

De Juan José Campanella, criador, Argentina-Espanha, 2006

Direção Juan José Campanella, Sebastián Pivotto, Bruno Stagnaro, Paula Hernández

Com Ernesto Alterio (Andrés Olaya jovem),

Héctor Alterio (Andrés Olaya velho),

Eduardo Blanco (Ernesto Olaya, filho de Andrés),

(no navio e na Argentina a partir dos anos 30) Pablo Rago (Juliusz, o grande amigo de Andrés jovem), Giulia Michelin (Gemma), Francesca Trentacarlini (Gemma criança), Pilar Punzano (Laia),

(na Argentina a partir dos anos 30) Bárbara Goenaga (Felisa, a irmnã de Andrés), Caterina Murino (Sophie), Rubén Ochandiano (Vidal), Silvia Abascal (Henar, a namorada da época das Astúrias), Valeria Bertuccelli (Lucía), Carla Pantanali Sandrini (Clara),

(na Espanha dos anos 2000) Angie Cepeda (Mara), Marta Etura (Ana), Carlos Kaspar (Illie, o romeno),

(na Argentina dos anos 2000) Claudia Fontán (Cecilia, a mulher de Ernesto), Mariano Bertolini (Tomás, o filho de Ernesto e Cecília), Manuela Pal (Alicia, a filha de Enesto e Cecília),

(nas Austúrias) Iván Hermés (Andrés Olaya, o Andrés original), Elisa Drabben (Felisa criança)

Roteiro Juan José Campanella, Juan Pablo Domenech, Alejo Flah,

Aurea Martínez, Aída Bortnik

Argumento Juan José Campanella Fotografia Miguel Abal, Félix Monti

Música Emilio Kauderer

Montagem Carlos Antolini, Martino Zaidelis, Juan José Campanella

Casting Camilla-Valentine Isola

Direção de arte Mercedes Alfonsín

Figurinos Cecilia Monti

Na Netflix. Produção 100 Bares, Icónica S.A., Pol-Ka Producciones

Cor e sépia, cerca de 910 min (15h10)

***1/2

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