Fahrenheit 451, o quinto longa-metragem de François Truffaut, o primeiro em cores e o único feito em país estrangeiro, a Inglaterra, tem uma das frases mais belas, mais fortes, mais marcantes, mais dramáticas destes cento e dez anos de cinema: – “Do you ever read the books you burn?”
Perde bastante na tradução, que pode vir em mais de uma forma: – “Você lê os livros que você queima?” “Você alguma vez leu os livros que queima?” “Você nunca leu os livros que queima?”
A pergunta é feita por uma moça que parece bem jovem, cabelos louros cortados bem curtinhos, faiscantes olhos verdes, lábios carnudos, a um bombeiro, com seu uniforme todo negro. O filme ainda está bem no começo. Antes desse diálogo, o espectador viu uma ação que demonstra que, naquele futuro descrito ali, os bombeiros não mais apagam incêndios – as casas, os edifícios são à prova de fogo. Sua atividade consiste em queimar livros.
É mostrado de cara ao espectador o trabalho de rotina de um destacamento de bombeiros. O destacamento recebe uma denúncia, o grupo de bombeiros entra no seu caminhão vermelho, sirene ligada, e segue até o prédio apontado. O ocupante do apartamento em questão havia sido avisado com mínima antecedência por um telefonema anônimo, e fugira correndo. Os bombeiros chegam, e procedem a uma rigorosa inspeção de todos os pequenos cantos onde livros podem ter sido escondidos.
Encontram algumas dezenas de livros – o primeiro deles é Dom Quixote, de Cervantes. São todos levados para a frente do prédio, ao ar livre, colocados numa espécie de churrasqueira portátil, e queimados por um lança-chamas poderoso operado por um dos bombeiros, Montag (o papel de Oskar Werner).
A ação dos bombeiros é acompanhada por um grupo de curiosos.
No caminho de volta ao quartel, o Capitão, o Chefe (Cyril Cusack), conversa com Montag, que, vemos de cara, é seu predileto, seu preferido, a quem ele pretende promover a oficial.
Capitão: – “O que Montag faz no seu dia de folga?”
Montag: – “Nada demais, senhor. Eu aparo a grama.”
Capitão: – “E se a lei proibir que se apare a grama?”
Montag: – “Então eu observaria a grama crescer, senhor.”
“Apagar incêndios? Que idéia mais estranha. As casas sempre foram à prova de fogo.”
Ao voltar para casa, em um aerotrem, Montag é observado pela moça jovem e bela que ali aparece pela primeira vez. Ela é interpretada por Julie Christie, a atriz que, naquele ano de 1966, em que Fahrenheit 451 foi lançado, era a musa, a deusa adorada por todos nós que nascemos aí, digamos, entre 1940 e 1955.
Chama-se, veremos, Clarisse. Aproxima-se de Montag no aerotrem e puxa conversa com ele – algo que, fica claríssimo, não é absolutamente uma coisa usual naquele futuro, naquele tipo de sociedade que se criou ali.
Clarisse diz que já o tinha visto outras vezes, que eles fazem sempre o mesmo trajeto no aerotrem. Ela até sabe onde ele mora, e ela mora bem perto. Vai descer na mesma parada que ele. E então, enquanto caminham lado a lado por um bairro agradável, um subúrbio só de casas, sem prédios altos, ela vai fazendo perguntas a ele.
Uma das primeiras perguntas que Clarisse faz é sobre o número 451 que aparece na farda dos bombeiros. Ele explica que Fahrenheit 451 é a temperatura em que o papel dos livros pega fogo.
Ela já havia dito para ele que o tio com que vive diz que ela tem cabeça de vento. Então ela diz que tem mais uma pergunta para fazer, mas não tem coragem. Ele a incentiva.
Clarisse: – “É verdade que muito tempo atrás os bombeiros apagavam incêndios, e não queimavam livros?”
Montag: – “Seu tio tem razão, você tem uma cabeça de vento. Quem disse isso para você? Apagar incêndios? Que idéia mais estranha. As casas sempre foram à prova de fogo.”
Clarisse: – “A nossa não é…”
Montag: – “Bem, então ela deve ser condenada, destruída, e vocês terão que se mudar para uma que seja.
“Livros perturbam as pessoas. Tornam as pessoas anti-sociais.”
Os dois continuam andando e conversando. A câmara de François Truffaut e do diretor de fotografia Nicolas Roeg vai à frente deles, em um carrinho, que vai sendo puxado para trás, de maneira que vamos vendo os rostos de Montag e Clarisse – o Jules de Jules et Jim, a Lara de Doutor Jivago, a Diana de Darling – enquanto ela continua fazendo perguntas a ele.
Clarisse: – “Me diga: por que você queima livros?”
Montag: – “O quê? Bem, é um trabalho como qualquer outro. Um bom trabalho, com muita variedade. Às segundas, queimamos Miller; às terças, Tolstói; às quartas, Walt Whitman; às quintas, Faulkner; e aos sábados e domingos, Schopenhauer e Sartre. Nós os queimamos até virar cinzas e então queimamos as cinzas. Esse é o nosso lema.”
Clarisse: – “Você não gosta de livros, então?”
Montag: – “Você gosta de chuva?”
Clarisse: – “Adoro chuva!”
Montag: – “Livros são lixo. Não servem para nada.”
Clarisse: – “Então por que ainda há gente que lê livros, mesmo sendo tão perigoso?”
Montag: – “Precisamente porque é proibido.”
Clarisse: – “E por que é proibido?
Montag: – “Porque eles fazem as pessoas infelizes.”
Clarisse: – “Você acredita mesmo nisso?”
Montag: – “Sim. Livros perturbam as pessoas. Tornam as pessoas anti-sociais.”
Chegam perto da casa dela. Clarisse sorri, brincalhona, como uma criança, e diz que tem só mais uma pergunta, bem pequena. E então faz a pergunta:
– “Do you ever read the books you burn?”
A TV está em todas as casas – uma programação única, a voz do regime totalitário
O romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, foi lançado em 1953. Os críticos literários, a Academia, o mundo universitário costumam torcer o nariz para os escritores do que ficou conhecido como ficção científica, muito embora os livros de vários deles, como Isaac Asimov, Clifford D. Simak, Arthur C. Clarke e próprio Bradbury, para citar só alguns, tenham imensa qualidade literária.
Apenas o esnobismo desse povo impediria que Fahrenheit 451 fosse reconhecido como uma das distopias mais importantes criadas pela literatura ao longo do século XX, ao lado de 1984 e A Revolução dos Bichos, ambos de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Eu, Robô, de Isaac Asimov.
Como em 1984, a sociedade imaginada por Bradbury para o futuro é regida por um regime totalitário, um Estado gigantesco, mamutiano, que tudo vê, tudo sabe, tudo espreita, tudo pode. A ordem maior é o conformismo, a conformidade – a negação inflexível, firme, a qualquer tipo de oposição, rebeldia, pensamento independente.
É proibido ler – a leitura estimula exatamente o contrário do que o Estado totalitário impõe. Ler é atitude subversiva.
Em todas as casas, há gigantescos aparelhos de TV, que transmitem programação única. No futuro distópico de Bradbury, a TV funciona como o Pravda da União Soviética, o Granma de Cuba – uma única emissora, a voz oficial, a voz da verdade, para que não haja vozes dissonantes.
A TV conversa com os espectadores em suas casas. A apresentadora oficial chama os espectadores de primos, primas – são todos uma grande família. O noticiário se mistura ao entretenimento – é tudo infotainment alienado, alienante. E o noticiário mente – mente, pura e simplesmente, de acordo com os desígnios do Estado.
Há farta oferta de pílulas que dão prazer – e ao mesmo tempo entorpecem as mentes, deixam as pessoas um tanto zumbis. Felizes, conformadas, zumbis.
Estimula-se um erotismo em que as pessoas podem dispensar companheiros/as. No aerotrem, nas ruas, nas áreas comuns, as pessoas beijam sua própria imagem no espelho ou no vidro, se acariciam, passam as mãos nos seus rostos, nos seus braços – é uma espécie assim de masturbação coletiva e solitária ao mesmo tempo.
Ficar triste, pensar muito na vida – isso é firmemente desestimulado, quase proibido.
Entupidas de pílulas, desestimuladas a pensar, raciocinar, viciadas na verdade única que vem da TV oficial, as pessoas se esquecem do passado – tanto o recentíssimo como o mais distante.
As pessoas não têm sentimento, não têm memória.
Por tudo isso é que os livros são proibidos.
O estopim da dúvida. A primeira chama que faz a pessoa duvidar do que era um dogma
A pergunta de Clarisse a Montag – “Do you ever read the books you burn?” – muda inteiramente a vida dele.
É uma pergunta profundamente subversiva. Anti-Establishment. Contra tudo o que era tido como certo.
O estopim da dúvida. A primeira chama que faz a pessoa duvidar de tudo o que até então era líquido e certo, axioma, dogma.
Desestrutura tudo.
Algo como Paul Simon escreveu na época do lançamento de Fahrenheit 451 – na verdade, em disco que saiu exatamente no mesmo ano do filme, 1966: “Então, veja, passei a duvidar de tudo que para mim era verdadeiro. Estou sozinho, sem crenças – a única verdade que conheço é você”.
Vi Fahrenheit 451 na época do lançamento, no Cine Glória de Curitiba, onde morava em 1967. Vi duas vezes praticamente em seguida, uma no dia 19/10 e a outra no dia 22/10, segundo mostra meu segundo caderno de filmes. (Naquele mesmo mês, vi Os Amores de uma Loura, de Milos Forman, A Infãncia de Ivan, de Andrei Konchalovsky, Alphaville, de Godard, um Hamlet soviético de Grigori Kozintsev. Curitiba tinha bons cinemas.)
Creio que, antes de revê-lo agora, só havia visto Fahrenheit 451 aquelas duas vezes seguidas, quase meio século atrás. No entanto, quase 50 anos depois, ainda me lembrava bastante bem de várias das sequências, de vários dos diálogos. O que é natural: a memória grava bem o que nos impressionou quando éramos bem jovens e os neurônios ainda estavam tinindo de novinhos.
Volta e meia o filme me vinha à cabeça. Em 2012, é claro que não me lembro exatamente por quê, escrevi no 50 Anos de Textos sobre a pergunta que Clarisse faz a Montag em uma espécie assim de croniqueta, a rigor um suelto. Dizia que foi a partir daquela pergunta, que foi por causa daquela pergunta que Montag passou então a ler os livros que antes apenas queimava:
É como se, em algum momento, no DOI-Codi, ou em qualquer prisão da Gestapo, ou da KGB, ou da CIA (todas as polícias políticas são iguais, não importa a posição delas no espectro ideológico), o torturador fosse instigado a pensar: e se o cara que estou torturando tiver razão?
O estopim da dúvida. A primeira chama que faz a pessoa duvidar de tudo o que até então era líquido e certo, axioma, dogma.
Truffaut tinha profunda paixão por livros. Queria fazer um filme sobre livros
François Truffaut não ligava muito para a política. É um dos pouquíssimos, raríssimos artistas europeus em atuação nos anos 60 que não era socialista, comunista ou no mínimo simpatizante da causa.
Mas tinha paixão pelos livros. Era um apaixonado por livros, por filmes, por mulheres e pela paixão, não sei exatamente em que ordem – mas certamente as mulheres em primeiro lugar. Praticamente todos os seus filmes – apenas 21 longa-metragens e mais 3 curtas, em seus parcos 52 anos de vida – ou baseiam-se em livros ou falam de livros, mostram livros, comentam livros.
Não poderia imaginar um mundo regido por um Estado totalitário. E jamais um mundo em que os livros fossem proibidos.
Tem absolutamente toda a lógica ele ter se decidido a levar para o cinema o livro de Ray Bradbury sobre um futuro apavorante em que o Sistema baniu os livros, e os bombeiros, num mundo onde já não há mais incêndios, se dedicam a queimar os livros que ainda existem, e a Resistência contra o regime é exercida por pessoas que decoraram os livros, e os vão passando oralmente para os filhos, os sobrinhos, os netos.
É fantástico como Truffaut se preparou durante anos para fazer o filme. Desde 1961 ele sabia que filmaria o livro: “Quando me contaram essa história, eu sabia que a filmaria. Já faz um ano”, disse ele, em depoimento publicado na revista L’Express de 27 de setembro de 1962, reproduzido no monumental livro Truffaut par Truffaut organizado e editado por Dominique Rabourdin.
Desde 1961! Em 1961, estava com apenas 29 anos; tinha realizado dois filmes, Os Incompreendidos/Les Quatre-cents Coups (1959) e Atirem no Pianista/Tirez sur le Pianiste (1960). Em 1962 lançaria Jules et Jim e o curta Antoine et Colette, e, em 1964, Um Só Pecado/La Peau Douce.
E, à L’Express, ele explicava por que queria fazer Fahrenheit 451: “Porque há muito tempo tenho vontade de fazer um filme em que se faça a leitura (de trechos de livros) em voz alta. Por que não popularizar, graças ao cinema, belos textos literários? Enfim, eu tinha vontade de falar de livros.”
Entre os livros a serem queimados, aparece uma edição dos Cahiers du Cinéma
Alguém se deu ao trabalho de relacionar os livros que aparecem em Fahrenheit 451, encontrados pelos bombeiros nos esconderijos das casas dos subversivos leitores, jogados no chão, depois reunidos para arder na fogueira provocada pelo lança-chamas. A relação foi publicada no IMDb; transcrevo sem me dar ao trabalho de traduzir: Don Quixote – Othello, the Moor of Venice – Vanity Fair – Madame Bovary – Le monde a coté – Alice’s Adventures in Wonderland & Through the Looking-Glass – Gaspard Hauser – Robinson Crusoe – The World of Salvador Dali – Jeanne d’Arc – Life and Loves – The Weather – My Autobiography by Charles Chaplin – Les negres – Confessions of an Irish Rebel – The Ginger Man – Petrouchka – The Catcher In The Rye – The Moon and Sixpence – Lolita – David Copperfield – Mein Kampf – She Might Have Been Queen – Social Aspects of Disease – The Ethics of Aristotle – The Brothers Karamazov – The Sorrows of Young Werther – The Martian Chronicles – Plato’s Republic – Fahrenheit 451 – Pride and Prejudice – Gone with the Wind – Animal Farm – No Orchids for Miss Blandish – Jane Eyre – Moby Dick – The Picture of Dorian Gray – The Adventures of Tom Sawyer – The Trial.
O espectador cuidadoso poderá observar que os livros que os bombeiros descobrem nas casas dos subversivos, e juntam para arder na fogueira, têm todo o jeitão de terem sido previamente manuseados, lidos. Não são livros novinhos, saídos direto das estantes de uma livraria. Consta que Truffaut pediu aos atores e aos membros das equipes técnicas que emprestassem seus livros pessoais, já bem usados, para que fossem filmados.
No meio dos livros, o leitor mais atento perceberá uma edição dos Cahiers du Cinéma, a revista fetiche para a qual o jovem François Truffaut escreveu críticas, assim como outros futuros realizadores da nouvelle-vague, como Jean-Luc Godard. Sim, está lá uma edição dos Cahiers – exatamente a edição que traz na capa uma foto do filme Acossado/À Bout de Souffle, de 1960, o filme de estréia de Godard, baseado em história e roteiro de Truffaut. Um pouquinho de metalinguagem não faz mal a ninguém.
O próprio livro Fahrenheit 451 aparece numa das diversas sequências em que os bombeiros descobrem livros escondidos nas casas dos rebeldes, dos resistentes. Outro livro de Ray Bradbury, As Crônicas Marcianas, é citado no final da narrativa, no acampamento das pessoas da Resistência, os homens-livros e mulheres-livros.
Um trecho de livro recitado remete diretamente à vida pessoal de Truffaut
Meio século depois de ter visto o filme no Cine Glória de Curitiba, eu ainda me lembrava do velhinho-livro que está perto da morte e está passando o texto do livro que decorou para seu sobrinho. Ao rever o filme agora, já bem velhinho eu mesmo, me emocionei com a sequência, é claro, porque ela foi mesmo feita para emocionar. Mas sobretudo me tocou o trecho do texto escolhido por Truffaut para ser recitado pelo velho e em seguida pelo seu sobrinho. É um trecho de Weir of Herminston, de Robert Louis Stevenson, um livro que o escocês autor de A Ilha do Tesouro e O Estranho Caso de dr. Jekyll e o sr. Hyde deixou inacabado ao morrer, em 1894.
“’Eu não farei barulho’, disse Archie. ‘E serei ousadamente franco. Eu não amo o meu pai. Pergunto-me, às vezes, se não o odeio. Esta é a minha vergonha, talvez o meu pecado. Pelo menos, e aos olhos de Deus, não a minha culpa. Como eu poderia amá-lo? Ele nunca falou comigo, nunca sorriu para mim. Acho que nunca me tocou. Ele tinha mais medo da morte do que de qualquer outra coisa. E ele morreu como pensava que morreria, enquanto as primeiras neves do inverno caíam.”
Cinema de autor é isso aí. Mesmo quando faz uma adaptação para o cinema de uma conhecida obra literária, mesmo quando está filmando fora de sua terra natal, em um país estrangeiro cuja língua não sabia falar, François Truffaut faz colocações pessoais, deixa sua marca pessoal.
Esse trecho foi escolhido a dedo por Truffaut porque reflete com perfeição o que ele viveu o tempo todo, tendo sido filho de uma mãe solteira que jamais deu carinho a ele, e não tendo conhecido jamais seu pai biológico. Quando se casou com Janine de Monferrand, o desenhista industrial Roland Truffaut aceitou criar o rapaz sem pai e dar a ele o seu nome de família.
A ausência de carinho da mãe foi tema importante em seu longa de estréia, Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups – um relato sobre um adolescente problemático nítida, claramente parecido com ele próprio.
Filmar coisas fantásticas como se elas fossem cotidianas, e vice-versa
Em um texto explicativo sobre o filme para ser distribuído à imprensa, escrito em 1966 (e reproduzido no livro Truffaut par Truffaut), o realizador define que a atmosfera da história futurista é “mais estranha do que resolutamente extravagante”. A ação se passa onde o espectador quiser especificar, quando o espectador quiser determinar: “Como a história se desenrola em um país indeterminado, o filme pode ser qualificado de imaginário, mas no interior desse imaginário uma certa realidade foi respeitada, de tal sorte que a história se parece com aquilo que nós conhecemos da Resistência que diversos países opuseram à opressão nazista, com a diferença de que aqui os homens caçados são apenas amantes de livros.”
Há – ele diz no texto – os que amam os livros de maneira puramente intelectual, por seu “conteúdo”. E há os amam os livros tanto pelo que eles dizem quanto pela sua própria existência física. Para esse tipo de gente – ao qual ele obviamente pertence -, o livro se transforma em objeto de culto. “Com o tempo, sua encadernação, sua capa, seu odor mesmo ganham uma significação sentimental particular para aquele que o possui.”
Diacho! Já escrevi pelo menos uns dez textos sobre o que chamo de “suportes físicos” – livros, discos, DVDs ou Blu-rays, essas coisas que ocupam espaço, e por isso estão virando cada vez mais raridades, já que seu conteúdo pode ficar todo na nuvem, sem necessidade de ocupar coisas físicas, materiais. Truffaut, en passant, em texto sobre seu novo filme, em 1966, fala disso com mais propriedade e mais amplitude do que falei nos meus diversos textos.
Mais adiante, no mesmo texto, Truffaut diz que teve dois objetivos, ao filmar o romance de Ray Bradbury: “Primeiro, deixar evidentes as qualidades de invenção visual do romance. E, segundo, tentar uma dosagem: filmar coisas fantásticas como se elas fossem cotidianas, e as coisas cotidianas como se fossem fantásticas, e entrelaçar umas com as outras. Quando se sonha, não se vê um mundo extraordinário, vê-se nosso mundo cotidiano curiosamente deformado. Foi essa deformação que tentei mostrar em Fahrenheit 451.”
O diretor não falava a língua dos atores e técnicos. E brigou com o ator central
As filmagens, basicamente nos tradicionalíssimos estúdios Pinewood, na Inglaterra, devem ter sido uma experiência infernal.
Imagine-se uma filmagem em que o diretor não fala uma frase na língua do país, na língua de quase todos os atores, dos técnicos todos.
Segundo o produtor Lewis M. Allen, Truffaut se comunicava em francês com os dois atores principais, o austríaco Oskar Werner, com quem já havia trabalhado em Jules et Jim, e Julie Christie, com o diretor de fotografia Nicolas Roeg e o produtor associado Michael Dalamar. E só. Não conseguia falar com nenhum outro ator, ou com o montador Thom Noble.
Oskar Werner e Julie Christie não foram os primeiros atores que Truffaut imaginou para o filme. Consta que ele queria Jean Seberg, a estrela de Acossado, ou Tippi Hedren, que seu ídolo Alfred Hitchcock havia dirigido em Os Pássaros (1963) e Marnie – Confissões de uma Ladra (1964), mas não conseguiu.
Consta também que, para o papel de Montag, pensou-se em Terence Stamp. O grande e belo ator teria recusado por dois motivos fúteis, ambos relacionados com Julie Christie, já então escolhida para o segundo papel fundamental. Porque tinham sido amantes, e ele não se sentiria confortável – o que é uma bobagem do cão. E porque não queria um papel que ficasse à sombra da importância de Julie, já que ela faz dois papéis, opostos, antípodas – o de Clarisse, a subversiva, e o de Linda, a esposa de Montag, uma zumbi total emburrecida pelas pílulas e pela onda geral de conformismo ditada pelo regime.
E ainda aconteceu de Truffaut e Oskar Werner se desentenderem. Desentenderam-se feio. O próprio Truffaut disse depois que aquele foi o único caso em sua carreira em que brigou com um ator durante as filmagens. Quando elas terminaram, os dois estavam se odiando.
Ah, as peripécias do destino: Truffaut e Werner morreriam praticamente ao mesmo tempo, em outubro de 1984, 18 anos após o lançamento do segundo filme que fizeram juntos. O ator estava com 62 anos. O realizador, com ridículos 52.
“Julie Christie é um coquetel de imperfeições fascinantes. Seu físico é feito de contradições”
Ao rever o filme agora, mesmo antes de ler qualquer informação sobre ele, fiquei com a sensação de que Oskar Werner não está nada bem no papel. E que Julie Christie dá um show interpretando as duas mulheres de características em tudo opostas.
Esta anotação já está muito grande, mas dane-se. Vou transcrever aqui trechos de um texto de Truffaut sobre Julie Christie. Foi publicado na revista Arts-Loisirs, em 28 de setembro de 1966, e reproduzido no livro O Prazer os Olhos – Escritos Sobre Cinema, que foi editado no Brasil em 2006 pela Jorge Zahar Editor:
“Julie Christie, para mim? Em primeiro lugar, uma boca assombrosa, mesmo sobre seu rosto: uma imensidão… Julie é um coquetel de imperfeições fascinantes: um rosto bem animal, de loba, sobre um corpo de menina. É preciso acrescentar sua voz, um pouco em contradição com seu físico. Como se ela tivesse bebido 1.800 uísques, o que não é verdade. Não fuma, não bebe, mas rói as unhas. Seu físico é feito de contradições.”
E mais adiante:
“Há ia dois papéis femininos no filme. Ofereci-lhe o que eu achava melhor: Linda, a mulher do herói, o bombeiro. Mas Julie preferia o de Clarisse, a jovem, porque era mais positivo. Para mim, não fazia diferença, e foi o que lhe disse. Eu queria duas mulheres quase iguais para esses dois papéis. Jane Fonda e Jean Seberg, por exemplo, a fim de não cair na diferenciação habitual dos tipos femininos – a morena e a loura –geralmente utilizada em filmes psicológicos. Por que não usar Julie nos dois papéis como uma moeda, cara e coroa?”
Nesse texto para uma revista francesa, Truffaut lá pelas tantas transcreve parte do diário que redigiu durante as filmagens, na solidão do hotel Hilton de Londres:
“Julie Christie ficará fabulosa, tão fácil de trabalhar quanto Jeanne Moreau ou Françoise Dorléac, com elas transmitindo confiança. (…) No papel de Linda, vou filmá-la geralmente de perfil, reservando a face para o papel de Clarisse. Seu perfil é precisamente muito belo, à maneira de um desenho de Cocteau; o nariz reto fantástico e o lábio superior bem definido. Boca imensa, larga, vampira… Julie é uma atriz curiosa. Em repouso, seu rosto é muito facilmente trágico. Quando sorri, expande-se imediatamente por causa de sua grande boca, que cresce ainda mais, e de seus olhos de loba, que se fecham.”
Os jovens provavelmente estranhariam ver um futuro sem celulares e computadores
Fiquei pensando, depois de rever o filme, que Fahrenheit 451 poderá seguramente parecer estranho às novas gerações, aos jovens que se interessarem em vê-lo, porque ele mostra um futuro em que não existem computador, internet, telefone celular.
Sim, de fato: visto hoje, o filme parece bastante estranho. Como assim, um futuro sem as coisas mais básicas da vida de hoje?
Seria necessário que os jovens que porventura se interessassem em ver o filme o pusessem em seu contexto histórico. É uma história escrita em 1953 e filmada em 1966. OK, 2001 – Uma Odisséia do Espaço, que Stanley Kubrick fez em colaboração com Arthur C. Clarke, foi lançado apenas dois anos depois, em 1968, e gira boa parte em torno do computador. Tá certo, tá certo – mas, como bem observam os autores do livro François Truffaut – A Filmografia Completa, Robert Ingram e Paul Duncan, a coisa da ficção científica é apenas “um fino verniz”, apenas “fachada”.
Muito mais do que nas tecnicalidades, na descrição de gadgets, máquinas do futuro, o realizador estava interessado em fazer um paralelo daquela sociedade totalitária que queimava livros com outras sociedades totalitárias que queimavam ou baniam livros, como o nazismo de Hitler e o comunismo de Stálin. A Truffaut interessava fazer uma declaração de amor específica à literatura, aos livros – como faria depois uma declaração de amor específica ao cinema em A Noite Americana (1973) e uma específica ao teatro em O Último Metrô (1980).
É interessante notar que os jovens de hoje, os meninos e as meninas que são bem mais novos que minha filha e bem mais velhos que minha neta, os que nasceram aí digamos entre 1990 e 2000, estão entupidos de histórias distópicas – na literatura e no cinema.
Sobram na praça obras como Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, Divergente, de Veronica Roth, A Seleção, de Kiera Cass, Feios, de Scott Westerfeld, Legend, de Marie Lu. Não que eu conheça qualquer uma dessas coisas, mas sei que são isso mesmo, distopias – a descrição de futuros tenebrosos.
Me parece também interessante, fascinante, sinal dos tempos, que as distopias, hoje, sejam criadas na literatura e recriadas no cinema em obras dirigidas especificamente ao público jovem, adolescente.
As distopias do século XX eram criadas para o público adulto. Se adolescentes se interessavam por elas – como eu, e tantos milhares de jovens da minha geração –, era problema dos adolescentes, não das obras.
Ahn… Como? Se estou querendo dizer que a literatura e o cinema de hoje se infantilizaram?
Não, eu não disse isso. Apenas registrei o fenômeno de que diversas distopias têm sido o tema de novos livros e filmes voltados para adolescentes. Só isso.
Anotação em novembro de 2016
Fahrenheit 451
De François Truffaut, Inglaterra, 1966
Com Oskar Werner (Montag), Julie Christie (Clarisse / Linda Montag)
e Cyril Cusack (o Capitão), Anton Diffring (Fabian), Jeremy Spenser (o homem com a maçã), Bee Duffell (a senhora dos livros), Noel Davis (a Prima Midge da TV), Roma Milne (a vizinha de Clarisse)
e os homens e mulheres-livro:
Alex Scott (A Vida de Henry Brulard), Michael Balfour (O Príncipe de Maquiavel), Yvonne Blake (A Questão Judaica), Frank Cox (Orgulho e Preconceito), Judith Drinan (A República de Platão), Denis Gilmore (As Crônicas Marcianas), David Glover (As Aventuras do Senhor Pickwick),
John Rae (Weir of Hermiston, o velhinho), Earl Younger (Weir of Hermiston, o garotinho)
Roteiro François Truffaut e Jean-Louis Richard
Baseado no romance de Ray Bradbury
Diálogos adicionais (não creditados) David Rudkin e Helen Scott
Fotografia Nicolas Roeg
Música Bernard Herrmann
Montagem Thom Noble
Casting Miriam Brickman
Produção Lewis M. Allen, Anglo Enterprises, Vineyard Film Ltd. DVD Universal.
Cor, 112 min
R, ***1/2
Título em Portugal: Grau de Destruição.
Pena que as pessoas não leem no mundo real, mesmo não sendo proibido… Mas pra quem gosta de ler, esse texto é uma coisa excelsa.
Eu li o livro antes de ver o filme, sou grande apreciador de Ray Bradbury e tenho vários livros dele. O filme pareceu-me bem feito embora inferior ao livro. É uma encrenca adaptar romances famosos ao cinema; veja-se o caso de Alfred Hitchcock que evitou fazer isso sempre (ou quase). No entanto quase todos os filmes que realizou foram adaptados de romances ou peças de teatro.
Mas gosto muito do filme que vi várias vezes.