Há um diálogo, lá pela metade de O Exótico Hotel Marigold, que define bem o espírito deste filme do diretor John Madden sobre um grupo de velhos ingleses que viaja para a Índia – um filme que tem fascinado as pessoas em todos os lugares em que é exibido.
Jean Ainslie (Penelope Wilton), uma mulher que detesta tudo que a cerca, mesmo em seu próprio país, e está absolutamente enojada com a Índia, os indianos, a pobreza, a sujeira, a superpopulação, os cheiros, a comida, faz a pergunta com indignação, como se já estivesse dizendo que não acreditaria em qualquer resposta:
– “O que o senhor vê neste país que eu não vejo?”
E Graham (Tom Wilkinson), que havia passado a adolescência e a juventude na Índia, antes de ir para a Inglaterra e ter uma gloriosa carreira como juiz, chegando até a mais alta corte, responde:
– “As luzes, as cores, os sorrisos. O modo de as pessoas verem a vida como um privilégio, e não como um direito”.
Diacho. Que maravilha de frase. De conceito, de valor.
As luzes, as cores, os sorrisos. O modo de as pessoas verem a vida como um privilégio, e não como um direito.
É maravilhoso ver que um filme assim esteja encantando gente ao redor do mundo
O Exótico Hotel Marigold é um filme feito com uma absurda sensibilidade à flor da pele. Tem uma visão profundamente humanista, esperançosa, positiva, sobre a vida o amor a morte. Todos os valores que ele defende são os bons valores – nada a ver com a escala de valores que normalmente é a que prevalece nas nossas sociedades, que privilegiam os bens materiais, a conta no banco, a ostentação, a concorrência, o querer ser ou aparentar ser melhor que os outros.
É uma ode à vida, à alegria de viver, ao companheirismo, a amizade, a solidariedade. É believer, anti-cínico, como um Frank Capra.
Por tudo isso, é maravilhoso ver que, pelo que se diz na imprensa, o filme tem feito um sucesso extraordinário mundo afora.
Que coisa maravilhosa saber que, nas profundezas deste nosso tempo de falta de crença em qualquer coisa, há multidões de pessoas que se encantam com um filme assim.
Poderiam ter optado pela regra Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar? Não optaram
O diretor John Madden (62 anos em 2011, ano de lançamento do filme) e o roteirista Ol Parker (um garoto de 42 anos!) levam exatos sete minutos e meio para nos apresentar os sete personagens da história, criados pela escritora Deborah Moggach (63 anos) em seu romance These Foolish Things, publicado em 2004.
Poderiam perfeitamente ter cedido à tentação de seguir aquela regra cada vez mais comum segundo a qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?, e nos apresentado os sete personagens ao mesmo tempo, quando, por exemplo, se reúnem todos no aeroporto de Londres para voar para a Índia. Aí nós pobres espectadores teríamos dificuldade em saber direito quem é quem, quem faz o quê. Os produtores e diretores, em especial do cinemão comercial, parecem adorar quando deixam o espectador em dificuldade de acompanhar o que está sendo contado.
Poderiam perfeitamente ter nos apresentado todos os sete ao mesmo tempo, enquanto rolavam os créditos iniciais – como se faz agora na maioria dos filmes do cinemão comercial –, porque aí seria ainda mais difícil para o espectador acompanhar os diálogos, tentar entender quem é quem, e de vez em quando ler os nomes dos atores, dos principais membros da equipe técnica.
O roteirista Ol Parker é um garotão, mas o diretor John Madden é um senhor experiente, vivido. E então eles nos introduzem os seis personagens um a um, botando na tela o nome de cada um deles. Os créditos vão rolar mais tarde.
Na abertura, um pouco de cada um dos sete personagens
Cada personagem é mostrado numa situação que um tanto define quem é ele. Vemos seis rápidas seqüências, que duram no conjunto sete minutos e meio, e zás: já estamos prontos para ver o que virá em seguida.
1 – Evelyn (a maravilhosa Judi Dench, 77 anos em 2011) está falando com a atendente da operadora telefônica. Depois de longa espera (ouvimos várias vezes, junto com Evelyn, a vozinha hedionda dizendo as frases hediondas – “Obrigado por sua paciência; sua ligação é importante para nós. Em instantes iremos atendê-lo”), Evelyn faz perguntas sobre a conexão de internet, banda larga, wi-fi, coisas sobre as quais ela não entende bulhufas. A atendente explica que precisa falar com o titular da linha. Evelyn explica que não será possível: seu marido, o titular da linha, está morto.
2 – Graham (o sempre impecável Tom Wilkinson, 63 anos) é juiz da mais alta corte da Justiça inglesa. Naquele dia em que o vemos pela primeira vez, está havendo a festa de despedida de um colega – e Graham detesta festas de despedida. Vem falando faz tempo em aposentadoria, mas sempre adiou um pouco mais. Naquele dia, ele se decide, finalmente: vai parar de trabalhar.
3 e 4 – Douglas e Jean (interpretados por Bill Nighy, 62 anos, e Penelope Wilton, 65 anos) estão visitando um apartamento com um corretor. O corretor fala maravilhas do imóvel, chama a atenção para o fato de que ele tem um apoio para quando, dali a alguns anos, um morador estiver usando cadeira de rodas, e possui também um botão de pânico, para o caso de ser preciso pedir uma ambulância. Jean tem um ataque quase histérico; Douglas pede para ficar um momento sozinho com a mulher, o corretor se retira, Jean reclama que, após 30 anos no serviço público, tudo o que eles têm condições de comprar é aquele apartamento vagabundo. Douglas pergunta se adianta ele pedir desculpas – ela diz que não adianta, mas que ele deve pedir desculpas assim mesmo.
5 – Muriel (a fantástica Maggie Smith, 77 anos) está deitada em uma maca, num corredor de hospital. Reclama que está ali faz horas e nenhum médico a atendeu. A enfermeira diz que não é bem assim, que um médico veio falar com ela, mas ela o rejeitou – o médico era negro. Muriel diz que quer ser atendida por um médico inglês. A enfermeira então, alegre por se vingar daquela chata racista, traz um médico cidadão britânico – um legítimo indiano.
6 – Norman (Ronald Pickup, 71 anos) está ouvindo uma mulher aí na faixa dos 40, em um bar, em encontro arranjado em site para pessoas solitárias. A mulher está irritada porque ele mentiu a idade ao marcar o encontro. Norman é um solitário bem humorado, mas a mulher, indignada, levanta-se e vai embora.
7 – Madge (Celia Imrie, a mais nova da turma, aos 59 anos) está saindo da casa da filha; cansou-se de cuidar dos dois netos. O genro goza o fato de ela ter tido maridos demais – e Madge parece determinar a sair pelo mundo à cata de mais um. Entra no táxi que havia chamado, o motorista pergunta para onde ela vai. Madge responde que não tem a menor idéia.
Uma Índia caótica e doce, problemática e fascinante, pobre e feliz, milenar e moderna
Cada um por seus motivos próprios, todas essas sete pessoas decidem ir para a Índia. Vários foram atraídos pelo anúncio na internet do The Best Exotic Marigold Hotel (o título brasileiro do filme tirou fora a expressão “o melhor”). O anúncio promete um hotel de luxo para “os mais velhos e belos”, na cidade Jaipur. Encontram-se todos no aeroporto de Heathrow.
O Melhor Exótico Hotel Marigold, eles descobrirão, junto com o espectador, não tem absolutamente nada de melhor, nem de luxo. É uma casa antiquíssima, que precisaria desesperadamente de uma reforma, onde sequer a hidráulica e o telefone funcionam, de propriedade da família de um garotinho muito jovem e esperto, Sonny Kapoor (interpretado por Dev Patel, a grande revelação de Quem Quer Ser um Milionário?). Sonny resolveu seguir os passos do pai (que aparentemente já morreu), e montou um hotel ali na cara e na coragem, sem dinheiro, sem reforma, mas com um fantástico senso de marketing, simpatia, auto-confiança, perseverança e determinação.
O personagem de Sonny é um espetáculo à parte, com longas, elaboradíssimas frases que parecem saídas do mais bem caprichado livro de auto-ajuda, que ele recita numa velocidade de fazer inveja ao finado Eneas, aquele eterno candidato de si próprio à Presidência do Brasil.
A extroversão de Sonny, numa interpretação deliciosa de Dev Patel, e estúpida beleza de Tena Desae, a atriz que faz Sunaina, namorada do garoto, são um maravilhoso contraponto às interpretações desse excelso time de grandes atores ingleses reunidos pelo diretor John Madden.
O excepcional trabalho de câmara do diretor de fotografia Ben Davis mostra uma Índia ao mesmo tempo caótica e doce, problemática e fascinante, pobre e feliz, milenar e moderna.
E Thomas Newman nos brinda com uma beleza de trilha sonora.
Com perdão dos dois eventuais leitores que já tenham lido esta frase aqui neste site, mas não me canso de repeti-la. Eis aqui mais um filme que comprova que o melhor cinema do mundo hoje é feito naquelas ilhotas à esquerda do continente europeu.
Uma fascinante teia de relações humanas
A trama do filme é fascinante, envolvente. É rica, variada, surpreendente a teia de relações que se estabelecem entre aqueles velhos ingleses numa terra absolutamente diferente da deles. A casadoira Madge, por exemplo, vai ajudar o solitário Norman a encontrar uma companhia – antes mesmo que ela encontre alguém para si mesma. A insuportável Jean terá uma atração forte por Graham, pelo simples fato de que ele foi um magistrado da Suprema Corte, uma figura poderosa. A doce, suave Evelyn vai se interessar por Graham – não pelo que ele já foi na vida, mas pela pessoa que ele é. E Graham abrirá seu coração para ela. O fosso que já existia entre Jean e Douglas vai se aprofundar cada vez mais.
E a antes racista, ranheta, mal humoradíssima Muriel vai renascer naquela terra tão absolutamente distante, em tudo, da sua sacrossanta civilização inglesa.
As luzes, as cores, os sorrisos. O modo de as pessoas verem a vida como um privilégio, e não como um direito.
O bem-estar das civilizações nem sempre leva ao bem-estar pessoal. Às vezes é o contrário
Depois que vi o filme, ao pensar sobre essa frase dita por Graham-Tom Wilkinson, me lembrei de um filme que vi muitos anos atrás, uma vez só, passado na África, em meio a uma imensa miséria material – mas em que os personagens eram felizes.
Tinha ficado guardada na minha memória a imagem de um africano extremamente pobre, desdentado, sorrindo um imenso sorriso de felicidade. Não me lembrava do nome do filme, de nada. Lembrava desse contraste entre a pobreza material e a capacidade de ser alegre que os personagens têm.
Ainda bem que anoto as coisas. O filme – está lá no meu caderno – se chama La Vie est Belle; é uma co-produção Zaire-Bélgica, de 1986, dirigido por Benoit Lamy e Ngangura Mweze, e vi na 11ª Mostra Internacional no antigo Cine Majestic da Rua Augusta (depois Espaço Nacional, depois Espaço Unibanco, hoje Espaço Itaú de Cinema).
Gostaria de revê-lo.
La Vie est Belle, assim como este Hotel Marigold, chama a atenção para essa coisa de que o bem-estar material das civilizações nem sempre, não necessariamente, leva ao bem-estar pessoal.
Às vezes é até um tanto ao contrário.
Não estou querendo fazer a elegia da miséria, dizer que quanto mais mais despossuída for a pessoa maior será a possibilidade de algo como a felicidade. Não é isso. Mas é que muitas vezes – tragicamente – quanto mais se possuem confortos materiais, mais se distancia dos valores básicos da vida, aqueles mesmos de sempre: a generosidade, a solidariedade, a abertura para as amizades, as relações afetivas.
Somos uma raça estranha, capaz de fazer nórdicos profundamente angustiados, aprisionados em si mesmo, e zairenses ou indianos alegres, bem dispostos, solidários, amigos.
O modo de as pessoas verem a vida como um privilégio, e não como um direito.
Como se a vida ensinasse mais, ou melhor, na pobreza que na riqueza
Do grupo de sete ingleses que despenca de pára-quedas no Melhor Exótico Hotel Marigold, o mais materialmente realizado, o que se deu melhor na carreira profissional, é o Graham vivido por Tom Wilkinson, que estudou, ralou, e chegou ao píncaro do que poderia esperar alguém na área do Direito. Na Inglaterra, no entanto, Graham, é um poço profundo de insatisfação, inadequação. Despreza tudo aquilo que vem com o nobre cargo – e que a pateta Jean admira como os fiéis adoram seus santos. Graham terá fugazes momentos de alegria jogando críquete com garotinhos pobres numa área pobre da pobre Jaipur.
No outro extremo da escala social está a Muriel interpretada por Maggie Smith. Muriel é working class; trabalhou boa parte da vida como governanta de uma família rica. Aprendeu, provavelmente com os patrões, as idiotices do racismo, do supremacismo. Por circunstâncias da vida, será capaz de se redecobrir e renascer num país que a princípio desprezava.
Cada um à sua maneira, quase todas aquelas pessoas que já viveram bem mais que a metade da vida, que estão bem mais perto da morte que da juventude, encontrarão na ex-colônia britânica um sentido que faltava a elas no coração do antigo Império.
Como se a vida tivesse mais lições a dar, ou tivesse uma didática melhor para ensiná-las, no fundo da pobreza terceiro-mundista do que no centro do país que um dia foi dono de metade do planeta.
Uma maravilha de filme.
Anotação em setembro de 2012
O Exótico Hotel Marigold/The Best Exotic Marigold Hotel
De John Madden, Inglaterra-EUA-Emirados Árabes Unidos, 2011.
Com Judi Dench (Evelyn Greenslade), Tom Wilkinson (Graham Dashwood), Maggie Smith (Muriel Donnelly), Bill Nighy (Douglas Ainslie), Penelope Wilton (Jean Ainslie), Celia Imrie (Madge Hardcastle), Ronald Pickup (Norman Cousins), Dev Patel (Sonny Kapoor), Tena Desae (Sunaina), Lillete Dubey (Mrs. Kapoor), Rajendra Gupta (Manoj)
Roteiro Ol Parker
Baseado no romance de Deborah Moggach
Fotografia Ben Davis
Música Thomas Newman
Produção Blueprint Pictures, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ. DVD Fox.
Cor, 123 min
***1/2
Só de ler o *trecho “Todos os valores que ele defende são os bons valores – nada a ver com a escala de valores que normalmente é a que prevalece nas nossas sociedades, que privilegiam os bens materiais, a conta no banco, a ostentação, a concorrência, o querer ser ou aparentar ser melhor que os outros” já me deu vontade de ver o filme. Porque olha… tô cansada dessa super valorização da aparência, de ter que se vestir assim ou assado, aparentar ser o que não é e o que não tem. Vejo um pouco melhor como o brasileiro está bitolado nisso quando ouço conversa de pessoas que viajam ao exterior. Só falam em comprar, em duty free, em coisas de marca. Nos lugares te olham feio, ou de cima pra baixo se você não está vestido de acordo com o que a sociedade considera ideal, se seu cabelo não é liso, loiro etc. Uma pobreza de espírito sem fim. Às vezes isso me desanima muito. E o pior é que só tende a piorar. Como você diz várias vezes em vários textos: a humanidade é uma invenção que não deu certo.
* mas claro que li todo o texto.
Concordo 100% com você, Sergio. O melhor cinema é mesmo feito naquelas ilhotas à esquerda do continente europeu, assim como o melhor teatro. Amei o Exótico Hotel Marigold!
A expressão é exatamente essa, Sergio.
” Que maravilha de filme ” Fabuloso.
É aquele tipo de filme que nunca vamos nos esquecer.
Como foi bom rever Maggie Smith e Judi Dench juntas novamente. Essas duas jóvens-idosas-senhoras, elas arrasam, deslumbram.
O fabuloso Tom Wilkinson, Bill Nighy, Ronald Pickup, Penelope Wilton, Celia Imrie, todos estão muitíssimo bem, maravilhosos.
Gostei muito tbm do personagem do Dev Patel.
“quando serei operada? Há uma lista de 6 meses de espera… na minha idade não posso fazer planos tão longos… nem sequer compro bananas verdes …”
“Não como aquilo que não consigo pronunciar”.
“Será que viajamos para tão longe para nos permitirmos chorar ?”
“De que adianta um casamento onde nada é compartilhado ?”
“Voce é um poço de negatividade infinita, se recusa a ver qualquer tipo de luz e alegria mesmo estando diante de seu nariz ” .
Quando a Jean sabe que o Grahan é gay, foi a gôta d’agua. Ficou ainda mais azêda e amarga e teve de ouvir isso.
“No final tudo vai dar certo e se não der, acredite, é porque o final ainda não chegou”.
São apenas alguns de tantos diálogos lindos existentes neste filme . Assim como esta pérola que voce cita no início do texto.
” O que o senhor vê neste país que eu não vejo” ?
” Vejo as luzes , as cores, os sorrisos . O modo de as pessôas verem a vida como um privilégio e não como um direito. ”
Lindo demais .
Que transformação maravilhosa da Muriel.
Fiz uma cópia deste filme ,(DVD) não pensei duas vezes. Vou querer revê-lo outras tantas vezes.
Sim, em tempo: “O topo da montanha”. Lembra?
Um filme para sempre !!
Abraços !!
Só ontem vi o filme, Sérgio, e adorei! Já postei o meu comentário, incluindo um link directo para aqui.
Grande abraço, amigo!
Vim atrás do Sérgio e do Rato e posso dizer que também adorei.
O melhor cinema que se faz actualmente é das Ilhas Britânicas, não tenho dúvida.
Um filme maravilhoso e compartilho sua descrição!