A Viúva de Saint-Pierre/La Veuve de Saint-Pierre

Nota: ★★★☆

Belo, com deslumbrantes imagens e excelentes interpretações, A Viúva de Saint-Pierre é um forte, denso panfleto contra a pena de morte. No entanto, o filme do realizador Patrice Leconte demora bastante a revelar que esse é seu tema, seu propósito, sua intenção. E chega a ser desconcertante ao focalizar o estranho triângulo amoroso que se forma entre seus principais personagens.

Patrice Leconte foi bem longe, no tempo e no espaço, ao criar, juntamente com Claude Faraldo, a história e o roteiro de seu filme de 2000. Logo na abertura, um letreiro nos informa que a ação se passa em 1849, no Arquipélago de Saint-Pierre et Miguelon. Mais exatamente na ilha de Saint-Pierre, bem menor que a de Miguelon, situada ao sul da Terra Nova e a leste da Nova Escócia, no Canadá.

Mais longe de Paris, impossível.

A primeira imagem que vemos é a de Juliette Binoche, ao fundo de uma imensa sala vazia. A câmara vai se aproximando muito suavemente dela, enquanto rolam os créditos iniciais. E a voz em off da atriz conta de dias do passado, quando um denso nevoeiro cobriu a ilha e o Atlântico em volta dela.

No meio do nevoeiro forte, um navio recolheu dois marinheiros pescadores que sobreviveram a um naufrágio, remando durante dias em um bote salva-vidas. Os sobreviventes são Louis Ollivier (Reynald Bouchard), um homem mais velho, e Neel Auguste, um sujeito imenso, corpulento, forte, cabelos grandes e sempre desgrenhados, barba sempre por fazer – uma figura impressionante.

Neel Auguste é interpretado – com brilho – por Emir Kusturica (na foto), o diretor sérvio que, 15 anos antes, em 1985, havia ganho a Palma de Ouro em Cannes por seu filme Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, também indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Naquele fim de mundo gelado, um casal que parece viver num universo à parte

Uma noite, bêbados feito gambás, completamente fora de si, esses dois sujeitos, Louis e Neel, acabam matando um homem, Coupard, na Ilha do Cão, uma ilhota bem próxima de Saint-Pierre. São presos poucas horas depois do crime, e julgados num tribunal presidido por um dos homens ricos da ilha, Venot (Philippe Magnan).

Interrogados sobre por que mataram o homem a facadas, os dois respondem que queriam saber se ele era gordo ou grande.

Entre as sequências que mostram Neel e Louis sendo resgatados pelo barco, enchendo a cara num bar, indo à Ilha do Cão cometer seu crime, sendo presos, sendo julgados, vemos sequências com o casal Jean e Pauline – interpretados por Daniel Auteil e Juliette Binoche. Jean é o capitão do destacamento militar da ilha; Pauline é uma mulher de família rica, a mulher mais bela, mais elegante de Saint-Pierre.

O casal parece inteiramente deslocado naquele fim de mundo gelado para onde Jean foi mandado. Estariam seguramente muito mais em seu ambiente se estivessem em Paris, frequentando festas de ricos. Têm o menor contato possível com as demais pessoas do lugar; não freqüentam as reuniões na casa do governador (Michel Duchaussoy). Ninguém ali os compreende – acham o casal esquisito, estranho. E Jean e Pauline parecem viver de fato num mundo à parte, só deles. São extremamente carinhosos um com o outro. Estão muito à frente e acima daquelas pessoas menores, hipócritas, apegadas a convenções imbecis.

O assassino é condenado à morte. Mas não há guilhotina na ilha, nem carrasco

Sai a sentença. Louis é condenado a trabalhos forçados, e Neel, que deu os golpes fatais na vítima, à morte.

E aí surge o impasse.

Desde a Revolução de 1789, executavam-se os condenados à morte na guilhotina – veuve, na gíria; veuve, a mesma palavra que significa viúva.

Mas não havia veuve, guilhotina, em Saint-Pierre – nem carrasco. O governador pede ao governo da República que envie uma guilhotina para a remota ilha. A Martinica havia acabado de receber uma nova, e sai de lá, rumo a Saint-Pierre, num navio, a guilhotina necessária para cumprir a sentença do tribunal. A viagem dura meses.

Logo após o julgamento, Louis morre num acidente.

Durante os meses que se seguem ao julgamento, Neel é mantido prisioneiro no forte do destacamento comandado pelo capitão Jean.

Pauline afeiçoa-se por ele. Pede ao marido para que Neel a ajude a cuidar das flores que cultiva numa estufa.

O falatório na ilha sobre a mulher do capitão e o prisioneiro, vistos sempre juntos, é geral.

          “Condenamos um facínora e decapitaremos um benfeitor”

E, enquanto a veuve não chega a Saint-Pierre, Neel vai conquistando as simpatias da imensa maioria dos habitantes da ilha, os pobres, os trabalhadores. Num ato de heroísmo, salvará uma vida e a própria existência do bar onde as pessoas se divertem. Vira um ídolo.

– “Condenamos um facínora e decapitaremos um benfeitor”, sintetiza, apavorado, o velhaco Venot, figura desprezível, mesquinha, que havia presidido o tribunal.

Reconstituição de época soberba, trabalha da câmara que é um estupor

Mary e eu tínhamos visto o filme na época do lançamento, em 1991. Na época, não escrevi nada sobre ele – apenas anotei os dados básicos, a data em que vimos, e dei a classificação máxima, 4 estrelas.

Ao rever agora, me decepcionei um pouco com a primeira metade dele, quando a narrativa fica bastante centrada na atração que Neel, aquele brutamontes gigante, exerce sobre a bela e fina Pauline, e na estupefação que aquela relação causa entre os poucos burgueses do lugar.

Mas o filme cresce muito à medida em que a narrativa avança e Leconte vai focando mais no que realmente interessa – a questão da pena de morte.

A Viúva de Saint-Pierre tem uma reconstituição de época soberba. Os créditos finais mostram que os figurinos foram feitos em três capitais européias, Paris, Roma e Viena. Os figurinos, a direção de arte, tudo é esmeradíssimo.

E o trabalho da câmara do diretor de fotografia Eduardo Serra é um estupor.

O filme alterna, com brilho, fulgor, grandes close-ups dos rostos dos personagens com planos gerais de imensa beleza. Tem um visual suntuoso, acachapante, este A Viúva de Saint-Pierre.

O trio central de atores está estupendo. Daniel Auteil e Juliette Binoche, de imenso talento, estão soberbos. Mas é Emir Kusturica que acaba roubando a cena. Sua interpretação é uma maravilha.

O relacionamento entre a fina dama francesa e o pobre pescador da ilhota no fim de mundo é de uma imensa riqueza. Poderiam ser escritas teses e teses sobre ele, do ponto de vista psicológico, do ponto de vista sociológico. Leconte o filma com imensa ternura e elegância, e La Binoche e Kusturica interpretam maravilhosamente seus personagens.

A sociedade não está preparada para tratar um criminoso que se recupera

Ao rever o filme agora, me lembrei de outras duas belas obras. Uma delas é o Capeman, a peça que acabou se tornando o maior fracasso da carreira augusta de Paul Simon. Capeman, como este filme de Patrice Leconte, se baseia numa história real, e fala de crime, castigo e a recuperação do criminoso. Numa das canções da peça, depois de ter cumprido longos anos de prisão, o homem hoje maduro que não tem nada a ver com o adolescente que matou um garoto numa briga de gangue diz: “Vou tirar o mal de dentro de mim e transformá-lo em bem, embora todas as suas instituições nunca pudessem imaginar que eu conseguiria”.

É uma trágica verdade: a sociedade e suas instituições não estão preparadas para tratar criminosos que se recuperam. O filme mostra isso exemplarmente.


A outra obra que A Viúva de Saint-Michel me fez lembrar é Equador, o extraordinário romance do português Miguel Sousa Tavares. Em Equador, o personagem central, assim como o capitão Jean, é retirado de sua boa vida na capital, no início do século XX, e enviado para um arquipélago longínquo, distante, incivilizado. Terá, como o militar gauche, deslocado naquele mundo distante do filme de Leconte, um destino trágico.

O filme se baseia em um caso real acontecido em 1889

O filme não faz referência em momento algum ao fato de que a trama se baseia em um caso real. Mas houve, sim, um Joseph Auguste Néel, nascido na ilha de Saint-Pierre, em 1860, que foi preso e condenado à morte por ter, juntamente com um amigo, assassinado um homem. O crime real aconteceu em 1889. O diretor Leconte e seu co-roteirista Claude Faraldo preferiram puxar a história para quatro décadas antes, para 1849, quando Napoleão III era eleito o primeiro presidente da República Francesa. (Em 1952 ele se tornaria imperador, mas, como notou um crítico francês do L’Express, essa é uma outra história.)

Juliette Binoche e Emir Kusturica foram indicados ao César, o Oscar francês. O filme foi também um dos indicados ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro.

É um belo filme, que merece ser visto.

Anotação em agosto de 2012

A Viúva de Saint-Pierre/La Veuve de Saint-Pierre

De Patrice Leconte, França-Canadá, 2000

Com Juliette Binoche (Pauline, Madame La), Daniel Auteuil (Jean, o capitão), Emir Kusturica (Neel Auguste),

Michel Duchaussoy (o governador), Philippe Magnan (o presidente Venot), Christian Charmetant (o comissário da marinha), Philippe Du Janerand (o chefe da aduana), Reynald Bouchard (Louis Ollivier), Ghyslain Tremblay (Chevassus), Maurice Chevit (o pai do governador), Catherine Lascault (La Malvilain),

Argumento e roteiro Claude Faraldo e Patrice Leconte

Fotografia Eduardo Serra

Música Pascal Estève

Produção Cinémaginaire Inc., Epithète Films, France 2 Cinéma, France 3 Cinéma. DVD Movie Star. Estreou em SP 6/4/2001.

Cor, 112 min

R, ***

 

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