(Disponível na Netflix em 1/2023.)
O título bilíngue ficou esquisitíssimo – Glass Onion: Um Mistério Knives Out, mas isso é o de menos. A segunda aventura cômico-misteriosa do detetive Benoit Blanc, escrita e dirigida por Rian Johnson, é uma explosão de idéias, sacadas, boas piadas, participações especiais, referências a pessoas, filmes, livros – e, claro, reviravoltas, surpresas.
Twists.
Meses atrás, sobre a série polonesa Confie em Mim (2022), escrevi que “as histórias de Harlan Coben têm mais twist do que todos os discos de Chubby Checker juntos. Quando você já está absolutamente exausto de tanta reviravolta, prepare-se: adiante virão mais umas quatro ou cinco”.
Pois é… Como as coisas são subjetivas… Nas histórias de Harlan Coben, as reviravoltas me cansam. Nessa comédia gostosa, leve, que absolutamente não se leva a sério, as reviravoltas me divertiram.
O primeiro filme com o detetive Benoit Blanc, interpretado por um Daniel Craig com uma pronúncia esquisitíssima, única no mundo, veio em 2019. Em Knives Out, no Brasil Entre Facas e Segredos, um desconhecido, sob garantia de anonimato, oferece uma soma bem considerável ao famosérrimo detetive para investigar novamente a morte de um famoso escritor de novelas policiais, Harlan Thrombey (o papel do grande Christopher Plummer, em um de seus últimos filmes). A polícia já havia investigado, entrevistado detidamente todos os membros da família da vítima, e concluído que havia sido suicídio.
Mas Benoit Blanc vai à cidade em que Harlan Thrombey vivia, e começa a fazer a sua própria investigação.
Harlan – não por coincidência, o mesmo nome do escritor Harlan Coben, citado mais acima. É um traço do autor e diretor Rian Johnson: neste Glass Onion ele usa e abusa das referências a personalidades da vida real.
Gostei bastante de Entre Facas e Segredos/Knives Out. A trama é muitíssimo bem elaborada; é um thriller, uma história de crime e mistério, um whodunit, quem é que fez? quem é que matou? – que é ao mesmo tempo uma homenagem a Agatha Christie e uma brincadeira com o estilo dela, a forma com que ela criava seus romances. E o tom é todo de um delicioso bom humor. Não é uma comédia daquelas de o espectador dar gargalhadas. Não, não, de forma alguma. O humor é sutil. Suave. Nada escancarado.
Um whodunit que não é sério, pesado, denso – mas, ao mesmo tempo, faz uma dura crítica à ganância, à ambição, à avareza. E, do fundo do negror da era Donald Trump, a era do ódio aos imigrantes, a rigor do ódio a tudo o que não é branco, anglo-saxão, protestante, um filme que faz o elogio à personagem que é imigrante latino-americana.
Knives Out é brincalhão mas fala de coisas sérias.
Foi um tremendo sucesso de público e crítica. Faturou US$ 310 milhões mundo afora, e ganhou um total de 52 prêmios; foram 114 indicações no total, incluindo as de melhor roteiro original tanto do Oscar quanto do Bafta. Com o sucesso, os produtores ofereceram Rian Johnson a chance de fazer mais dois filmes com o detetive Benoit Blanc.
Este Glass Onion segue maravilhosamente os princípios do primeiro filme. Mas não é uma continuação, de forma alguma – é um outro caso completamente diferente, uma nova aventura de Benoit Blanc, o único personagem presente nas duas histórias.
Um fim de semana na ilha paradisíaca do milionário
O primeiro filme envolvia um escritor de novelas policiais com o mesmo prenome do famoso escritor de novelas policiais Harlan Coben. Este aqui envolve um excêntrico ultra bilionário que fez sua fantástica fortuna com carros elétricos e empresas de alta tecnologia – e, evidentemente, qualquer semelhança com Elon Musk não é mera coincidência.
O bilionário, é interpretado por Edward Norton, e seu nome é Miles Bron (a notar, é claro, a proximidade entre Elon e Bron…). Ele envia para um grupo de amigos um brinquedo, uma geringonça, uma caixa mais misteriosa e complicada que um cubo mágico, que contém um convite para um fim de semana em uma ilha grega paradisíaca de sua propriedade.
O grupo, bastante heterogêneo, é formado por pessoas muito próximas ao bilionário – mas são todos, mais ainda que amigos chegados, de alguma maneira parceiros, sócios ou cúmplices de Bron. Cada um deles deve muitos favores a ele – e de alguma forma já retribuiu ou ainda precisa retribuir ao ricaço pelo que recebeu no passado.
Por exemplo: Clare Debella (o papel de Kathryn Hahn) é governadora de um Estado americano; seu mandato está chegando ao fim, e ela é candidata ao Senado Federal. Bron fez gigantescas doações a ela cada vez que se candidatou; em compensação, Clare autorizou a construção, em seu estado, de uma usina de uma das empresas de Bron. Com a usina, o milionário pretende obter uma nova fonte de energia teoricamente barata e limpa – só que o projeto ainda não passou por todos os testes que seus próprios criadores exigiam que fossem feitos antes de se tentar a produção em grande escala.
Birdie Jay (o papel de Kate Hudson) era modelo, virou figurinista e depois, com o financiamento do milionário Bron, transformou-se em dona de uma indústria de roupas – que eventualmente produz as roupas em Bangladesh, usando mão de obra em regime semelhante à escravidão. Birdie vai para a ilha de Bron com sua fiel assistente Peg (Jessica Henwick).
Há uma figura horrorosa, um tal Duke Cody (Dave Bautista), mistura de rapper, DJ e influencer no YouTube, se é que entendi bem. O sujeito é do tipo patolão, grandalhão, machista, anda sempre armado – e tem uma namorada bonitinha, Whiskey (Madelyn Cline)
Lionel Toussaint (Leslie Odom Jr.) é o gênio do grupo, um cientista bambambã, o cara que criou, bolou algumas das invenções tecnológicas que fizeram a fortuna astronômica de Miles Bron.
Claire, Birdie Jay e Peg, Duke e Whiskey, Lionel. Esses são os seis amigos que o milionário convidou para um fim de semana de festa na sua ilha paradisíaca no Mar Egeu, onde ele mandou construir uma casa que faz lembrar a cebola de vidro que dá o título do filme – Glass Onion.
Quando eles chegam, Bron anuncia que o fim de semana será só de delícias – e incluirá um assassinato. Quem conseguir adivinhar os motivos do crime ganhará um presente especialíssimo.
A trama cita Agatha Christie, Mark Zuckerberg, Elon Musk…
Acontece que duas outras pessoas, que não eram esperadas, aparecem também. Um deles é o maior detetive do mundo no momento, Benoit Blanc. A outra é Andi Brand (o papel da belíssima, fascinante Janelle Monáe (na foto abaixo).
Andi Brand havia sido sócia de Miles Bron quando ele começou o empreendimento que o tornaria milionário. Uns dez anos antes desse fim de semana de festa, os dois haviam se desentendido, brigado, rompido a sociedade. A briga havia ido parar na Justiça; ajudado por sua gigantesca fortuna, pelos melhores advogados do mundo, Bron havia conseguido provar nos tribunais que ele havia sido o responsável pela invenção inicial que transformou a empresa dele e de Andi Brand em algo valorosíssimo, poderosíssimo.
O que eu relatei até aqui não é spoiler, de forma alguma. Tudo isso aí é apresentado para o espectador nos primeiros, sei lá, 20, 25 primeiros minutos. E o filme é um pouquinho mais longo do que o padrão: tem 139 minutos.
Muita, mas muita coisa vai acontecer a partir disso aí que relatei. A trama é deliciosa, muitíssimo bem armada, os personagens são interessantes, os atores estão muito bem.
O que me fascinou especialmente, o que me encantou, foi a grande quantidade de citações que o filme faz a outras obras, a pessoas famosas, e o grande número de participações especiais de atores e outras personalidades famosas.
Vamos lá.
* Sujeito rico convida um grupo de pessoas para um fim de semana em sua propriedade, uma ilha. Lá haverá um crime – na verdade, vários.
Claro: é uma citação de Agatha Christie. Essa é a base da trama do 40º dos 74 novelas policiais da escritora, que saiu em 1939, com o título de Ten Little Niggers, e mais tarde virou Ten Little Indians, nos Estados Unidos And Then There Were None. René Clair filmou a história em 1945, com o título americano do livro, no Brasil O Vingador Invisível.
A história clássica de Agatha Christie inspirou o dramaturgo e roteirista Neil Simon a escrever o delicioso Assassinato por Morte/Murder by Death, em que um milionário excêntrico convida para um fim de semana em sua mansão perdida no meio do nada do interiorzão dos Estados Unidos alguns dos mais famosos detetives da literatura policial. Ali acontecerá um assassinato, que os detetives terão que resolver. O filme, de 1976, dirigido por Robert Moore, com um elenco espetacular, é uma total delícia.
O criador e diretor Rian Johnson cita e homenageia as duas histórias, a de Agatha Christie e a de Neil Simon.
* Dois jovens criadores de uma empresa de tecnologia que vira uma potência mundial se desentendem, um briga com o outro, um deles é afastado.
Bem, este foi um caso real, certo? Aconteceu com um estudante de Harvard chamado Mark Zuckerberg e seu amigo e parceiro Eduardo Saverin. O filme que conta a história da criação do que viria a ser o Facebook, A Rede Social/The Social Network (2010), de David Fincher, é citado com todas as letras neste The Glass Onion.
* “Glass Onion” – quem não se lembra da canção do Álbum Branco dos Beatles, em que John Lennon canta histórias sobre os próprios membros da banda e algumas de suas músicas? “I told you about the walrus and me, man / You know we’re as close as can be, man / Well here’s another clue for you all / The walrus was Paul.”
Mona Lisa tem papel importante na trama
E há as participações especiais…
Na primeira sequência em que vemos Benoit Blanc – depois de sermos apresentados a todos os convidados de Miles Bron –, o detetive está sentado na banheira, com um laptop à sua frente, jogando uma versão online do jogo de tabuleiros famosíssimo que no Brasil se chama exatamente “Detetive”. Ali, tela do laptop, no jogo, aparecem dois veteranos artistas americanos: a atriz Angela Lansbury e o compositor, letrista e escritor Stephen Sondheim.
Sondheim morreu em novembro de 2021 e Angela, em outubro de 2022, exatamente o mês em que o filme foi lançado. Nos créditos finais há uma homenagem aos dois grandes artistas.
A tal sequência em que o detetive Benoit Blanc está sentado na banheira vai reaparecer depois da metade do filme, logo após uma reviravolta gigantesca. Nessa hora, batem na porta do apartamento de Benoit Blanc. Alguém que vive ali também vai atender. O ator que representa o companheiro de casa de Benoit Blanc é Hugh Grant.
Meu, que delícia ver o ator que tantas vezes interpretou o incansável conquistador Bond, James Bond e o galã de trocentas comédias românticas fazendo papéis de um casal gay!
Uma hora lá alguém explica para um dos personagens como é construída uma fuga, em referência àquele tipo de composição muito comum no período barroco. É ninguém menos que Yo-Yo Ma, o americano nascido na França de origem chinesa que é um dos maiores violoncelistas da História.
Há aparições relâmpago desse tipo de Ethan Hawke, Natasha Lyonne, Kareem Abdul-Jabbar e Serena Williams.
Ah, sim, e Mona Lisa tem um papel importantíssimo na trama. Se Hugh Grant, Yo-Yo Ma, Serena Williams e os outros fazem apenas participações especiais e aparecem na tela não mais que um minuto, Mona Lisa tem um papel fundamental, e aparece em várias, várias, várias sequências.
Com direito a ouvirmos a canção “Mona Lisa”, de Ray Evans-Jay Livingston, na voz aveludada de Nat King Cole, que conheço desde rigorosamente sempre, desde muito garoto em Belo Horizonte: “Do you smile to tempt your lover, Mona Lisa? / Or is this your way to hide a broken heart? / Are you warm, are you real, Mona Lisa? Or just a cold and lonesome, lovely work or art?”
Essas referências que citei são as que mais me chamaram a atenção, as mais óbvias, mais escancaradas. Seguramente há muitas outras.
É uma absoluta maravilha como Rian Johnson pegou essa imensa quantidade de elementos – de Mark Zuckerberg a Elon Musk, de Nat King Cole aos Beatles, de Agatha Christie a Angela Lansbury, de And Then There Were None a Murder by Death, de Yo-Yo Ma a Serena Williams – e criou essa trama fascinante e esses personagens exóticos, estranhos, fascinantes.
Nossa, as coincidências: foi só quando escrevi o parágrafo acima que me lembrei que Angela Lansbury trabalhou em pelo menos duas adaptações de obras de Agatha Christie, Morte sobre o Nilo (1978) e A Maldição do Espelho (1980), em que interpretou Miss Marple.
Coincidências, curiosidades. Há muito tempo acho que o número de itens na página de Trivia de um filme no IMDb é um bom indicador do sucesso popular que ele obteve – ou não. No momento em que faço esta anotação – iniciozinho de janeiro de 2023 –, a página de Trivia de Glass Onion no site enciclopédico tem nada menos de 119 itens.
Passo os olhos rapidamente, bem rapidamente por eles, e pesco um para botar aqui:
Em uma entrevista a The Atlantic, Rian Johnson expressou sua contrariedade com o título que os produtores puseram no filme – com o adendo “A Knives Out Mystery”. Para ele, o título teria que ser simplesmente Glass Onion, e pronto. Ele desejava que cada um dos filmes com o detetive Benoit Blanc tivesse vida própria, e que o único elemento comum entre eles fosse exatamente o personagem interpretado por Daniel Craig. “Honestamente, fiquei danado da vida com isso de ter ‘A Knives Out Mystery’ no título. Sabe? Eu queria que ele fosse Glass Onion. Tá, entendo, e quero que todo mundo que gostou do primeiro filme saiba que esse é o seguinte na série, mas, para mim, todo o apelo é que seja uma novela nova na estante a cada vez.”
Está certo o autor. Mas eu e milhões de pessoas no mundo inteiro vamos querer ver também o terceiro Knives Out Mystery, com certeza.
Anotação em janeiro de 2023
Glass Onion: Um Mistério Knives Out/Glass Onion: A Knives Out Mystery
De Rian Johnson, EUA, 2022
Com Daniel Craig (Benoit Blanc), Edward Norton (Miles Bron, o zilionário), Janelle Monáe (Andi Brand, a ex-sócia de Miles), Kathryn Hahn (Claire Debella, a governadora), Leslie Odom Jr. (Lionel Toussaint), Kate Hudson (Birdie Jay, a modelo e figurinista), Dave Bautista (Duke Cody, o influencer), Jessica Henwick (Peg, a assistente de Birdie Jay), Madelyn Cline (Whiskey, a namorada de Duke)
e Noah Segan (Derol), Jackie Hoffman (a mãe de Duke), Dallas Roberts (Devon Debella), Adele Franck (assistente de Claire), Jacek Czajka (funcionário do laboratório), Dan Chariton (Dr. Pierre Bonassus, Eddie Gorodetsky (Dr. Peter Clayton), Coco Shinomiya (Emiko Yamane), Mark Newman (Dr. Mark Swifton)
e, em participações especiais, Ethan Hawke (o homem eficiente), Hugh Grant (Phillip, companheiro de Benoit Blanc), Stephen Sondheim (ele mesmo), Natasha Lyonne (ela mesma), Kareem Abdul-Jabbar (ele mesmo),
Serena Williams (ela mesma). Yo-Yo Ma (ele mesmo), Angela Lansbury (ela mesma), Joseph Gordon-Levitt (a voz do dong a cada hora)
Argumento e roteiro Rian Johnson
Fotografia Steve Yedlin
Música Nathan Johnson
Montagem Bob Ducsay
Casting Bret Howe, Mary Vernieu
Desenho de Produção Rick Heinrichs
Figurinos Jenny Eagan
Produção Ram Bergman, Rian Johnson, Netflix, T-Street.
Cor, 139 min (2h19)
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