Barbarella

(rating:3}

(Disponível em DVD.)

É uma das coisas mais estrondosamente belas que já foram feitas nestes 120 e tantos anos de cinema a abertura de Barbarella. Enquanto vão rolando os créditos iniciais,, vemos a astronavegadora do século 41 retirando, uma a uma, as peças do traje espacial, revelando a pele de Jane Fonda.

Hummmm…, Assim que escrevi o parágrafo acima, pensei: epa, mas Barbarella, o filme que Roger Vadim lançou em 1968 – meu Deus, exatamente 1968, o ano em que tudo aconteceu! –, é muito, mas muito mais que simplesmente essa abertura belíssima.

Roger Vadim, o cara que havia tirado a roupa de uma Brigitte Bardot de 22 aninhos em E Deus Criou a Mulher (1956), sido casado com ela de 1952 a 1957, e tido um filho com Catherine Deneuve em 1963.

Pois é. Eu sei. Abri o texto com esse detalhe, a primeira sequência, seguramente o strip-tease mais absolutamente belo que o cinema já mostrou, porque ele me impressionou demais da conta, ao rever agora o filme pela primeira vez após mais de meio século – mas Barbarella mereceria um lead, um início de texto mais sóbrio, e ao mesmo tempo mais abrangente, que ao menos tentasse contextualizar as coisas.

A única outra abertura de texto que me ficou passando pela cabeça, no entanto, foi…

Barbarella é mais que um filme. C’est un évenement!

Mas isso aí também não é uma boa abertura. Até porque, embora seja uma co-produção França-Itália, a rigor uma produção Dino de Laurentiis, um dos mais poderosos do cinema europeu. Barbarella é falado em inglês. E dizer apenas que o filme é um happening não tem tanta força…

Barbarella é um évenement tão surprenant, um happening tão amazing, tão surprising, que eu simplesmente não sei como começar esta anotação.

É uma deliciosa, gloriosa, insana mistura de comédia com ficção científica com aventura com muito, mas muito, mas muito sexo.

Foi o filme que transformou a jovem Jane Fonda em sex symbol, um dos maiores do cinema na segunda metade do século XX, “a mulher com quem mais se faziam fantasias sexuais do mundo”, como sintetizou o livro The Films of Jane Fonda, de George Haddad-Garcia.

Foi também um precursor. Barbarella, nota ainda o mesmo livro, veio bem antes da série de filmes lançados a partir do final dos anos 70 com outros personagens de histórias em quadrinhos, como o Superman: O Filme (1978), aquele com Christopher Reed, Popeye (1980), aquela maravilha de Robert Altman com Robin Williams e Shelley Duvall como a mais perfeita Olívia Palito que poderia haver, Flash Gordon (1980), uma superprodução do mesmo Dino de Laurentiis, e Sheena, a Rainha das Selvas (1984),

Veio também antes da onda de novos filmes de ficção científica – a saga Star Wars, de George Lucas, que começou em 1977, a série Star Trek, iniciada com Jornada nas Estrelas: O Filme, de 1979, e a série aberta com Alien – O 8º Passageiro, também de 1979.

A mulher emancipada da era da liberação sexual

Barbarella nasceu em 1962, da cabeça do escritor e artista gráfico Jean-Claude Forest (1930–1998). Inicialmente, as tirinhas em quadrinhos foram publicadas na V Magazine, e imediatamente se tornaram um tremendo sucesso. A partir de 1964 as histórias da heroína que viajava entre as galáxias no século 41 e fazia sexo com os mais diferentes alienígenas passaram a ser publicadas em livros e revistas mundo afora. Segundo Forest, Barbarella encarnava a mulher moderna e emancipada da era da liberação sexual.

Jean-Claude Forest foi uma das várias pessoas que criaram o roteiro para o filme que Roger Vadim iria dirigir com sua então mulher, Jane Fonda, no papel da heroína intergaláctica. Além de Vadim e do criador da personagem, trabalharam no roteiro nada menos que seis pessoas: Terry Southern, Brian Degas, Claude Brule, Clement Biddle Wood, Tudor Gates e Vittorio Bonicelli,

Não dá para saber, é claro, se todos eles tomaram LSD, a droga da época – mas que o resultado é de quem estava com ácido na cabeça, lá isso é. (“É muito ácido!”, dizia Mary, volta e meia, enquanto revíamos o filme que cada um tinha visto décadas e décadas atrás.)

Há situações, elementos, formas, criações visuais muito, mas muito loucas, doidonas, incríveis – como as pessoas presas às pedras dentro do Labirinto, por exemplo, e o ambiente de uma espécie de Sodoma e Gomorra futurista, todo mundo se drogando e fazendo sexo. Ou as crianças do planeta distante que se divertem com bonecos que mordem as pessoas e atacam Barbarella – os bisavós daquele Chuck de Brinquedo Assassino, de 1988… Ou ainda o conceito de que a cidade de Sogo fica sobre uma camada de uma espécie de lava formada pela maldade – o Mal em estado mineiral!

Os diálogos são fascinantes, inteligentes, engraçadíssimos. Jane Fonda está uma maravilha como a heroína tão corajosa quanto pura em seus ideais, um tanto sonsinha, às vezes, com um jeitinho da mais deliciosa inocência.

E a trama tem lá sua lógica, no meio de tanta loucura.

Quando o filme começa, Barbarella está em um aposento totalmente acolchoado, flutuando devido à ausência de gravidade, vestida em espesso traje de astronauta. Dá para inferir que ela voltou para dentro de sua nave espacial depois de um passeio lá fora, e agora está começando a tirar a roupa. Começa pelas grandes luvas – e ela tira as luvas com uma suavidade de fazer a gente esquecer do mesmo gesto feito por Rita Hayworth em Gilda, que muita gente considera mais sensual do que horas e horas de filmes de sexo explícito.

Flutuando, num balé gracioso, Barbarella vai se despindo e mostrando seu corpo absolutamente maravilhoso de Jane Fonda, enquanto vão rolando os créditos iniciais.

As letras dos créditos ajudam a evitar uma nudez assim mais explícita.

Quando terminam os créditos e Barbarella está peladinha, toca o videofone. É o presidente da Terra (interpretado por Claude Dauphin). Barbarella diz: – “Um momentinho. Vou vestir alguma coisa.”

O presidente da Terra não é bobo: – “Não se preocupe. Isto é uma questão de Estado.”

E então ele explica para a moça pelada diante dele no videofone a missão que o governo do planeta está colocando nos belos ombros da astronavegadora. O famoso cientista Durand Durand desapareceu na desconhecida região de Tau Ceti. Ele é o inventor do Raio Positrônico, uma arma.

Barbarella: – “Uma arma? Por que alguém iria querer inventar uma arma? Há séculos o universo é pacífico…”

O presidente diz que sim, é o que todos acham – mas não se sabe quase nada sobre a região de Tau Ceti. E se o povo de lá não pensasse assim?

Barbarela não consegue imaginar tal possibilidade: – “Será que ainda estariam num estado primitivo de irresponsabilidade neurótica?”

O presidente: – “Exatamente. E se eles aprenderem com esse jovem cientista o segredo do Raio Positrônico eles podem ser capazes de romper a adorável união do universo.”

Barbarella: – “Isso significaria insegurança arcaica…”

O presidente: – “E guerra.”

Barbarella: – “O senhor quer dizer competição egoísta e…”

O presidente: – “Eu quero dizer guerra. Conflito sangrento entre tribos.”

Barbarella: – “Não acredito nisso.”

O presidente diz que ele não também não – mas não se pode correr o risco: – “A sua missão é encontrar Durand Durand e usar seu talento incomparável para preservar a segurança das estrelas e do nosso planeta Natal.”

E, por via das dúvidas, envia para ela uma arma, que ele havia pedido por empréstimo ao Museu do Conflito.

Uma navegadora intergaláctica que não consegue imaginar o que seja uma guerra. O planeta Terra com um único governo. Um universo absolutamente em paz. Diante da possibilidade de, numa galáxia muito distante, ser necessário o uso de armas, o presidente da Terra pega emprestada uma que estava no Museu do Conflito.

Ah, meu, era dos bons o ácido que os caras tomaram para bolar essa história e o visual deste filme! Era dos melhores!

Havia séculos que não se fazia amor daquele jeito

Barbarella tem essa trama de aventura intergaláctica, que começa com esse diálogo em que o presidente da Terra diz a Barbarella qual é a sua missão. A trama é boa, tem surpresas, prende o espectador. Mas o que importa mesmo, para Roger Vadim, é o sexo.

Na Terra do século 41, naquele universo todo em paz, os seres humanos não fazem mais sexo como esse que tem sido praticado nos últimos milênios. O sexo na época de Barbarella se faz com a ingestão da pílula do amor; os amantes se colocam um de frente para o outro, vestidos, e cada um toca uma de suas mãos na mão do parceiro. Sai daí uma eletricidade incrível.

Logo depois que sua nave tem um problema ao pousar no planeta Lythion, onde tentará achar o cientista Durand Durand, Barbarella se vê aprisionada por um grupo de crianças que brincam com os tais bonecos mordedores. Já está sendo atacada por eles quando é salva por um caçador que surge no momento apropriado.

O caçador, que se apresenta como Mark Hand, e é interpretado por Ugo Tognazzi, não apenas liberta nossa heroína como se oferece para consertar a nave espacial dela. Serviço feito, Barbarella agradece, com aquele linguajar interessante de heroína inocente como uma virgem de um romance de Jane Austen. Não resisto à vontade de transcrever o diálogo.

Barbarella: – “Estou muito grato pelo que você fez. Sequer consigo saber como começar a agradecer. Estou segura de que eu poderia conseguir algum tipo de recompensa do meu governo. Quero dizer, se houver algo que você precise ou que eu possa fazer, por favor me diga.”

O caçador Mark Hand: – “Bem, você poderia me deixar fazer amor com você”.

Barbarella, com uma expressão de espanto no rosto lindo. – “Fazer amor, você disse?”

O caçador, com uma expressão de tesão no rosto não propriamente lindo: – “Sim”

Barbarella: – “O que você quer dizer? Você nem sequer conhece meu psicocardiograma.”

O caçador: – “Ahnn?”

Barbarella: – “Bem, na Terra, faz séculos que as pessoas não fazem amor a não ser que as leituras de seus psicocardiogramas estejam em perfeita combinação.”

O caçador: – “Eu não sei de nada disso. Você me perguntou o que poderia fazer por mim e eu falei.”

Barbarella: – “Bem, está certo. Não vejo o que isso possa trazer de bom. Você tem pílulas?”

O caçador: – “Pílulas?”

Barbarella: – “Ah, não se preocupe, eu tenho algumas aqui.”

O caçador: – “O que é essa pílula?”

Barbarella: – “É um apelo de transferência de exultação.”

O caçador: – “Eu não sei de nada disso.”

Barbarella: – “Entendo. Bem, na Terra, quando as leituras de nossos psicocardiogramas estão em harmonia e queremos… fazer amor, como você diz, nós tomamos uma pílula de apelo de transferência de exultação e ficamos assim. Deixe eu mostrar para você. Por um minuto, ou até que o relacionamento completo seja alcançado.”

O caçador: – “Ah! Não quero saber disso. Isso, isso aqui é o que eu quero. Isso! Uma cama!”

Barbarella: – “Aquilo? Ninguém faz isso há séculos. Quer dizer, ninguém exceto os muito pobres, que não tem como pagar pelas pílulas e pelas leituras de psicocardiogramas.”

O caçador: – “Por que não?”

Barbarella: – “Porque está provocado que distrai e é um perigo para a eficiência máxima. E… e porque se tornou desnecessário, depois que outros substitutos para auxiliar o ego e a auto-estima se tornaram disponíveis.”

O caçador: – “Então você não vai fazer?”

Barbarella: – “Bem, se você realmente insiste, penso que posso. Mas eu asseguro (e ela vai se deitando), não há motivo algum para fazer assim.”

O caçador: – “Sem suas vestimentas, por favor.”

Barbarella, com expressão de absoluta surpresa: – “Oh!”

Corta. Passamos para a sequência seguinte.

Nos EUA, marcaram o filme como X, para adultos

Naturalmente, a moça gosta, e gosta demais, daquele jeito de fazer amor da maneira com que os terráqueos faziam 20 séculos antes. Vai adorar fazer daquele jeito com o último dos homens alados, o ornitantropo que ela ficará conhecendo, que vem na pele de John Phillip Law (na foto acima), com aqueles olhos de um azul claríssimo dele e todo o jeitão de um anjo de pintura renascentista.

E, bem mais tarde, vai ficar decepcionada quando outro macho, o revolucionário Dildano, que luta contra o governo do Grande Tirano de Lythion, pede a ela para fazer amor, mas não do jeito antigo, e sim com as pílulas de apelo de transferência de exultação. A sequência em que Barbarella e Dildano fazem amor só encostando as palmas das mãos é absolutamente impagável (na foto abaixo). Dildano é interpretado por David Hemmings, e o ator inglês que dois anos antes, em 1966, havia estrelado seriíssimo Blow-up de Michelangelo Antonioni, revela aqui uma fantástica veia cômica.

E há espaço ainda para um toque lésbico, com a fascinação por Barbarella demonstrada às claras pela Rainha Negra – o papel de outra mulher linda, Anita Pallenberg.

Por essa e por outras, nos Estados Unidos o filme teve originalmente a marca de X – ou filme para adultos. Com o tempo, essa censura foi relaxada, informa o livro The Films of Jane Fonda: “Barbarella foi um tremendo sucesso ao redor do mundo, nos países que não o proibiram. Pelos padrões de hoje, ele é manso e quase pitoresco, mas como uma fantasia cheia de imaginação, como uma peça de nostalgia pelos tempos em que o topless ainda era chocante e as atrizes não levavam suas visões políticas tão a sério, Barbarella ainda é cativante.”

“Pelos padrões de hoje”, diz o livro lançado em 1981. De 1981 para cá, meu Deus do céu e também da Terra, o que já apareceu de cenas de sexo no cinema… Em 2022, o filme pode perfeitamente passar na sessão da tarde que não vai assustar ninguém.

Um filme com inclinações musicais

O livro The Films of Jane Fonda conta que a atriz tentou convidar seu pai para fazer o papel do presidente da Terra – que só aparece naquele diálogo no início do filme. O gigante Henry teria perguntado: – “Eu terei que tirar a roupa?” Mais tarde, ele sentenciou: – “Jane sobreviveu a mais filmes ruins do que deveria ser permitido a qualquer atriz ao longo da vida inteira”.

Um gigante, o velho Henry. Mas era um careta.

Mistura de comédia com ficção científica com aventura com muito, mas muito, mas muito sexo, Barbarella tem um pouco de musical. Ao longo do filme, ouvimos diversas canções com uma levada bem pop dos anos 60, escritas para o filme pela dupla Bob Crewe & Charles Fox e interpretadas por uma banda da qual jamais ouvi falar, The Glitterhouse.

Barbarella é um filme de inclinações musicais.

David Hemmings (1941-2003, na foto abaixo) era dotado de uma bela voz, e ainda criança revelou-se um bom soprano no English Opera Group. Não que ele cante no filme – como também não cantou em Blow-up, mas é uma das ligações de Barbarella com a música.

Outra ligação é Anita Pallenberg, a bela italiana que faz a bissexual Rainha Negra, encantada com a beleza de Barbarella, a quem fica chamando, com um tom de desejo na voz, de “Pretty-Pretty”. Anita Pallenberg (1942-2017) foi namorada não apenas de um, mas de dois Rolling Stones. Começou com Brian Jones, em 1965, e depois, em 1967, deixou-o por Keith Richards, com quem teve dois filhos, Marlon e Dandelion. (Quando cresceu, a garota trocou seu nome lisérgico por Angela. Malditos sejam os pais que dão nomes esquisitos a seus filhos.)

Consta que Anita foi a inspiração para as canções “Angie” e “”You Got The Silver”. Depois de se livrar de Keith e do vício de heroína, diz o IMDb, a bela se voltou para a moda, virou figurinista.

A mais famosa e badalada das ligações entre Barbarella e a música é o conjunto Duran Duran – o nome da banda, formada em 1978 em Birmingham, vem do personagem Durand Durand. John Taylor e Nick Rhodes simplesmente tiraram fora a letra “d” final, que não é mesmo pronunciada.

Não tem importância, mas, por falar em pronúncia, registro aqui um detalhinho sobre o qual fiquei pensando. O nome Barbarella pronunciado à inglesa é lindo, sonoro, encantador; mas, diacho, Barbarrellá, como dizem os franceses, é danado de feio…

Surgia a sex symbol. Que depois seria Hanoi Jane

Depois desse detalhe bobo, um registro importante: Barbarella foi o terceiro filme que Jane Fonda fez com seu marido número 1. Jane e Vadim foram casados no papel de agosto de 1965 a janeiro de 1973. Em 1965, fizeram juntos A Ronda do Amor/La Ronde, em inglês Circle of Love, refilmagem do grande clássico de Max Ophüls de 1950. Em 1966, fizeram O Jogo Perigoso do Amor/La Curré, em inglês The Game is Over.

E, após Barbarella, fizeram Metzengerstein, um dos três segmentos ou episódios de Histórias Extraordinárias/Histoires Extraordinaires (1969), em inglês Spirit of the Dead. Foi, creio, a única vez em que Jane contracenou com seu irmão mais novo, Peter, que, naquele mesmo ano, faria juntamente com Dennis Hopper a fantástica obra-prima Sem Destino/Easy Rider. Os outros segmentos do filme foram realizados por Federico Fellini e Louis Malle – e todos os três se baseiam em histórias de Edgar Allan Poe. Uma das muitas curiosidades é que o filme tinha também Brigitte Bardot. Mas as duas estrelas que foram casadas com Vadim não contracenaram: BB estrelou o segmento de Louis Malle.

Outro registro: apenas três dias depois que saiu o divórcio de seu marido número 1, em 16 de janeiro de 1973, Jane Seymour Fonda assinou os papéis de casamento com o ativista político Tom Hayden, o marido número 2. A ex-sex-symbol já havia, então, entrado numa nova encarnação e virado a Hanoi Jane, a ativista política presa várias vezes em manifestações contra a guerra do Vietnã.

Sobre o fato de que a Barbarella de 1968 iria virar Hanoi Jane, Roger Vadim contou uma história deliciosa, em seu maravilhoso livro de memórias, Bardot, Deneuve & Fonda. Aconteceu durante as filmagens de Barbarella, uma época em que o casal Vadim-Fonda alugou uma casa na Via Appia Antica. “Era a mais antiga residência habitada de Roma. A torre acima do nosso quarto datava do século II d.C.” Barbarella foi filmado em Roma, no estúdio do produtor Dino de Laurentiis.

Vadim conta no livro que o ator John Phillip Law, que faz o anjo cego, ficou hospedado na casa alugada pelo casal. “Num domingo pela manhã, Jane e eu fomos despertados pelo eco de uma voz incrivelmente pura. Levantamo-nos, caminhamos ao longo do corredor, descemos as escadas de pedra antiquíssimas (…) e entramos na cozinha. Encontramos Joan Baez cantando enquanto preparava ovos com bacon para o ator John Phillip Law. (…) Convidara Joan Baez para o fim de semana. (…) “Eu estava presente na cozinha quando Joan e Jane se conheceram. Gostaram uma da outra, mas nenhuma das duas poderia imaginar que dois anos depois estariam liderando uma cruzada que, em certo sentido, mudaria o curso da história. As futuras heroínas políticas conversaram sobre Roma, música e filmes. John Phillip juntou-se a nós e devoramos os ovos de Joan Baez, que estavam deliciosos.”

Pode? Juntas e ao vivo, na cozinha de uma casa de 1.800 anos, duas das artistas que mais admiro na vida. Aaaah…

Brigitte Bardot e Sophia Loren recusaram o papel

O papel de Barbarella havia sido oferecido a Brigitte Bardot e Sophia Loren! Eu não me lembrava disso, mas está na autobiografia maravilhosa, esplêndida, de Jane Fonda, Minha Vida Até Aqui, lançado em 2005 (e no Brasil em 2006, pela Editora Record). Ela escreve que sua intenção, quando recebeu o convite de Dino de Laurentiis, era também recusar, como já haviam feito as duas beldades, a francesa e a italiana. “Mas Vadim era inflexível quanto ao fato de que os filmes de ficção científica seriam a onda do futuro, e que esta poderia ser uma incrível comédia de ficção, e eu deveria fazê-la, com ele na direção.”

Isso foi em 1967, talvez até 1966 – as filmagens foram entre junho e novembro de 1967. Roger Vadim dizia para a mulher que os filmes de ficção científica seriam a onda do futuro. Em 1968 foram lançados, além de Barbarella, essa grande brincadeira safada, o seriíssimo 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, e o também sério O Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner, que deu início a uma longa série de filmes. E, conforme já foi falado, no final dos anos 70 e início dos 80 viriam Guerra nas Estrelas, Jornada nas Estrelas, Alien

Pode-se falar mal do realizador Roger Vadim – e muita gente fala mal mesmo. O grande crítico Jean Tulard diz, sem dó nem piedade, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores: “No conjunto, a obra de Vadim

deixa uma impressão de superficialidade, para não dizer de mediocridade”.

Mas, antes de usar esses dois termos duríssimos, Tulard se viu forçado a admitir o seguinte:

“Não se pode negar seu talento de descobridor de estrelas, de Brigitte Bardot a Catherine Deneuve. Foi ele o responsável pela estréia de Françoise Hardy no cinema. Teve igualmente excelentes idéias: Veneza sob a neve, ao som da música do Modern Jazz Quartet, em Aconteceu em Veneza; a escolha da garota para ser o vampiro em Rosas de Sangue; a transposição de Justine e de Juliette de Sade para o universo nazista (o que provocou a indignação dos defensores do divino marquês); a mudança de sexo de Don Juan com Se Don Juan Fosse Mulher.”

(Duas coisinhas sobre o que diz de Vadim o mestre Tulard. Pô, sou fã de Françoise Hardy desde que ela lançou “Tous les garçons et les filles”, em 1962, mas não sabia que ela trabalhou no cinema. Sim, estreou em 1963, em Castelos na Suécia/Château au Suède, em que Vadim dirigiu Monica Vitti, Jean-Claude Brialy, Curd Jürgens, Suzanne Flon e Jean-Louis Trintignant. Mas Françoise não se dedicou muito ao cinema; sua filmografia tem 16 títulos, alguns deles meros videoclips; em vários outros, teve apenas pequenas participações especiais. A segunda coisa é que mestre Tulard erra ao dizer que Vadim descobriu La Deneuve. Quando ele a dirigiu em Vício e Virtude/Le Vice et la Vertu, de 1963, Catherine já havia feito 7 filmes.)

O fato é que o cara tinha ótimas idéias. Isso é indiscutível. Sem falar na fantástica capacidade de se casar com algumas das mais belas mulheres que pisaram na casca deste planeta – e são também algumas das maiores estrelas da História do cinema.

Anotação em outubro de 2022

Barbarella

De Roger Vadim, França-Itália, 1968.

Com Jane Fonda (Barbarella)

e John Phillip Law (Pygar, o Anjo), Anita Pallenberg (a Rainha Negra), Milo O’Shea     (o secretário da Rainha Negra), David Hemmings (Dildano, o revolucionário atrapalhado), Marcel Marceau (professor Ping), Ugo Tognazzi (Mark Hand, o caçador), Claude Dauphin (o presidente da Terra)

e Veronique Vendell (capitã Lua), Giancarlo Cobelli (o segundo revolucionário), Serge Marquand (capitão Sol), Nino Musco (o general), Catherine Chevallier (Stomoxys), Marie Therese Chevallier (Glossina), Umberto Di Grazia (cidadão de Sogo)

Roteiro Terry Southern, Brian Degas, Claude Brule, Jean-Claude Forest, Clement Biddle Wood, Tudor Gates, Vittorio Bonicelli, Roger Vadim

Baseado na novela gráfica de Jean-Claude Forest

Música Bob Crewe & Charles Fox

Fotografia Claude Renoir

Montagem Victoria Mercanton

Casting Guidarino Guidi

Desenho de produção Mario Garbuglia

Figurinos Jacques Fonteray; um traje de Barbarella inspirado em criação de Paco Rabanne

Produção Dino De Laurentiis

Cor, 98 min (1h38)

R, ***

 

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