Les Mauvaises Rencontres

Nota: ★★☆☆

(Disponível no Dwan e Walsh Filmes no YouTube em 5/2023.)

Les Mauvaises Rencontres, que Alexandre Astruc lançou em 1955, é um filme que tem grande importância histórica, e merece respeito.

No entanto, não é um filme fácil de se ver hoje. Não foi para mim, nem para Mary, e creio que a imensa maior parte das pessoas teria impressão parecida. O filme é curto, tem apenas 84 minutos, mas é aquela velha coisa: se é bom, passa depressa. Se é ruim, ou chato, demooooooora demais, não termina nunca.

É um filme estiloso, estudadissimamente construído para ser formalmente diferente do que então se fazia. Para ser ousado, pra frente, vanguardístico, revolucionário. Daquele tipo em que a gente fica ouvindo o realizador berrar no nosso ouvido o tempo todo: olha só como eu sou genial!

E dá-lhe tomadas em plongée e em contre-plongée. Montagem nada natural, fluida, fluente, e sim feita para dar ênfase, realçar o brilho da fotografia ou do movimento de câmara. Tomadas repetidas. Jogos de luzes, tomadas claras demais, tomadas escuras demais. E muito espelho, muito, muito, muito espelho.

Diálogos que fogem do natural que nem o diabo da cruz, fanático político da razão. Frases que procuram o tom literário, intelectual, genial – e na verdade são o maior papo furado do cacete.

Os atores parecem obrigados a seguir uma rígida marcação teatral em seus movimentos. Não andam pelos espaços como pessoas – mas como atores no momento mais dramático do terceiro ato.

E o tempo não passa. São só 84 minutos, mas parece mais longo que Cleópatra, … E o Vento Levou. Parece mais longo que as 15 horas e meia de Berlin Alexanderplatz.

Mas isso aí foram só as sensações de um cinéfilo velhinho, que adorava uma narrativa “revolucionária” aos 18 anos de idade, mas agora gosta mesmo é daquilo que os críticos xingam de “academicismo”, ou seja, uma boa história bem contada.

Porque o fato é que Les Mauvaises Rencontres é um filme que tem importância histórica grande e merece respeito.

Antes de mais nada: uso o título em francês não por frescura, mas porque o filme não foi lançado comercialmente no Brasil. Como anotou Rubens Ewald Filho em seu Dicionário de Cineastas sobre Alexandre Astruc: “Seus filmes nunca conseguiram sucesso comercial, permanecendo praticamente desconhecido no Brasil.” Les Mauvaises Reencontres está agora disponível no YouTube, e lá aparece com o título que é a tradução literal, só que sem o artigo, Maus Encontros.

Uma  jovem provinciana chega para conquistar Paris

É necessário apresentar uma sinopse. Reproduzo duas. Eis a do Petit Larousse des Films, à qual acrescento em itálico o nome dos atores e mais alguma coisinha:

“Catherine (Anouk Aimée, aos 23 aninhos de idade, esplendorosamente bela) chegou do interior para conquistar Paris. Rapidamente desencorajado, seu amigo Pierre (Giani Esposito) vai embora. (Ele volta para a cidade natal dos dois, Besançon.) Sua ligação com o cínico Walter (Jean-Claude Pascal) permite que Catherine se torne uma jornalista célebre. Ela lança na profissão seu novo amante, o fotógrafo Alain Bergère (Philippe Lemaire). Um último ‘mau encontro’ com o dr. Daniely (Claude Dauphin) a deixa na solidão.”

Hum… Boa sinopse, mas não fala do interrogatório na polícia nem do aborto.

Eis a sinopse do Guide des Films de Jean Tulard:

“Catherine Racan é interrogada pelo inspetor Forbin (Yves Robert) a respeito do dr. Danieli, procurado por ter praticado nela um aborto. Ela se lembra de sua chegada a Paris com seu jovem amante Pierre Jaeger, depois seu encontro com o brilhante Blaise Walter, que havia feito dela uma jornalista conhecida. Ela havia então tentado lançar o fotógrafo Alain Bergère. E tinha tido que fazer um apelo ao pouco escrupuloso dr. Danieli. Fica sabendo que este último se matou. Ela mesma não é mais que um caso policial.”

Sinopse perfeita – na verdade, quase. Por que chamar o médico que faz aborto de “pouco escrupuloso”, diabo? (Registro que o aborto foi legalizado na França em 1975 exatos 20 anos após o lançamento do filme.)

Logo após os créditos iniciais há um letreiro que diz o seguinte: “O filme que você vai ver é a história de uma jovem de hoje, jovem provinciana brutalmente jogada na atmosfera febril de Paris. Implicada em um caso de aborto e interrogada no Quai des Orfèvres, ela vai rever como numa lembrança as imagens de sua vida. Ela evoca uns após os outros os diferentes homens que conheceu e que foram para ela MAUS ENCONTROS”.

As duas últimas palavras assim, em maiúsculas. Do Quai des Orfèvres, o gigantesco prédio concluído em 1880, na Île de la Cité, debruçado sobre o Sena, onde funciona a sede da polícia de Paris, veremos várias imagens captadas pela câmara do diretor de fotografia Robert Lefebvre.

Dois registros sobre atores do filme. Yves Robert (1920-2002), que interpreta o inspetor Forbin, teve importante carreira como diretor; em 1962, realizou um dos mais belos filmes já feitos sobre crianças, A Guerra dos Botões. E Michel Piccoli (1925-2020), que viria a ser um dos grandes atores do cinema francês, faz neste filme um pequenino papel, como um dos investigadores do Quai des Orfèvres; mal se percebe que é ele.

Um homem das letras, que defendia a câmara-caneta

Alexandre Auguste Astruc teve vida longa – morreu em 2016, uns dois meses antes de completar 93 anos de idade –, mas sua filmografia é pequena. Dirigiu uma dezena de filmes, apenas – muitos dos 21 títulos de sua filmografia como diretor são de episódios de séries de TV e curta-metragens.

Este Les Mauvaises Rencontres foi seu primeiro longa, após dois curtas.

Era, fundamentalmente, um homem das letras: escreveu romances, críticas, ensaios, reportagens, além de roteiros. Um de seus ensaios, “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”, nascimento de uma nova vanguarda: a câmara-caneta, foi publicado na revista L’Écran Français ainda em março de 1948, quando na vizinha Itália explodia o neo-realismo.

Caméra-stylo – a transformação do cinema como um meio de expressão que se basta a si mesmo, uma linguagem toda própria, libertada de seus antecessores, a literatura e o teatro. “A imagem pela imagem.”

O cineasta como autor de seus filmes, como um escritor é o autor de seus romances. O filme como a expressão pessoal do diretor – não um produto industrial.

Cinema de autor. Une nouvelle avant-garde. Muita gente boa identifica aí, nas idéias de Astruc, as raízes do que viria a ser a nouvelle vague, o movimento que mudaria a face do cinema mundial, a partir de 1959, com os lançamentos dos primeiros filmes de um bando de jovens irrequietos que trocaram as pedras pela vidraça, passaram da crítica para a frente das câmaras – François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Éric Rohmer, e mais Jacques Rivette, Alain Resnais, Louis Malle, Agnès Varda, Jacques Demy…

O mestre Jean Tulard escreveu que há uma grande ironia nessa coisa de Alexandre Astruc ter inventado a teoria da caméra-stylo: “Afirmou no começo de sua carreira que o tempo de escrever havia findado e que se deveria rodar filmes: a famosa caméra-stylo. Em compensação, Astruc escreve atualmente romances, filmando apenas para a televisão (Louis XI ou adaptações de Edgar Poe). Nenhuma crueza nessa constatação, simplesmente a tristeza. Astruc anunciava-se, com seu Rideau Cramoisi (curta de 1953, com Anouk Aimée e Jean-Claude Pascal), uma resplandecente transposição cinematográfica do universo de Barbey d”Aurevilly, bem antes da nouvelle vague, como o melhor diretor do novo cinema francês. Jacques Laurent forneceu-lhe o tema de Mauvaises Rencontres, onde deu mostras de uma grande virtuosidade técnica.”

“Escreve atualmente romances.” O “atualmente” aí, claro, é relativo como tudo na vida. Esse texto é da edição brasileira do Dicionário de Cinema – Os Diretores, que é de 1996; o original francês é de 1992. Em 1993, Alexandre Astruc assinaria sua última obra como diretor, Albert Savarus, um filme para a TV, baseado em Balzac, com roteiro do próprio realizador.

Não dá para deixar de reparar, de qualquer forma, que é no mínimo esquisito que o primeiro longa-metragem do teórico que defendia a caméra-stylo, o filme como um modo de expressão próprio, liberto das outras artes, ser tão literário nos diálogos e tão teatral na colocação dos atores diante da câmara.

Em 1994, a douta Académie Française – a que inspirou Machado de Assis a criar a Academia Brasileira de Letras – criou o René-Clair Prix, um prêmio para o conjunto da obra de um grande nome do cinema – diretor, ator, roteirista. O primeiro René-Clair Prix foi para Alexandre Astruc.

Não poderia haver melhor prova de que Astruc era de fato um homem da pena, do teclado, das pretinhas.

Um filme cheio de audácia e novidade, diz o Larousse

O romance em que Alexandre Astruc e Roland Laudenbach se basearam para escrever o roteiro e os diálogos de Les Mauvaises Rencontres se chama Une Sacrée Salade, e foi publicado em 1954 – apenas um ano antes do lançamento do filme –, com a assinatura de Cécil Saint-Laurent. Esse era um dos dois pseudônimos usados pelo prolífico, extremamente prolífico escritor parisiense Jacques Laurent (1919-2000). O sujeito escreveu dezenas, dezenas, dezenas de romances – e há nada menos de 25 filmes baseados neles, inclusive Lola Montès, a obra-prima de Max Ophüls, lançada, por coincidência, no mesmo ano deste Les Mauvaises Rencontres, 1955.

Uma salada sagrada. Diacho, de onde será que saiu o título do romance que deu origem a este filme aqui? Será que “salade” tem alguma outra acepção completamente diferente? Vou ao Le Robert que herdei do meu irmão Floriano, um francófono desde sempre, e, não, não há uma acepção estranha, salade é salada mesmo, igual ao Português inclusive no figurativo: mélange confus, mistura confusa.

O site da Amazon em francês tem uma sinopse de Une Sacré Salade. Vai sem aspas, para me desobrigar de fazer uma tradução rigorosamente fiel:

Anos 50. Claude-Andrée-Pénélope Racan, conhecida como Peny, tem 22 anos. Ela foi de Besançon para Paris, começou a estudar Direito e abandonou. Por que esta jovem de boa família está no escritório 353 do

Quai des Orfèvres, em um dia luminoso de primavera, diante do inspetor principal adjunto Forbin? Furto em loja? Drogas? Não. Por um aborto. Como estamos em um romance noir, a questão não é saber se Peny abortou; o leitor está certo disso desde o início e sabe que isso não vai terminar bem para a jovem. Não, a questão é saber se ela vai confessar durante o interrogatório que mais parece um duelo.”

Hum… Não dá para saber se o filme fugiu muito – ou não – do romance escrito por Jacques Laurent e assinado por Cécil Saint-Laurent.

O que eu posso dizer é que, na minha opinião, Alexandre Astruc e Roland Laudenbach se concentraram tanto nos formalismos, ao elaborar seu roteiro, que fica difícil para o espectador acompanhar a história propriamente dita.

Mas essa é só minha opinião, e ela não vale mais que uma nota rasgada de três guaranis paraguaios. Já dei minha opinião lá no começo deste texto, e chega. Vou registrar aqui outras opiniões.

O jovem crítico François Truffaut gostou demais do filme – e vou transcrever o que ele escreveu mais adiante, fechando esta anotação.

Eis a avaliação do Petit Larousse des Films, uma obra bem recente:

“Anunciador da Nouvelle Vague, este filme desenhava um retrato da desordem moral da juventude contemporânea e pretendia ser obra de um autor que imprimia seu estilo à sua criação. Ele permanece marcado por um tom romanesco de essência literária (reforçada pela construção em flashbacks) e a influência de Orson Welles. Por sua audácia e sua novidade, que suscitaram reações às vezes violentas, ele marca um giro radical e uma etapa irreversível no cinema francês.”

Agora, a avaliação do Guide des Films de Jean Tulard:

“A história é narrada em voz off, por uma série de flashbacks, o que acentua o lado artificial e literário da intriga, retrato de uma juventude intelectual um tanto desequilibrada. O estilo do filme, que causou muita impressão à época, é consideravelmente démodé, como diz o próprio Astruc (na revista Cinéma 62, número 65): ‘Eu critico o excesso e a abundância de movimentos do aparelho, os enquadramentos pesquisados demais, os embelezamentos. Há em tudo aquilo algo de antiquado e pueril’.”

O jovem Truffaut escreveu entusiasmado os maiores elogios

Uau, uau, uau!

Quando um criador, um artista, faz uma avaliação destas de uma obra sua, é para a gente aplaudir de pé como na ópera.

‘Eu critico o excesso e a abundância de movimentos do aparelho, os enquadramentos pesquisados demais, os embelezamentos. Há em tudo aquilo algo de antiquado e pueril.’

Que maravilha, que maravilha, que maravilha!

Bem. Mas agora vamos ao que escreveu, embasbacado com tanto excesso e abundância de movimentos de câmara, aqueles enquadramentos tão longamente estudados, aqueles embelezamentos todos, o jovem cinéfilo de 23 aninhos de idade, que, na adolescência, havia raspado pela delinquência e foi salvo dela exatamente pela paixão pelo cinema e o incentivo do grande crítico André Bazin.

(Sim: foi André Bazin que retirou o jovem François Truffaut de um reformatório para jovens delinquentes e o incentivou a escrever crítica de cinema.)

“Les Mauvaises Rencontres subverte um pouco os modos de narração, as rotinas, e não se parece em nada com que o se faz atualmente em cinema”, escreveu o garoto Truffaut.

Quando se tem 23 anos, tem mais é que gostar da subversão, com aquilo que não se parece em nada com o que se fazia antes.

No livro Os Filmes da Minha Vida, lançado na França em 1975 e no Brasil em 1989 pela Nova Fronteira, com tradução de Vera Adami, Truffaut reuniu escritos de seus tempos de crítico. E juntou os textos em cinco grandes grupos. Um é sobre os americanos, Elia Kazan, Stanley Kubrick, Billy Wilder, Sidney Lumet, Robert Mulligan, Douglas Sirk… Outro é sobre os conterrâneos mas não contemporâneos, os que vieram antes: Claude Autant-Lara, René Clément, Henri-Georges Clouzot, Robert Bresson, Max Ophüls… Outro é sobre os “outsiders”, os que estão acima, além de seus países: Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Orson Welles…

Confesso que me surpreendi ao ver, nesse livro que conheço bem, consulto volta e meia, que Alexandre Astruc está no grande capítulo “Meus companheiros da nouvelle vague”. É fascinante, porque a rigor Astruc não foi um companheiro da nouvelle vague – foi um antecessor, um “annonciateur”, como diz o Petit Larousse des Films.

O filme de Astruc que Truffaut comenta em seu livro Os Filmes da Minha é exatamente Les Mauvaises Reencontres. Aí vai, na tradução, repito, de Vera Adami:

Les mauvaises rencontres

De Alexandre Astruc

Como nos filmes de Hitchcock, existem dois temas em Les mauvaises rencontres.

Ao revistar a casa de um médico “complacente” que fugira, a polícia encontrou uma carta de Catherine Racan (Anouk Aimée). A moça, suspeita de ter procurado o doutor Danieli (Claude Dauphin) para fazer um aborto, é interrogada no Quai des Orfèvres pelo inspetor Forbin (Yves Robert). O suicídio do médico encerrará a investigação.

Este é o primeiro tema do filme ou, mais exatamente, o suporte do tema real que, simplesmente, é a história de Catherine Racan.

Há três anos, essa priminha de Rastignac deixou sua cidade natal para “vencer” em Paris com o homem que ama, Pierre Jeager (Giani Esposito). Este, desencorajado, abandonou a luta e voltou para a província. Depois houve o encontro com Blaise Walter (Jean-Claude Pascal), diretor de um grande jornal. Catherine tornou-se sua amante mas abandonou-o depois de conseguir, graças a ele, entrar para a redação de um jornal de moda. Em seguida houve uma breve ligação com um fotógrafo, Alain Bergère (Philippe Lemaire). Uma noite, Blaise e Catherine voltaram a se encontrar. Catherine, desamparada, regressou a Besançon e tentou reatar com Pierre; tendo falhado, ela voltou a Paris, grávida, e foi então que recorreu ao doutor Danieli.

O fim da filma mostra-a desiludida, saindo do Quai des Ofréves, metralhada pelos flashes dos fotógrafos: não fora assim que um dia sonhara “ter seu nome nos jornais”.

Logo, não há nada de muito complicado no roteiro do filme, a despeito de sua construção talvez um pouco erudita demais para ser perfeitamente acompanhada na primeira vez, a não ser por um espectador atento. Em três horas, no Quai des Orfèvres, Catherine Racan “revive” três anos de sua vida. Esses retornos, naturalmente, acontecem sem choques e podem surpreender pela engenhosidade. Mais uma vez é preciso chegar no começo do filme e não conversar com o vizinho para não se perder.

Restam as intenções reais do filme, julgadas misteriosas por alguns; elas foram claramente expostas na ARTS do mês de junho, em uma entrevista do autor: “Para permanecermos em um domínio balzaquiano, digamos que essas são uma espécie de Ilusões Perdidas. A moça evolui em diferentes cenários e olha em torno de si. Em termos de direção, é um close que julga planos gerais… Quis fazer um filme muito romanesco, romântico não, romanesco… O que me interessa é a situação dos personagens em relação a alguma coisa que desconhecem.”

Não se deve abordar Les Mauvaises Rencontres como se fosse um filme policial ou uma história verídica. Nele não há criminoso nem vítima, apenas jovens, intelectuais de hoje. Se também considero Les Mauvaises Rencontres um filme avançado para sua época, é porque ele é o primeiro a:

a) adotar como tema principal a confusão da juventude intelectual;

b) falar de Paris de maneira diferente que a turística e by night, o primeiro a falar da cidade de maneira balzaquiana; Les Mauvaises Rencontres são novas “cenas da vida parisiense”;

c) falar do sucesso sem cinismo, sem zombaria, sem convenção e sem hipocrisia.

O que mais me toca em Les Mauvaises Rencontres é a precisão dos diálogos. Eles são literários, é óbvio, mas trata-se de intelectuais falando. Astruc não julga os personagens, ele os vê com enorme lucidez, com uma grande tristeza e, principalmente, com uma franqueza absoluta, já que está um pouco em cada um deles. Esses Blaise Walter, Pierre Jeager e Alain Bergère são puros que sofrem por não poderem assim permanecer. Passam a maior parte do tempo justificando-se, julgando-se uns aos outros e, sobretudo, odiando-se a si mesmos. São também seres frágeis, vulneráveis, mas com preocupações essencialmente morais. Tudo isso é próprio de nossa geração e não é surpreendente que aqueles que nunca se questionam não percebem claramente o interesse da iniciativa.

Esse tema difícil e especificamente “1955” foi tratado com uma generosidade à qual nos haviam desacostumado os roteiristas franceses, que só sabem dominar os personagens muito de cima, “gozando com a cara deles” e caricaturando-os.

É evidente que tudo isso soa mais hollywoodiano que joinvillês, mas isso não me desagrada, sem contar que, tecnicamente, nada ou quase nada diferencia Les Mauvaises Rencontres dos filmes americanos tal como gostamos, tal como Astruc gosta: “Vamos ao cinema, será que está passando algum filme americano?”, pergunta a heroína do filme. Eis também o primeiro filme francês filmado quase inteiramente com grua, o que faz com que os movimentos de câmera adquiram uma agilidade só encontrada nos filmes de Preminger ou Fritz Lang. A fotografia de Robert Lefebvre é extraordinária, assim como os cenários de Max Douy. Atores como Jean-Claude Pascal ou Yves Robert estão surpreendentemente precisos; Philippe Lemaire, Giani Esposito e Claude Dauphin estão perfeitos e, certamente Anouk Aimée, que indubitavelmente parte para uma segunda e mais longa carreira.

Durante o Festival de Veneza (Astruc levou o prêmio de melhor direção no festival), percebi que Les Mauvaises Rencontres não agradava a todos; no entanto, adquiri uma certeza: se vários confrades e espectadores consideravam o filme demasiadamente intelectual, literário e muito bem-feito; se alguns, indiferentes ao roteiro, consideravam a iniciativa um brilhante exercício de estilo e nada mais, não encontrei um único espectador de menos de 30 anos que não houvesse ficado emocionado e não se tivesse reconhecido em um dos personagens.

Les Mauvaises Rencontres subverte um pouco os modos de narração, as rotinas, e não se parece em nada com o que se faz atualmente em cinema.

A um jornalista estrangeiro que, em Veneza, disse a Astruc: “O senhor superestimou o público”, o autor de Mauvaises Rencontres respondeu: “Nunca se superestima suficientemente o público!”

Anotação em maio de 2023

Les Mauvaises Rencontres

De Alexandre Astruc, França, 1955

Com Anouk Aimée (Catherine Racan)

e Jean-Claude Pascal (Blaise Walter, o jornalista poderoso),Yves Robert    (inspetor Forbin), Philippe Lemaire (Alain Bergère, o fotógrafo), Gaby Sylvia (Hélène Ducouret, a ex de Alain Bergère), Giani Esposito (Pierre Jaeger, o primeiro namorado de Catherine), Claude Dauphin (dr. Jacques Daniéli), Michel Piccoli (um inspetor)

Roteiro, diálogos e adaptação Alexandre Astruc, Roland Laudenbach        

Baseado no romance “Une Sacrée Salade”, de Jacques Laurent (sob o pseudônimo de Cécil Saint-Laurent)

Fotografia Robert Lefebvre

Música Maurice Leroux

Montagem Maurice Serein      

Direção de arte Max Douy

Assistente de direção Marcel Camus

Produção Edmond Ténoudji, Les Films Marceau

P&B, 84 min (1h24)

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