Mães Paralelas / Madres Paralelas

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 5/2022.)

Mães Paralelas, o Pedro Almodóvar de 2021, seu longa-metragem de número 23, é uma absoluta maravilha, uma obra-prima, um dos melhores filmes que já vi nos últimos muitos anos.

Fiquei por um bom tempo pensando em qual seria um bom lead para Madres Paralelas, e não conseguia me fixar em nenhuma das idéias que me passavam pela cabeça.

A rigor, um bom lead (o início de uma matéria jornalística, o primeiro parágrafo) deve reunir todas as principais informações sobre o texto que virá a seguir. A questão é que é dificílimo reunir, em um único parágrafo, todas as principais características de Madres Paralelas.

* É um dos melhores filmes que já foram feitos sobre maternidade, essa coisa imensa, fenomenal, que necessariamente reúne felicidade plena, o prazer inigualável, com permanente angústia, medo, insegurança, cansaço. E é louco pensar que nesse quesito, como em tantos, Almodóvar é reincidente: outro dos melhores filmes já feitos sobre a maternidade também é dele – Tudo Sobre Ninha Mãe.

* O universo feminino sempre foi a especialidade desse cineasta brilhante – e nesse ponto Mães Paralelas se mantém no campo que Almodóvar domina, onde ele nada de braçada. Mas há uma grande novidade: que eu saiba, ele nunca havia sido tão abertamente político quanto aqui. Os horrores cometidos pelo fascismo na Espanha são tão importantes no filme quanto as questões ligadas à maternidade.

* É impressionante como Mães Paralelas prossegue no mesmo caminho que Almodóvar vem trilhando há já uns 10, talvez 15 anos – o caminho que deixa para trás os excessos da irreverência, do prazer em épater les bourgeois, de chocar profundamente os caretas que caracterizaram suas primeiras obras.

Impressionante, incrível. Mães Paralelas não tem um estupro, não tem uma sequência de sexo furioso, não tem uma cena de visual chocante, grotesco demais. Vemos duas trepadas – e a primeira, da protagonista Janis (o papel de Penélope Cruz) com Arturo (Israel Elejalde), é animadíssima, vibrante. Mas a câmara do diretor de fotografia José Luís Alcaine mostra esta, como também a segunda, com um visual plácido, tranquilo, suave. A câmara está até discreta.

Daria para acreditar, uns 20 e poucos anos antes, ali pela época de A Lei do Desejo e Ata-me!, que uma câmara a serviço de Almodóvar pudesse ser até mesmo discreta?

A rigor, não precisa nem ir tão longe. Compare-se este Mães Paralelas com A Pele que Habito, de 2011. O tempo, não há dúvida alguma, deixou Almodóvar mais suave, menos louco para chocar.

Claro, há as cores fortes todas, o tempo todo. Há homossexualidade, é óbvio. Mas está tudo mais suave.

* Mais suave na forma, sem dúvida. Mas de forma alguma menos assertivo. Aos 72 anos, o artista está mais firme, mais afirmativo. Sua condenação do regime franquista neste filme aqui é maravilhosamente virulenta, dura, firme, forte.

* Há características que não mudam nunca, e entre elas está o gosto de Almodóvar de incluir em seus filmes alguma outra arte – seja dança, música, pintura. Desta vez, e mais uma vez, assim como em Tudo Sobre Minha Mãe, é o teatro. Uma das personagens – Teresa (o papel de Aitana Sánchez-Gijón), a mãe de uma das duas mães paralelas do título – é atriz de teatro, e nós a vemos num ensaio da peça que vai encenar. Como nada em Almodóvasr é de graça, todos os detalhes têm significado, todos os fios estão conectados. A peça em que Teresa vai atuar é Dona Rosita, a Solteira, de autoria do poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca, assassinado pelos fascistas de Franco no início da Guerra Civil Espanhola. E, como Almodóvar, homossexual.

* E, at last but not at least, neste seu 23º longa-metragem Pedro Almodóvar mais uma vez nos espanta com o seu engenho, sua inventidade, sua genialidade como criador de histórias.

Já comparei aqui o talento de Almodóvar como criador de histórias com o de Paul McCartney e Cat Stevens hoje Yussuf para criar melodias. Eles, os três, parecem fontes inesgotáveis de novas canções, no caso dos dois ingleses, e de novas histórias, no caso do espanhol. Fontes inesgotáveis. Impressionante.

Depois que vimos esta maravilha que é Madres Paralelas, veio à minha cabeça outra comparação, esta estritamente dentro do campo do cinema: Almodóvar é, ao lado de Ingmar Bergman, Federico Fellini e Woody Allen, o cineasta que mais cria histórias originais para os filmes que faz. Não há ninguém mais que se possa comparar com esses quatro.

No início e no fim, as feridas da Guerra Civil

A maravilhosa história de Mães Paralelas abre e fecha com a questão política, social – a lembrança da Guerra Civil, as feridas deixadas pela brutalidade, pela crueldade dos fascistas.

No meio, entre a abertura e o final da narrativa, o filme se debruça sobre a história das mães paralelas do título, Janis e Ana, os papéis respectivamente de Penélope Cruz e Milena Smit,

Um letreiro, bem no início, de cara, dá o onde e o quando: “Madri, inverno de 2016”. Janis é uma fotógrafa de talento reconhecido, faz diversos trabalhos, inclusive para uma revista feminina importante, Semanal – que por acaso é dirigida por sua maior amiga, Elena (o papel de Rossy de Palma, uma das mais assíduas atrizes de Almodóvar). Quando o filme começa, Janis está fotografando Arturo (o papel, como já foi dito, de Israel Elejalde), um conhecido antropólogo forense, cujo perfil deverá ser a capa da revista.

E como são brilhantes os créditos iniciais! Vemos a sessão de fotos, num estúdio com dezenas de pessoas. Janis vai dirigindo os movimentos de Arturo, um homem boa pinta, enquanto, ao som da bela trilha do fiel compositor dos filmes do diretor, Alberto Iglesias, uma montagem rápida intercala a ação em cores com fotos em preto-e-branco daquilo mesmo que está acontecendo, e vão rolando os créditos, ao mesmo tempo em que um belo grafismo lembra os filmes fotográficos que nos últimos anos viraram exclusividade dos fotógrafos profissionais.

Após a sessão de trabalho, fotógrafa e fotografado conversam um pouco. Janis aproveita para falar com Arturo sobre a fossa em que os fascistas enterraram dezenas de homens durante a Guerra Civil em seu pequeno povoado do interior. – “Perto do meu vilarejo, há uma fossa com uns dez corpos. Um é do meu bisavô. Com a Lei da Memória Histórica, o juiz da região se declarou impedido, e desde então só temos negativas.” E acrescenta que “na Associação da Memória Histórica de Aldea de Los Montes, há um dossiê muito completo sobre a fossa”.

Arturo diz que a situação não está boa; o governo retirou todos os subsídios para escavações de fossas como aquela de que Janis fala. E Almodóvar – assertivo como nunca – aproveita para dar nome aos bois, ou ao boi, caso. – “O presidente Rajoy já se gabou por não passar nada do orçamento à Memória Histórica”. (As legendas traduzem, corretamente, para “o primeiro-ministro Rajoy”. Mariano Rajoy, do conservador Partido Popular, foi presidente do Conselho de Ministros, como é chamado o primeiro-ministro da Espanha, de 2011 a 2018.)

Num computador, Janis mostra para Arturo fotos dos homens de seu povoado que haviam sido mortos pelos falangistas e enterrados na fossa.

Arturo explica que pertence a uma fundação privada de Navarra, a Irmandade para a Recuperação da Memória Histórica. – “É uma fundação científica que investiga tudo relacionado às origens da cultura navarra. Nosso trabalho não é abrir fossas, mas a situação é tão precária que até já fizemos isso. Mas depende do local, da data, e se dará informações inéditas sobre a guerra. (…) Posso apresentar o caso à fundação.”

Dias depois Arturo liga para Janis para informar que a fundação recebeu o dossiê do projeto de escavar a fossa da Aldea de los Montes atrás dos corpos dos homens assassinados. E aproveita para dizer que daí a uma semana vai viajar a Madri para fazer uma perícia, e… que tal se eles se vissem?

Neste exato momento, estamos com 6 minutos do filme. Aí corta, vemos tomadas da trepada de Arturo e Janis – daquela maneira que falei mais acima, suave – e, quando estamos com 8 minutos de filme, Janis está na maternidade, prestar a dar à luz. Ela divide o quarto com uma garota bem jovem, Ana – o papel, como já foi dito, de Milena Smit.

Em dois minutos, Almodóvar muda para o outro tema de sua história. Não é que abandone a questão dos mortos pelos falangistas. Não. A parte política ficará como pano de fundo da história, e, no final, veremos a escavação da fossa sendo feita.

Mas, a partir daquele momento em que o filme chega ao oitavo de seus 123 minutos que passam muito depressa, vamos mergulhar na história de Janis e Ana.

Duas mulheres à beira do nascimento de suas filhas. Mães paralelas.

Uma queria muito ser mãe; a outra não, de forma alguma

São duas mães que não poderiam ser mais diferentes entre si.

Janis é uma mulher madura, aí na faixa dos 40 e tantos anos, uma profissional bem sucedida, reconhecida. Engravidou de um relacionamento com um homem casado; nunca tinha tido filhos, queria ter esse, fruto de uma bela paixão. Com a sua idade, poderia não ter outra chance. Arturo não gostaria de ter mais um filho – mas Janis havia sido firme. Fazia questão de ter aquela filha – e então seria melhor que os dois se separassem.

A filha que Janis esperava não havia sido planejada – mas era desejada, muito desejada pela mãe.

Ana, ao contrário, não queria ser mãe, não desejava ter aquela filha.

A história de Ana – sobre a qual ficamos sabendo pouco a pouco, ao longo da narrativa – é uma somatória de infelicidades. Era filha de um casamento que logo havia se desfeito; a mãe, Teresa, era absolutamente despreparada para ser mãe e, quando Ana era ainda bebê, tinha largado a filha com o pai para se lançar na aventura de ser atriz. O pai (que não aparece em cena hora alguma) parece ser um horror. Quando a filha, jovem demais, mal saída da adolescência, engravidou, ele a expulsou de casa, mandou-a de volta para a mãe.

Contar sobre como Ana engravidou – o que o espectador só fica sabendo bem depois da metade do filme – seria spoiler. Mas é uma história tristíssima.

Assim, a moça de 20 anos e pouquinho que espera o momento de dar à luz no mesmo quarto de uma mulher vivida de mais de 40 é um poço de tristezas. E seguramente só está tendo a filha porque não teve a coragem de abortar.

Vemos em paralelo tomadas de Janis-Penélope Cruz e de Ana- Milena Smit no momento do parto. As dores lancinantes. A chegada da filha de cada uma.

Vemos as duas reunidas novamente no quarto da maternidade, logo após o parto, as duas meninas sob observação dos médicos, cada uma com um probleminha de saúde a ser cuidado.

E ficamos conhecendo Teresa, a mãe de Ana, que vem com frequência visitar a filha.

Teresa tem grande importância na história. Claro, Janis e Ana são as protagonistas, são as mães paralelas do título. E a trama que Almodóvar criou, os laços que enredam aquelas duas mulheres, aquilo que vem a ser o cerne, o fulcro, o coração do filme, é coisa de gênio. Meu Deus do céu e também da terra, que fabuloso criador de histórias é esse Pedro Almodóvar!

Sobre isso, os laços que enredam Janis e Ana, não cabe falar. É para cada um ver na tela. Mas é fascinante como as duas mães paralelas se mostram boas mães – tanto a mulher madura que desejava ter aquela filha quanto a jovenzinha que não queria.

E é fascinante também exatamente o contraste entre elas de um lado – mães amorosas, abnegadas, dedicadas – e Teresa.

Teresa não estava preparada para ser mãe. Sua filha também não – mas Ana, depois que a filha nasce, revela-se uma boa mãe. Já Teresa se desfez da filha como quem deixa de lado um sapato que não presta mais.

Teresa é daquele tipo de pessoa que me faz lembrar daquela minha crença arraigada, e que a cada dia vejo que está mais certa. Meu dogma pessoal. Repito-o aqui mais uma vez:

Os dogmas religiosos e a biologia que me perdoem, mas a lógica humana indica que Deus (ou a natureza, para quem não acredita em Deus) errou profundamente. Nenhum homem ou mulher deveria ter a capacidade de ser pai ou mãe – até prova em contrário. Ser pai ou mãe não deveria ser uma obrigação decorrente da biologia, deveria ser uma opção. Mais ainda: para permitir que alguém decidisse ser pai ou mãe deveria haver alguma espécie de vestibular. Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente.

“Está na hora de saber em que país você vive”

Neste momento em que diversos países – e o Brasil, infelizmente, à frente deles – enfrentam os perigos gigantescos representados pela extrema direita, é uma bênção ouvir o que Janis, a mãe madura, diz para Ana, sua paralela jovem demais.

O diálogo – a rigor um monólogo – acontece quando o filme está já com 86 minutos, quase uma hora e meia de suas duas horas de duração. Ana diz que Janis está obcecada com aquela história da fossa com os mortos pelos fascistas. – “Você deveria pensar no futuro. O resto só serve para abrir velhas feridas.”

Janis fica chocada: – “Quem disse isso? Seu pai?”

Ana diz que sim, e Janis reage com indignação: – “Está na hora de saber o país em que você vive. Parece que sua família não contou para você a verdade sobre o país. Há mais de 100 mil desaparecidos enterrados por aí, em valas ou perto de cemitérios. Seus netos e bisnetos querem poder desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno, porque prometeram isso às suas mães e avós. Até fazermos isso, a guerra não terá acabado. Você é jovem, mas está hora de saber onde seu pai e sua família estavam nessa guerra. Vai fazer bem a você saber para poder decidir onde quer estar.”

Que maravilha!

Prêmios merecidíssimos para o filme

Mães Paralelas é o oitavo filme em que Almodóvar dirige Penélope Cruz. Como os já citados Bergman e Woody Allen, Almodóvar é um cineasta que gosta de trabalhar sempre com os mesmos atores. Com Rossy de Palma foram ainda mais – nove filmes.

A interpretação de Penélope Cruz como essa personagem tão rica, tão complexa, é uma coisa absolutamente extraordinária. Uma maravilha. É seguramente uma das mais belas atuações dessa fantástica atriz, que consegue a proeza de ter um talento tão grande quanto sua beleza fulgurante.

Por ela, Penélope foi indicada ao Oscar de melhor atriz – sua quarta indicação ao todo. As outras foram por melhor atriz em Volver (2007) e por melhor atriz coadjuvante em Vicky Cristina Barcelona (2008) e Nine (2010). Por Vicky Cristina Barcelona ela levou o Oscar.

Mães Paralelas teve outra indicação ao Oscar, o de melhor trilha sonora para Alberto Iglesias. Foi também indicado ao Bafta de melhor filme em língua não inglesa e ao César francês de melhor filme estrangeiro. No Goya, o prêmio da Academia Espanhola, levou as estatuetas de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz para Penélope Cruz e melhor atriz coadjuvante para Aitana Sánchez-Gijón.

É maravilhosa a interpretação dessa moça Aitana Sánchez-Gijón. Impressionante.

Quanto talento neste filme, meu Deus do céu e também da Terra!

Anotação em maio de 2022

Mães Paralelas/Madres Paralelas

De Pedro Almodóvar, Espanha-França, 2021

Com Penélope Cruz (Janis),

Milena Smit (Ana)

e Israel Elejalde (Arturo), Aitana Sánchez-Gijón (Teresa, a mãe de Ana), Rossy de Palma (Elena, a maior amiga de Janis), Julieta Serrano (Brígida, a avó bem idosa e doente), Carmen Flores (Dolores), Adelfa Calvo (sobrinha de Brígida), Julio Manrique (Jesús), Chema Adeva (ator no teatro), Daniela Santiago (modelo), Ana Peleteiro (modelo)

Argumento e roteiro Pedro Almodóvar

Fotografia José Luís Alcaine

Música Alberto Iglesias

Montagem Teresa Font

Desenho de produção Antxón Gómez

Produção Agustín Almodóvar, Esther García, El Deseo, Pathé,

Radio Televisión Española, Remotamente Films, Sony Pictures Entertainment.

Cor, 123 min (2h03)

****

 

7 Comentários para “Mães Paralelas / Madres Paralelas”

  1. Meu caro Sérgio.
    Não sei se você se lembra, mas no início de “Abraços Partidos” (2009), bem no comecinho, quando o personagem está se apresentando como Mateo Blanco / Harry Caine, aparece rapidamente um roteiro datilografado intitulado “Madres Paralelas”, supostamente escrito por esse personagem. Isso pode indicar que Almodóvar já esboçava essa ideia, ou até já tinha pronta e aguardou o momento certo para filmá-la.
    Só percebi porque eu revi o filme recentemente.
    Um abraço.
    Gilberto

  2. Nossa, Gilberto, não, eu não tinha reparado isso. Muito interessante! Obrigado por enviar o comentário com a informação.
    Um abraço.
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *