3.0 out of 5.0 stars
Mais gostoso, engraçado, divertido do que Convenção das Bruxas de 1990 e do que Convenção das Bruxas de 2020, só mesmo a dose dupla dos filmes, ao mesmo tempo tão parecidos e tão dessemelhantes.
É absolutamente fascinante ver um atrás do outro.
Não tínhamos visto o original; na verdade, jamais havia prestado atenção ao filme de 1990 – não me lembro de ter sabido da existência dele. Mas andou-se falando bastante da refilmagem recente, estava em cartaz no Now, e então fiquei com vontade de ver.
Foi uma delícia.
Assim que o filme novo acabou, Mary e eu tivemos vontade de ver o original – que, felizmente, está disponível no HBO Max.
E foi de novo uma delícia.
Chegamos a comentar que teria sido mais certo ver primeiro o filme de 1990, e só depois a refilmagem recente, mas, a rigor, não faz diferença alguma. No caso destes dois The Witches, vale perfeitamente a regra da aritmética: a ordem dos fatores não altera o produto.
Anjelica Huston no primeiro, Anne Hathaway agora
Os dois filmes se baseiam, é claro, na mesma obra – o livro The Witches, lançado em 1983 pelo escritor Roald Dahl. Nascido em 1916 em um distrito da capital do País de Gales, Cardiff, e morto em 1990, exatamente o ano de lançamento do primeiro The Witches, Dahl é extremamente famoso e querido na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos; seus livros venderam o absurdo de 250 milhões de cópias em todo o mundo.
Embora Dahl tenha também escrito prosa para adultos, suas obras mais conhecidas são as voltadas para o público infanto-juvenil, como – além deste As Bruxas – Matilda, O BGA – o Bom Gigante Amigo, A Fantástica Fábrica de Chocolate, O Fantástico Senhor Raposo, Os Pestes, Os Minpins e A Girafa, o Pelicano e Eu.
Todos esses títulos já foram lançados no Brasil, creio que pela Editora Martins Fontes. E várias obras do autor viraram filme, como A Fantástica Fábrica de Chocolate – que teve uma versão em 1971 e outra em 2005, esta dirigida por Tim Burton, com Johnny Depp no papel principal. Ou O Bom Gigante Amigo, que foi dirigido – chique demais – pelo mago Steven Spielberg em 2016. Matilda foi filmado por Danny DeVito em 1996.
A lista é imensa. Estou achando que só eu não conhecia Roald Dahl. Só eu, no mundo inteiro.
“Seus livros para crianças são conhecidos pelo clima nada sentimental, macabro, muitas vezes de humor negro, apresentando adultos vilões que são inimigos dos personagens infantis. Essas obras têm como heróis crianças de coração gentil.”
Essa definição – que está na Wikipedia – serve como uma luva para The Witches.
Na história, a avó do pequeno herói protagonista é uma entendida sobre bruxas. Sabe tudo sobre elas, seus hábitos, seus gostos. Quando era criança, a avó havia perdido uma grande amiga, que permitiu a aproximação de uma bruxa e foi por ela transformada em uma galinha.
A avó conta para o garoto que há bruxas em todos os lugares do mundo, praticamente em cada cidade. E o maior desejo delas é acabar com as crianças, exterminar as crianças, transformar todas em ratos!
Assim, com bastante insistência, a avó adverte o netinho para o perigo que as bruxas representam, e recomenda que ele tome todo o cuidado possível.
No entanto…
Pois é. Apesar de tão consciente dos perigos que as bruxas representam, apesar de todo o seu conhecimento sobre elas, acontece de a boa avó ir com o neto para um grande, belo hotel à beira-mar onde vai se realizar uma reunião anual da Sociedade para a Prevenção da Crueldade Contra as Crianças… que, na verdade… é uma convenção nacional das bruxas!
Inadvertidamente, a avó e seu neto se vêem bem no olho do furacão. Bem no meio de uma convenção que reúne dezenas e dezenas de bruxas, sob a liderança da malvadíssima, terrível, apavorante Grande Rainha Bruxa!
(Essa foi a tradução usada nas legendas dos dois filmes. No original fica mais bonito: Grand High Witch.)
A Grand High Witch de 1990 é Anjelica Huston – e, meu, não poderia haver atriz mais perfeita para fazer a Grande Rainha Bruxa. Anjelica, maravilhosa atriz, filha do grande John, neta do grande Walter, uma princesa da mais alta linhagem de Hollywood, versátil, à vontade em qualquer situação, tem o physique du role para o papel. Não é à toa que foi a mais perfeita Morticia Adams que poderia haver em A Família Adams, a deliciosa fantasia lançada um ano após este Convenção das Bruxas, em 1991.
Eu até brincaria que Anjelica parece mais bruxa com seu próprio rosto, no filme, do que nos momentos em que as bruxas estão na intimidade, trancadas no grande salão de convenções do hotel, e ela retira a máscara que lhe dá feições humanas e aparece com a cara de bruxa mesmo, como nas ilustrações dos livros infantis, com aquele nariz gigantesco e torto e tudo o mais.
Já a Grand High Witch da versão 2020 é aquela gracinha da Anne Hathaway, também uma ótima atriz, também versátil, à vontade nas comedinhas românticas (Amor e Outras Drogas, 2010, Amor Moderno, 2019, entre tantas outras), nas fantasias (Alice no País das Maravilhas, 2010, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, 2012), e nos dramas adultos (O Casamento de Rachel, Passageiros, os dois de 2008).
Anne Hathaway está ótima como a nova Grande Rainha Bruxa. Está absolutamente exagerada, num papel que precisa exatamente de muito exagero. Quase consegue ficar feia, aquela moça tão linda, quando tira a peruca que todas as bruxas usam e os efeitos especiais alargam sua boca, quase fazendo com que ela vá de orelha a orelha.
Nos dois filmes, efeitos especiais fantásticos
Semelhantes, dessemelhantes.
O filme de 1990 é uma co-produção Inglaterra-EUA – mas é basicamente um filme inglês. A maior parte da ação se passa na Inglaterra. Diretor e roteirista são britânicos. O diretor é o respeitado, conceituado Nicolas Roeg (1928-2018), autor, por exemplo, do belo thriller Inverno de Sangue em Veneza/Don’t Look Now (1973), com Julie Christie e Donald Sutherland, do ficção-científica O Homem Que Caiu na Terra (1976), com David Bowie. O roteirista é Allan Scott, o escocês que recentemente foi o criador e roteirista da minissérie O Gambito da Rainha (2020), não por coincidência baseada em livro de Walter Tevis, autor também de The Man Who Fell on Earth.
O filme de 2020 é uma co-produção EUA-Inglaterra-México – mas é basicamente um filme americano, americaníssimo. Toda a ação se passa nos Estados Unidos. O diretor é Robert Zemeckis, um especialista (bem diferentemente do inglês Nicolas Roeg) em filmes para platéias juvenis, como, só para dar uns poucos exemplos, a trilogia De Volta para o Futuro (1985, 1989, 1990), a maravilhosa fusão de animação com live action Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), O Expresso Polar (2004), A Lenda de Beowulf (2007). Zemeckis também faz filmes para platéias adultas, como, só para dar dois exemplos, os ótimos Contato (1997) e O Vôo (2012). Mas, além de ser um mestre nas fantasias para jovens dos 8 aos 80 anos, sempre foi dado a obras cheias de efeitos especiais, como os já citados aí acima e mais Forrest Gump: O Contador de Histórias (1994), em que fez uma brilhante mistura de live action com trechos de cinejornais ou telejornais – e assim vemos Tom Hanks e os outros atores contracenando com personalidades como John Kennedy, Lyndon Johnson, Ronald Reagan.
O roteiro é assinado pelo próprio Robert Zemeckis & Kanya Barris – e Guillermo del Toro. Isso significa, se a gente traduzir os símbolos usados pelo Sindicato dos Roteiristas, que Zemeckis e Kanya escreveram juntos, a quatro mãos, o roteiro – e aí então veio del Toro e trabalhou em cima do que a dupla havia feito, e deu a forma final. O mexicano Guillermo del Toro, como se sabe, é um especialista em mundos estranhos, criaturas esquisitas, realidades mais que fantásticas, como provam seus filmes – e basta citar Hellboy (2004), O Labirinto do Fauno (2006) e A Forma da Água (2017).
The Witches versão 1990 diz nos créditos que os efeitos especiais são de Jim Henson’s Creature Shop – e menciona os nomes de Steve Norrington, Nigel Booth e John Stephenson. Não tenho a menor idéia do que seja, ou tenha sido, a loja de criaturas de Jim Henson, mas ela deve ter sido importante pra cacete. Pauline Kael começa sua crítica sobre o filme falando nesse estúdio de efeitos especiais: “Os anúncios dizem ‘Da imaginação de Jim Henson e do diretor Nicolas Roeg’. Seria mais correto dizer ‘Da imaginação do escritor Roald Dahl.”
O fato é que os efeitos especiais do filme de 1990 são extraordinários, fantásticos, sensacionais. Ainda não existiam as CGI, as imagens gerados por computação gráfica – e vemos efeitos especiais de deixar os gênios da Industrial Light & Magic de George Lucas boquiabertos e de queixos caídos. Meu, quando a Grand High Witch retira a máscara que dava a ela o rosto de Anjelica Huston, e aí passamos a ver seu rosto verdadeiro de bruxa… Que maravilha! Dá vontade de voltar atrás e ver de novo, e depois novamente, e em seguida mais uma vez.
Quando os garotos são transformados em ratos… Quando os ratos que eram os garotos caminham pela cozinha do hotel, pelo quarto da Vovó… Que coisa absolutamente fantástica!
Os efeitos especiais do filme de 2020 também são fantásticos, sensacionais, extraordinários. O rosto da Grand High Witch Anne Hathaway quando ela retira a peruca e sua boca ocupa quase todo o espaço entre as duas orelhas – tudo ali é espantosamente perfeito. Mas, diacho, não se poderia esperar nada que não fosse perfeito neste mundo em que se criam computer generated images já lá se vai um quarto de século!
Os créditos finais de The Witches 2020 enfileiram trocentos nomes de técnicos que trabalharam nos efeitos especiais e nos efeitos visuais. (Não me perguntem o que é uma coisa e o que é outra – não tenho a menor idéia.) Mas não há grande destaque para eles – e, estranhamente, ao contrário da imensa maioria dos filmes importantes, os efeitos não ficaram a cargo da Industrial Light & Magic.
Na nova versão, garoto e avó são negros
Semelhantes, dessemelhantes.
No filme de 1990, exatamente como no livro, o garoto que é o protagonista da história é inglês. Chama-se Luke, e é interpretado por Jasen Fisher. Quando a ação começa, ele, o pai e a mãe estão visitando sua avó materna, Helga, que vive na Noruega. Helga é o papel de Mai Zetterling (1925-1994), a grande atriz sueca que se tornou também roteirista e diretora.
Fiquei me perguntando por que Noruega. A Noruega não é também o país do Papai Noel? Teria a Noruega algo especialmente fantástico? Bruxístico? Depois vi que não, não é nada assim simbólico, não – é apenas que o autor Roald Dahl é descendente de noruegueses que emigraram para o País de Gales…
O gerente do hotel em que Helga e Luke vão se hospedar, exatamente no momento em que se realiza a convenção das bruxas, é interpretado por Rowan Atkinson, o comediante inglês que ficou marcado como o Mr. Bean e o Johnny English dos filmes de grande bilheteria.
O gerente do hotel na nova versão é interpretado por Stanley Tucci – que, assim, volta a contracenar com Anne Hathaway, 14 anos depois de O Diabo Veste Prada.
Pois bem. Agora, depois de 173 linhas, vem a informação fundamental sobre as semelhanças e dessemelhanças dos dois filmes Convenção das Bruxas.
No filme de 2020, o garoto que é o protagonista da história e sua avó são americanos do Alabama, estado do Sul Profundo, em que até o início dos anos 1960 vigoravam odiosas, nojentas leis que segregavam os negros dos brancos, como na África do Sul do apartheid. E os dois são negros.
O garoto que na primeira versão se chamava Luke na segunda não tem nome, quer dizer, seu nome não é mencionado. É interpretado pelo garoto Jahzir Bruno – uma grande revelação. No início do filme, ouvimos a voz do personagem quando já velho, contando a história que virá em seguida – e quem faz a voz do herói idoso é Chris Rock, o famosérrimo comediante de stand-up e ator do cinema e da TV americanos.
A avó que na primeira versão é interpretada por Mai Zetterling é, na versão nova, o papel da ótima Octavia Spencer, Oscar de atriz coadjuvante por Histórias Cruzadas/The Help (2011), indicada ao Oscar dois anos consecutivos, por Estrelas Além do Tempo/Hidden Figures (2016) e A Forma da Água (2017).
O papel da avó que sabe tudo sobre bruxas mas acaba levando o netinho para o meio da convenção delas caiu como uma luva para Octavia Spencer. Ela está fantástica.
Parece perfeitamente natural que, na versão de 2020, os autores do roteiro tenham feito essas mudanças – a ação passar da Inglaterra para os Estados Unidos, e os dois protagonistas, o garoto e a avó, serem negros. É mais uma ação positiva, inclusiva, para aumentar a representatividade dos negros no cinema.
Interessante é que os realizadores tenham colocado a ação bem no coração do Sul Profundo mais apavorantemente racista, e justamente em 1968, apenas quatro anos após a promulgação, pelo presidente Lyndon B. Johnson, do Civil Rights Act, a Lei dos Direitos Civis, que finalmente proibiu todo tipo de discriminação com base em raça, cor, religião, sexo e nacionalidade, pondo fim aos diversos sistemas estaduais de segregação racial, conhecidos por Leis de Jim Crow.
Justamente 1968, o ano do assassinato do reverendo Martin Luther King Jr., o grande líder das lutas pelos direitos civis dos negros.
Dessemelhantes, semelhantes. É uma delícia ver que, apesar dessas grandes diferenças todas, as duas versões da história criada pelo galês Roald Dahl são a rigor bem parecidas. Há diversas situações que se repetem quase exatamente. Há diálogos inteiros que são idênticos.
Eu sempre falei mal dessa coisa de quererem refilmar histórias que já deram bons filmes. Sempre repeti que é perda de talento e energia, que é desnecessário. A versão de 2020 de Convenção das Bruxas demonstra que há casos em que a refilmagem é plenamente, absolutamente justificada.
Anotação em julho de 2021
Convenção das Bruxas/The Witches
De Robert Zemeckis, EUA-México-Reino Unido, 2020
Com Octavia Spencer (a Avó),
Jahzir Bruno (o Herói criança),
Anne Hathaway (a Grande Rainha Bruxa),
e Stanley Tucci (Mr. Stringer, o gerente do hotel), Chris Rock (a voz do Herói velho), Kristin Chenoweth (a voz da ratinha Daisy / Mary),
Codie-Lei Eastick (Bruno Jenkins, o menino comilão), Charles Edwards (Mr. Jenkins), Morgana Robinson (Mrs. Jenkins), Ashanti Prince-Asafo (Alice Blue, a amiguinha da avó quando jovem), Vivienne Acheampong (a mãe de Alice), Sobowale Antonio Bamgbose (o pai de Alice), Orla O’Rourke (Saoirse, a bruxa que cuida da porta), Eurydice El-Etr (Samantha), Ana-Maria Maskell (Esmeralda), Eugenia Caruso (Consuella), Philippe Spall (o Chef do restaurante do hotel)
Roteiro Robert Zemeckis & Kanya Barris e Guillermo del Toro
Baseado no livro de Roald Dahl
Fotografia Don Burgess
Música Alan Silvestri
Montagem Ryan Chan, Jeremiah O’Driscoll
Casting Victoria Burrows
Coordenação de efeitos especiais Lucy Thompson
Direção de arte Gary Freeman
Figurinos Joanna Johnston
Na TV a cabo (Now, pago). Produção Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro,
Luke Kelly, Jack Rapke, Robert Zemeckis,
Cor, 106 min (1h46)
Disponível no Now em 7/2021
***
Convenção das Bruxas/The Witches
De Nicolas Roeg, Reino Unido-EUA, 1990
Com Mai Zetterling (Helga, a Avó),
Jasen Fisher (Luke, o garoto),
Anjelica Huston (Mrs. Ernst, a Grande Rainha Bruxa)
e Rowan Atkinson (Mr. Stringer, o gerente do hotel), Charles Potter (Bruno Jenkins, o menino comilão), Bill Paterson (Mr. Jenkins), Brenda Blethyn (Mrs. Jenkins), Anna Lambton (mulher de negro), Jane Horrocks (Miss Irvine), Sukie Smith (Marlene), Rose English (Dora), Jenny Runacre (Elsie), Annabel Brooks (Nicola), Emma Relph (Millie), Nora Connolly (Beatrice), Darcy Flynn (a mãe de Luke), Vincent Marzello (o pai de Luke), Greta Nordra (a bruxa norueguesa), Elsie Eide (Erica, a amiguinha da avó quando jovem), Merete Armand (a mãe de Erica), Ola Otnes (o pai de Erica), Kirstin Steinsland (Helga criança)
Roteiro Allan Scott
Baseado no livro de Roald Dahl
Fotografia Harvey Harrison
Montagem Tony Lawson
Música Stanley Myers
Direção musical Christopher Palmer
Direção de arte Andrew Sanders
Figurinos Marit Allen
Efeitos especiais Jim Henson’s Creature Shop, Steve Norrington, Nigel Booth, John Stephenson
Produção Mark Shivas, Warner Bros, Image Movies.
Cor, 91 min (1h31)
Disponível no HBO Max em 7/2021.
***
Queria muito ver esse filme mas não sabia o nome dele,
graças ao seu artigo encontrei e agora posso assistir.
Os efeitos são engraçados e bons, não vejo a hora.
Vou assistir só por ter o ator de “esqueceram de mim” kkk, muito perfeito!