Ethel e Ernest / Ethel & Ernest

Nota: ★★★☆

Ethel & Ernest, co-produção Inglaterra-Luxemburgo de 2016, é, como todos os belos filmes, muita coisa ao mesmo tempo. É uma simpática, terna história de amor. Como se passa ao longo de muitas décadas, é, como os filmes de Ettore Scola, um afresco, um amplo retrato da Grande História que está sempre como pano de fundo da história de seus personagens, Ethel e Ernest – o micro e o macro sendo apresentados como linhas, fios, pedaços de pano que formam um mesmo crochê, uma mesma colcha de retalhos.

Para quem, como eu, não sabia quem ele era, é uma maravilhosa forma de conhecer Raymond Briggs, um fantástico artista plástico, ilustrador, criador de novelas gráficas, nascido em Londres em 1934.

É ainda uma bem-vinda ocasião para ouvirmos as vozes de Jim Broadbent e Brenda Blethyn, esses fantásticos, maravilhosos atores.

Mas, sobretudo, na minha opinião, Ethel & Ernest é uma das belas elegias que o cinema já fez às pessoas simples, pessoas comuns, gente como a gente.

Ordinary people, como se diz na língua de Ethel, Ernest e o filho deles, Raymond. Ordinary people, como adorava dizer Paul McCartney em suas canções. “Ordinary people living their ordinary lives”, ele cantava – gente simples, comum, vivendo suas vidas simples, comuns.

Ethel & Ernest começa com Raymond Briggs, o aclamado artista gráfico, falando sobre como eram pessoas simples, comuns, os seus pais – os protagonistas da história que virá a seguir.

E termina com, nos créditos finais, de repente – para mim foi uma total surpresa – uma canção inédita, feita especialmente para o filme, exatamente por ele, Sir James Paul McCartney.

Quando grandes artistas se reúnem para fazer a elegia da vida simples, das pessoas simples, saem grandes obras.

Ethel & Ernest é uma maravilha.

Depois de um intróito, uma panorâmica de Londres

Se fosse um escritor, provavelmente Raymond Briggs escreveria uma bela biografia de seus pais. Se fosse um músico, comporia canções. Como é um ilustrador, um artísta gráfico, escreveu a vida deles em forma de uma graphic novel, como se diz hoje em dia. Um livro de história em quadrinhos.

A graphic novel do artista foi transformada pelo diretor Roger Mainwood em uma belíssima, esplendorosa animação – com o traço do próprio Raymond Briggs, é claro.

Antes do início da animação, há uma abertura, um prólogo, em que vemos o próprio Raymond Briggs em sua casa – um senhorzinho bem magro, ágil, lépido, aos 82 anos em 2016, o ano do lançamento do filme. De pé na cozinha, prepara um chá com leite, essa bebida absolutamente inglesa, enquanto começam a rolar os créditos iniciais. Leva a caneca para seu estúdio, e começa a narrar para o espectador:

– “Não havia nada extraordinário em minha mãe e meu pai. Nada dramático. Nem divórcio, nem nada. Mas eles eram meus pais, e eu queria me lembrar deles, fazendo um livro ilustrado.”

Ele não usa a expressão graphic novel; prefere a mais simples, menos pomposa, “picture book”. Livro com figuras, livro ilustrado Achei uma delícia esse detalhe.

Briggs está sentado em seu estúdio, diante de uma janela que ilumina fortemente a grande folha de papel em que ele começa a desenhar com uma bela lapiseira.

– “É um pouco estranho ter um livro sobre os meus pais na lista dos mais vendidos, entre heróis do futebol e livros de receita. Suponho que eles se orgulhariam disso. Mas ficariam constrangidos também. Imagino que diriam: ‘Não foi assim!’ Ou então: ‘Como você pôde falar disso?’ Bem, eu falei. E esta é a história deles.”

Vemos o desenho dos rostos de Ethel e Ernest que ele acabou de criar – e começa a animação.

A primeira tomada da animação é para fazer cinéfilo suspirar fundo de alegria e prazer: uma tomada geral, uma panorâmica da cidade de Londres, o Tâmisa ali no meio, as várias pontes, o prédio do Parlamento. Bem à direita da tela, a Torre de Londres. Um aviãozinho sobrevoa a cidade, um letreiro avisa que estamos em 1928.

A câmara faz um grande zoom, dirige-se à região mais ao Sul e mais a Oeste da cidade maravilhosa.

De uma casa em bairro simples, de gente humilde, working class, um homem sai com sua bicicleta: vamos conhecer Ernest Briggs, leiteiro de profissão. E logo depois vamos ver Ethel, moça que trabalha como empregada na grande casa de uma senhora rica.

Ernest nos falará com a voz de Jim Broadbent, Ethel, com a de Brenda Blethyn.

Marido e mulher tinham visões diferentes – e riam disso

Para se casar com Ernest, Ethel pede demissão à senhora a quem servia fazia um bom tempo. O jovem casal consegue comprar uma casinha de gente humilde, working class, um sobradinho com um pequenino quintal atrás – e vai mobiliando-a, melhorando-a pouco a pouco, durante toda a vida. Literalmente durante toda a vida de casados. Morreram, os dois, em 1971, quando Raymond, o filho único, já era um artista famoso, consagrado, premiado. Ethel foi primeiro. Como acontece com tantos casais de casamentos longevos, o que sobrevive não sobrevive por muito tempo, e logo Ernest foi também.

Raymond nasceu, como já foi dito, em 1934, alguns anos depois do casamento dos pais; Ethel já estava achando estranho não ter engravidado ainda quando enfim acontece a gravidez. Que não foi muito tranquila, já que ela estava com 37 anos, e ter o primeiro filho nessa idade não era nada comum, naquela época.

O garoto estava, portanto, com cinco anos quando começou a Segunda Guerra Mundial – e o filme se detém bastante no período logo anterior ao início da guerra e nos anos em que Londres foi bombardeada pelos aviões da Luftwaffe. Mostra-se que milhares, dezenas de milhares de crianças da região metropolitana de Londres – inclusive Raymond Briggs – foram levadas para o campo, para viver com parentes ou voluntários, e, assim, ficar longo dos bombardeios frequentes. (Esse é um fenômeno histórico do qual Mary e eu jamais tínhamos ouvido falar, essa migração em massa de crianças para o campo durante a guerra.)

Como é comum entre os ingleses, Ernest Briggs era um leitor atento dos jornais, e tinha, claro, suas opiniões políticas. Era um eleitor do Partido Trabalhista, diferentemente da mulher – e isso é muito interessante.

Apesar da origem humilde, apesar de ter trabalhado por anos e anos como empregada doméstica, Ethel recusava com firmeza ser considerada da working class – há um diálogo em que ela explicita sua recusa em admitir isso. E tinha simpatias pelo Partido Conservador, os tories. Marido e mulher se provocavam sempre sobre essas suas diferenças políticas – e o roteiro esperto de Roger Mainwood, seguramente apoiado em diálogos da graphic novel de Raymond Briggs, se aproveita disso para ir entremeando a história do casal com referências a episódios políticos, aos nomes dos primeiro-ministros.

Em algumas coisas, Ethel Briggs me fez lembrar da minha própria mãe – menos de 20 anos separam as datas de nascimento das duas. Diferentemente do marido, Ethel se mostrava uma pessoa conservadora, nada afeita a coisas novas, diferentes, modernas. Mesmo quando o filho já era adolescente, e depois jovem adulto, ela implicava com as roupas dele, com o cabelo grande dele.

Essas diferenças de personalidade, de natureza, no entanto, não afastavam um do outro. Ao contrário: o casal acabava sempre falando de suas diferenças com bom humor.

O casal vai ao cinema ver um filme de John Ford

Ernest – o filme faz questão de mostrar isso o tempo – era um homem positivo, pra cima, de bem consigo e com a vida.

A canção composta para o filme por Paul McCsrtney, esse artista extraordinário que parece estar sempre de bem consigo e com a vida, se chama “In the Blink of na Eye”, num piscar de olhos. Ernest Briggs certamente gostaria dela. Um trechinho da letra:

In the blink of an eye

Many songs have been sung

Many lives have gone by

We will never give up

We will hold on to love

With no reason to cry

Num piscar de olhos, muitas canções foram cantadas, muitas vidas se foram. Nós nunca vamos desistir. Vamos nos agarrar ao amor, sem razão para chorar.

Outras informações sobre o filme, a maioria tirada da página de Trivia do IMDb, com pitacos meus, é claro:

* O filme que Ethel e Ernest vão ver, numa das primeiras vezes em que saem juntos, é de 1928 mesmo – o ano em que começa a ação. É Hangman’s House, no Brasil Justiça do Amor; o diretor é o mestre dos mestres John Ford, e o ator principal – de quem Ernest se mostra um fã – é o grandalhão Victor McLaglen. Victor McLaglen trabalhou em vários filmes de Ford; em Depois do Vendaval/The Quiet Man, de 1952, ele protagoniza uma das mais fantásticas brigas da História do cinema com outro grandalhão, John Wayne.

* Na bela trilha sonora que compôs para o filme, Carl Davis aproveitou um tema que ele mesmo havia criado para a série da BBC de 1995 Orgulho e Preconceito, e o transformou no principal tema de Ethel & Ernest, tocado em solo de piano.

* Carl Davis fez uso também do tema principal do clássico No Tempo das Diligências, que John Ford lançou em 1939. É a música que se ouve na sequência em que Ernest, todo orgulhoso, apresenta seu novíssimo utensílio elétrico de cozinha para Ethel.

Uma maravilhosa ode às pessoas como a gente

No filme, Raymond conta para os pais que sua mulher, Jean, era esquizofrênica. O filme não conta, mas eles foram casados durante dez anos, de 1963 a 1973, quando ela morreu de leucemia, apenas dois anos depois que ele havia perdido os dois pais.

Os dois não tiveram filhos. E Raymond não voltou a se casar.

Numa sequência que mostra Raymond garoto, no campo inglês, durante a Segunda Guerra, ele está desenhando um boneco de neve, baseado em uma figura de bolo de Natal. Não é gratuito – muitíssimo antes ao contrário. The Snowman é o nome do livro de maior sucesso do artista. O livro não contém palavras; com base nele foi feita uma animação para a TV britânica e uma adaptação musical que costuma ser encenada a cada Natal.

Quando Ethel & Ernest foi lançado, The Independent, o grande jornal londrino, publicou uma elogiosa crítica assinada por Geoffrey Macnab que começava assim:

“Este é um longa-metragem de animação maravilhosamente evocativo e com boas observações que funciona como um equivalente em desenho animado a This Happy Breed de Noël Coward. Adaptado da novela gráfica de Raymond Brigg, ele conta a história dos pais dele, Ethel e Ernest, ao longo de um período de mais de 50 anos, do final dos anos 20 em diante, que inclui o nascimento de Raymond, a Segunda Guerra Mundial, a criação do estado de bem-estar social, a era de austeridade do pós-guerra e o relativo conforto material dos anos 60.

“O filme trata de eventos muitas vezes sísmicos da história social britânica da perspectiva muito realista de Ethel (com a voz de Brenda Blethyn), uma ex-empregada de uma lady, e seu marido leiteiro (Jim Broadbent).”

This Happy Breed, a peça de Noël Coward que David Lean transformou em 1944 em um dos melhores filmes de esforço de guerra jamais feitos, é uma maravilha, e de fato este Ethel & Ernest tem a ver com ele. Como This Happy Breed, Ethel & Ernest é uma ode ao povo inglês.

Mas é mais ainda que isso. Como eu disse lá atrás, é uma maravilhosa ode às pessoas simples. Aos não super-heróis, aos não fabulosos, extraordinários. Uma maravilhosa ode às pessoas como você e eu.

Anotação em abril de 2021

Ethel e Ernest/Ethel & Ernest

De Roger Mainwood, Inglaterra-Luxemburgo, 2016

Com Raymond Briggs (em participação especial),

e as vozes de Brenda Blethyn (Ethel Briggs), Jim Broadbent (Ernest Briggs), Luke Treadaway (Raymond Briggs), Macready Massey (Raymond Briggs adolescente), Harry Collett (Raymond Briggs jovem ), Roger Allam (o médico em 1930), June Brown (a madrasta de Ernest), Karyn Claydon (Jean, a namorada/mulher de Raymond), Simon Day (Alf), Pam Ferris (Mrs. Bennet / tia Betty), Gillian Hanna (parteira / tia Flo), Alex Jordan      (médico nos anos 70 / bombeiro), Virginia McKenna    (a senhora da casa em que Ethel trabalhou)

Roteiro Roger Mainwood

Baseado na novela gráfica de Raymond Briggs

Música Carl Davis

Montagem Richard Overall

Direção de arte Robin Shaw

Produção Camilla Deakin, Ruth Fielding, BBC, British Film Institute, Ffilm Cymru Wales, Film Fund Luxembourg, Cloth Cat Animation.

Cor, 94 min (1h34)

Disponível na Netflix em abril de 2021

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