Há filmes baseados em romances, novelas, contos, peças de teatro, óperas, histórias reais, histórias criadas diretamente para o cinema. Tem de tudo. Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra certamente foi o primeiro baseado no nome de uma atração de um parque de diversões.
É verdade que a Disneylândia é o maior e mais famoso parque de diversões do mundo, e Piratas do Caribe é uma senhora atração. E foi por causa dela que Hollywood resolveu fazer o filme, em 2003 – uma produção caprichadérrima, que custou US$ 140 milhões de dólares, um dos maiores orçamentos do cinema até então.
Claro que, sendo uma produção que juntava os talentos e o senso certeiro da Walt Disney Pictures e da Jerry Bruckheimer Films, deu certo: o filme é uma delícia, um divertissement para ninguém que gosta de divertissements botar defeito. Rendeu a fábula de US$ 654 milhões, teve cinco indicações ao Oscar (38 prêmios, fora 102 indicações, no total), selou Johnny Depp como um dos maiores astros do cinemão comercial e, at last but not at least, escancarou ao mundo a beleza, o charme, a graça de Keira Knightley, então com 18 aninhos.
Na verdade, ao criar a fantástica história de A Maldição do Pérola Negra, o time de quatro escritores contratados para a tarefa não apenas escreveu o roteiro de um filme de sucesso como também deu início a uma milionária, bem sucedidíssima franquia: depois do primeiro, já foram feitos mais quatro filmes: Piratas do Caribe: O Baú da Morte (2006), Piratas do Caribe: No Fim do Mundo (2007), Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (2011) e Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar (2017).
Johnny Depp e o diretor Gore Verbinski formaram uma ótima dupla
O herói da história – deste filme e dos quatro seguintes – é um capitão pirata extravagante, cheio de maneirismos, caras e bocas, engraçado, ridículo, fascinante, chamado Jack Sparrow – o papel perfeito para Johnny Depp, esse ator camaleão que parece ter nascido para fazer os personagens mais extravagantes que pode haver, de Edward Mão de Tesouras a Sweeney Todd, o barbeiro doidão de Londres.
Johnny Depp já havia encontrado em Tim Burton, o realizador dos dois filmes citados na frase acima, o diretor perfeito para ser seu par nas extravagâncias visuais. Ao interpretar o pirata Jack Sparrow, encontrou um novo parceiro ideal para as aventuras amalucadas que gosta de protagonizar. Gore Verbinski vem se revelando mestre como realizador de filmes que misturam ação, aventura, graça, humor, visual doidão; dez anos depois deste primeiro Piratas do Caribe, faria com Johnny Depp um western-ação-aventura-fantasia especialmente delicioso, O Cavaleiro Solitário/The Lone Ranger.
Jack Sparrow, o protagonista, no entanto, só aparece na tela quando estamos aí com mais de 10 minutos de filme. A primeira personagem que o espectador vê é Elizabeth Swann, uma garotinha de uns 10, 12 anos, a filha de Weatherby Swann (o papel do grande Jonathan Pryce), o venerável governador de uma das possessões no Caribe de Sua Majestade o rei da Grã-Bretanha, ali em meados do século XVIII.
Elizabeth é a principal personagem feminina da história; nessas sequências de abertura, é interpretada pela garotinha Lucinda Dryzek (na foto acima); aí há um corte no tempo, e vemos a filha do governador aos 18 anos, agora na pele de Keira Knightley.
A filhinha do governador britânico é encantada com piratas
Quando o filme começa, a filha do governador, de pé bem na proa do galeão britânico que atravessou o Atlântico e agora está chegando ao Caribe, numa posição parecida com a do casal Jack Dawson-Leonardo DiCaprio e Rose Dewitt-Kate Winslet na proa do Titanic, está cantando uma canção sobre piratas: “A vida de piratas é a vida que eu quero para mim. / Nós raptamos e saqueamos e nem nos importamos…”
Um marujo bem mal-encarado ouve aquilo e protesta. Chega então perto dele um oficial britânico, com aquele uniforme britânico de séculos atrás que parece mais fantasia, e manda o marujo ir trabalhar. É o tenente Norrington (o papel de Jack Devenport), por quem o governador Swann tem afeição. – “Acho que seria emocionante encontrar piratas”, diz a garotinha Elizabeth para o tenente. Norrington faz um discurso contra os piratas, aqueles asssinos sanguinários. O governador chega para perto e diz para ele não assustar a garotinha.
Mas quem fala muito no diabo parece querer invocá-lo, e eis que o galeão britânico se depara primeiro com um garoto náufrago, em um pedaço de madeira, e em seguida com os restos de um grande navio que está pegando fogo. Aquele tal marujo mal encarado diz que o navio foi vítima de piratas. Os homens conseguem trazer para bordo o garoto náufrago, que está desacordado. Tem uns 10, 12 anos, a mesma idade de Elizabeth. A garota se aproxima dele, vê que ele traz no pescoço um medalhão – pirata! Ela retira rapidamente o medalhão dele, esconde no seu vestido impecável. O garoto abre os olhos, Elizabeth diz seu nome, o garoto diz o dele – “Will Turner” – e desmaia novamente.
Elizabeth vê à sua frente um navio pirata um tanto tenebroso, um tanto fantasmagórico – corta, e Elizabeth, agora já aos 18 anos, e na pele de Keira Knightley, acorda do sonho.
O roteiro é esperto, ágil, bem bolado – mas, a rigor, a trama não é o mais importante
Bem rapidamente, o roteiro esperto, ágil, bem engedrado, mostra que Will Turner (interpretado, naquela abertura, pelo garoto Dylan Smith, e por Orlando Bloom quando está aí com uns 20 anos) agora é ajudante do ferreiro da capital da tal possessão britânica. O espectador o vê levando para o governador Swann uma espada brilhando de nova, que o gentil homem vai oferecer exatamente naquele dia para Norrington, que está sendo promovido a Comodoro.
Bem rapidamente, também – não chegamos sequer a 15 minutos de filme -, o roteiro mostra que o governador gostaria muito que Elizabeth se casasse com Norrington. E que Elizabeth, na verdade, arrasta as asinhas para o garoto Will Turner – que, por sua vez, baba por ela.
É na cerimônia em que Norrington será promovido a Comodoro que o capitão pirata Jack Sparrow vai aparecer – e, claro, roubar a cena.
Virá a partir de então uma trama bem bolada, gostosa, que envolve um bando de piratas não-mortos e não-vivos, chefiados por um tal Barbossa, interpretado pelo excelente Geoffrey Rush.
Sim, exatamente: zumbis. Mortos-vivos. Não-mortos – mas também não-vivos. O filme poderia se chamar Os Piratas Zumbis do Caribe.
A trama mostrará que, no passado, Jack Sparrow, o horroroso Barbossa e o falecido pai do jovem Will Turner haviam sido parceiros nas lides piratas. Separaram-se porque Barbossa foi tomado por uma cobiça maior do que a permitida, até mesmo entre os piratas – o que o levou, e a seus seguidores, à maldição que os condenou àquela condição de não-vivos.
É mais ou menos assim. Algo por aí. Já me esqueci – até porque, a rigor, a rigor, exatamente a lógica da trama é o que menos importa.
Não que seja sem pé nem cabeça; não é isso. Como eu disse, a trama é bem bolada, bem engendrada. A questão é que de fato ela importa menos que as piadas, as cenas de ação, as palhaçadas protagonizadas por Jack Sparrow-Johnny Depp.
Foi um belo trabalho do quarteto de escritores que criou uma história a partir do nome da atração da Disneylândia e dos demais parques Disney ao redor do mundo. O resultado final sem dúvida é bom – mas não deve ter sido fácil bolar a história. Deve ter sido bem trabalhoso. É o que indicam os próprios créditos.
A autoria da história e do roteiro é apresentada assim: História para o cinema de Ted Elliott & Terry Rossio e Stuart Beattie e Jay Wolpert.
Roteiro Ted Elliott & Terry Rossio.
Isso significa – usando os códigos do Writers Guild of America, o sindicato dos roteiristas, segundo os quais & indica tarefa dividida e and indica que o texto anterior foi refeito – o seguinte:
* Ted Elliott & Terry Rossio escreveram uma versão da história, da trama;
* Stuart Beattie pegou aquela versão e mexeu, reescreveu, mexeu, reescreveu;
* Jay Wolpert pegou a segunda versão da história e mexeu, reescreveu, mexeu, reescreveu;
* aí então a dupla original, Ted Elliott & Terry Rossio, trabalhando a quatro mãos, escreveu o roteiro, ou seja, transformou a história no texto pronto que indica como deveria ser filmado cada ponto da trama.
O espectador não precisa se preocupar com nada disso. Basta se acomodar da poltrona e se divertir.
Johnny Depp se inspirou em Keith Richards para compor o pirata
Elizabeth Swann, a filha do governador, o papel Keira Knightley, continuaria como protagonista nos dois filmes seguintes, Baú da Morte (2016) e No Fim do Mundo (2007).
No quarto filme da série, Navegando em Águas Misteriosas, parece que ela some completamente – e, como todo filme, para ter sucesso na bilheteria, precisa de um female interest, uma personagem feminina, de preferência interpretada por uma atriz linda, Penélope Cruz embeleza a tela.
O quinto filme, A Vingança de Salazar (2017), não tem Penélope Cruz, parece não ter uma grande estrela em papel importante – mas Keira Knightley surge numa participação especial.
Gore Verbinski dirigiu apenas os três primeiros.
Consta que Johnny Depp pensou, pensou, pensou e chegou à conclusão de que os piratas eram os equivalentos, no século XVIII, aos astros de rock das últimas décadas. Assim, o Jack Sparrow que ele acabou compondo é um sujeito meio parecido com Keith Richards.
Li isso agora na página de Trívia do IMDb sobre o filme – e é bem verdade: Jack Sparrow faz lembrar Keith Richards, o sujeito que se, for picado por um aedes aegypti, mata o mosquito na hora. É uma deliciosa trivia, e seguramente deve haver muitas outras boas, entre os 104 itens de curiosidades reunidas lá. O eventual leitor pode ir lá checar, se quiser. É tanta curiosidade que me deu preguiça.
Anotação em agosto de 2018
Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra/Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl
De Gore Verbinski, EUA, 2003
Com Johnny Depp (Jack Sparrow), Geoffrey Rush (Barbossa), Orlando Bloom (Will Turner), Keira Knightley (Elizabeth Swann), Jack Davenport (Norrington), Jonathan Pryce (governador Weatherby Swann), Lee Arenberg (Pintel), Mackenzie Crook (Ragetti), Damian O’Hare (tenente Gillette), Giles New (Murtogg), Angus Barnett (Mullroy), David Bailie (Cotton), Michael Berry Jr (Twigg), Isaac C. Singleton Jr. (Bo’sun), Kevin McNally (Joshamee Gibbs), Lucinda Dryzek (Elizabeth garotinha), Dylan Smith (Will garotinho)
Roteiro Ted Elliott & Terry Rossio
História de Ted Elliott & Terry Rossio e Stuart Beattie e Jay Wolpert
Fotografia Dariusz Wolski
Música Klaus Badelt
Montagem Stephen E. Rivkin, Arthur Schmidt, Craig Wood
Casting Jennifer Alessi, Ronna Kress
Produção Walt Disney Pictures, Jerry Bruckheimer Films.
Cor, 143 min (2h23)
***
A referência a Keith Richards era tão forte que o guitarrista dos Rolling Stones interpretou o pai de Jack Sparrow no terceiro filme da série. Belo texto!