Anotação em 2011: A pior coisa deste filme foi o título que os exibidores brasileiros inventaram para ele. Bom Demais Pra Ser Verdade é bastante ridículo. Pena. É um belo filme, fascinante por uma série de razões.
A principal delas é a simplicidade, a singeleza com que a história é contada. Não tem absolutamente nenhum lance feérico, um único fogo de artifício. Não tem nenhuma jogadinha, sacadinha, tão comuns nos filmes do cinemão comercial. Evita qualquer tipo de charme, qualquer especial elegância nos ambientes, nas roupas. Vai, assim, com uma bravura impressionante, contra todos os cânones, os costumes, os maneirismos de Hollywood – e do cinemão comercial feito em qualquer outro lugar do mundo.
É tudo de uma simplicidade franciscana. Mostra pessoas comuns, em situações comuns – uma dona de casa pintando as unhas dos pés na sala, um homem vendo TV e tomando cerveja, um jovem tentando estudar na cozinha de casa, um jantar de namorados em um restaurante normal, nada rico, fino ou chique.
Outro aspecto fascinante é que, apesar de ser uma produção independente, e nada comercial, tem grandes e/ou respeitadíssimos e/ou famosos nomes no elenco: Orlando Bloom, que vem de grandes produções (e aqui aparece um tanto enfeiado, com um corte de cabelo e um bigodinho que parecem feitos para esconder sua bela estampa); Ellen Burstyn, atriz maravilhosa, um Oscar, 22 outros prêmios; Patricia Clarkson, outra magnífica atriz, com diversas boas atuações, sobretudo em filmes independentes, uma indicação ao Oscar, 22 prêmios; e, finalmente, Colin Firth, o astro inglês que, no mesmo ano deste filme aqui, 2010, ganhou o Oscar por O Discurso do Rei (fora o Oscar, tem 37 prêmios).
Mas por que raios escolheram um inglês de Hampshire para interpretar um texano?
Este é outro dos aspectos fascinantes deste filme. Sei lá por que escolheram, por que ele aceitou, mas o fato é que Colin Firth interpreta um texano – e interpreta muito bem, com um sotaque que, pelo pouco que sei, não envergonharia nenhum texano.
E, last but not least, Main Street é um filme fascinante porque foi escrito por Horton Foote. Foi o último trabalho do grande escritor, dramaturgo e roteirista, e, nos créditos finais, os produtores dedicam a obra a ele.
Conta-se a história de uma cidade que foi rica e hoje está definhando
O filme revela a que vem já nas primeiras imagens. Não há créditos iniciais. Vemos cenas em preto-e-branco, como de cinejornais, dos anos 40, 50 – uma cidade pequena, de interior, mas com muito comércio, muito movimento nas ruas. (Nos créditos finais, veremos que são cenas reais, de fato de cinejornais antigos, e não feitas agora para parecer de época.) Muda para cores, e vemos cenas da mesma cidade, agora decadente, moribunda – diversas lojas fechadas, quase nenhum movimento nas ruas centrais, na rua principal.
Está dito, com menos de três minutos de filme: veremos a história de uma cidade que a economia, por algum motivo, levou a um beco sem saída.
Main Street, o título original, tem, naturalmente, muito mais sentido para os americanos do que teria para nós a tradução literal, Rua Principal. Não temos, ao contrário deles, essa tradição de chamar a rua principal das pequenas cidades de Rua Principal. E Main Street é mais do que simplesmente Rua Principal: é o equivalente a trabalho, à economia promovida pelos empreendedores, comerciantes, lojistas, o setor de serviços, todos juntos – a Main Street é o próprio significado da economia capitalista, os pequenos negócios, os pequenos empresários que criam empregos, o oposto de Wall Street, o símbolo das finanças, dos grandes bancos, do grande capital.
O cinema americano tem uma tradição centenária de defender a Main Street contra Wall Streeet, de tomar o lado dos pequenos empresários e dos trabalhadores contra o grande capital, as grandes corporações.
No último roteiro que escreveu na vida, o grande Horton Foote mostra a decadência de uma cidade que teve seus dias gloriosos, e agora está em declínio, quase à beira da morte – não há mais empregos, não há mais oportunidades.
A trama vai girar em torno de três famílias daquela cidade, Durham, na Carolina do Norte – e de um forasteiro, o texano interpretado pelo inglesérrimo Colin Firth.
Uma velha senhora que já foi rica, uma jovem que quer ir embora…
Georgiana Carr (o papel de Ellen Burstyn, aos 78 anos de idade – e ela, à esquerda na foto acima, está fantástica, maravilhosa) é o retrato do que restou dos tempos em Durham era uma cidade ativa, rica. Seu pai ganhou muito dinheiro com o tabaco – a Corolina do Norte foi uma das maiores produtores de tabaco dos Estados Unidos até os anos 60. Deixou para ela uma casa gloriosa, que ele construiu em 1923 e na qual Georgina nasceu e sempre viveu, e um grande, gigantesco armazém, hoje vazio. Na primeira sequência em que aparece, Georgina está mostrando a casa para um corretor de imóveis, Crosby (Reid Dalton), e contando histórias dos velhos e bons tempos.
Georgina pensava em vender a casa – a manutenção é cara, há os impostos. Mas naquele mesmo dia havia aparecido um texano e alugado o armazém por seis meses; com o dinheiro, ela poderia saldar algumas dívidas, e então agora não está segura de que queira mesmo vender a casa.
Georgina não tem filhos. Sua única parente, a pessoa que a ajuda em tudo, é sua sobrinha Willa (Patricia Clarkson), ela também sem filhos, divorciada, solitária, um tanto amarga.
A terceira habitante da cidade que é apresentada no início do filme ao espectador é a jovem Mary Saunders (Amber Tamblyn, na foto abaixo). Mary encontrou um emprego num escritório de advocacia em Raleigh, a capital da Carolina do Norte, próxima de Durham. O patrão, o advogado, paquera Mary – mas, quando ela descobre que ele, ao contrário do que dizia, é casado e tem filhos, o emprego vai embora pelo ralo, e Mary faz então planos para deixar a cidade que não tem oportunidade alguma, mudar-se para uma cidade maior, para profunda tristeza de sua mãe e seu padrasto – e também de Harris (o papel de Orlando Bloom), o namorado dos tempos de escola que sempre foi apaixonado pela moça.
Harris é o quarto protagonista da história. Trabalha como policial da cidade, e estuda Direito à noite, na esperança de melhorar de vida. A mãe dele, a sra. Parker (Margo Martindale), não o incentiva muito. Acha que o estudo o deixa cansado demais, e não consegue ver futuro num curso feito em escola sem nome, sem tradição.
No armazém antes vazio, uma grande quantidade de lixo tóxico
Uma velha que já foi rica e sua sobrinha já de meia idade, uma jovem que não tem perspectiva e quer sair dali, um rapaz que tenta melhorar de vida apesar de todas as dificuldades.
E o forasteiro. É em torno dessas cinco personagens que se desenvolve a trama.
A trama é simples, e até bastante previsível, como são previsíveis muitas coisas na vida.
O forasteiro, o texano Gus Leroy, até que tentou explicar para a Georgina para que ele queria alugar o grande armazém, mas a idosa senhora nem quis saber. Fechou logo o negócio – seis meses de aluguel, pagos em dinheiro, adiantados.
O armazém está sendo usado para guardar uma grande quantidade de recipientes lacrados contendo o que Leroy chama de “material de risco” – no original, “canister of hazardous waste”. Não se revelará exatamente o que é esse material de risco, resíduos de risco, mas não é necessário: sabe-se que são resíduos químicos, altamente tóxicos.
Leroy não faz nada escondido, nem a rigor fora da lei. Depois que aluga o armazém e coloca lá os tais recipientes de material de risco, procura o prefeito, se apresenta, explica o que faz a empresa para a qual trabalha – exatamente isso, o descarte de resíduos. Os recipientes estão lacrados, seguindo todas as normas federais – nenhuma legislação ambiental está sendo infringida.
No Texas, ele explica, sua empresa criou um local para depositar esse material numa pequena cidade que estava morrendo, onde não havia mais empregos; a companhia investiu lá, criou postos de trabalho, hoje praticamente não há desemprego. E a empresa quer fazer a mesma coisa em Durham, se a Prefeitura e a Câmara Municipal concordarem.
Ao saber do que está sendo guardado no armazém, Willa se assusta, assim como Georgiana. Willa demonstra para a velha tia que o melhor que ela tem a fazer é cancelar o contrato e devolver o dinheiro pago antecipadamente pelo aluguel – só que boa parte do dinheiro já havia sido gasto para que Georgiana pagasse suas dívidas.
O filme não mostra saídas, não filosofa, não prega – mostra a realidade
É, como se vê, uma pequena parábola sobre o capitalismo, sobre a forma como age a economia, sobre as mudanças que ocorrem nas regiões. Ali, no caso específico, Durham enfrenta esta sinuca de bico: ou aceita o risco de um eventual grave acidente ambiental mas passa a ter empregos, ou fica livre do risco e continua morrendo.
A história não pretende propor soluções, apontar saídas. Apenas mostra a realidade: a sociedade industrial cria lixo que pode causar tragédias ambientais. Em algum lugar esse lixo tem que ser armazenado. Os ciclos econômicos vão e vêm, chegam e passam – cidades antes prósperas com a indústria do tabaco, por exemplo morrem, como quase morreram cidades do Vale do Paraíba quando acabou o ciclo do café, o tema do livro Cidades Mortas, de Monteiro Lobato, ou como estavam morrendo cidades que antes viviam da mineração no Meio Oeste americano, e que Bob Dylan descreve com uma dureza impressionante em “North Country Blues”
Horton Foote não apresenta saídas – não filosofa, não prega. Mostra uma realidade. O esvaziamento econômico de Durham – exemplo de tragédia que acontece em todos os lugares – é um dado da realidade, como o câncer, a aids, a dor de dente, o enfarte. Sempre me surpreendo ao ver as passeatas, as demonstrações de rua contra a globalização, como se fosse possível todas as nações do mundo parar para pensar, globalmente, e decidir: fica cancelada, fica revogada a globalização. Poderiam também fazer passeatas para que ficassem cancelados o câncer, a aids, a lei da gravidade, a lei da oferta e da procura, o tsunami, a rotação da Terra.
Mas aí tergiversei.
Um grande, venerando autor de peças de teatro e roteiros de filmes
Albert Horton Foote, Jr. morreu em março de 2009, um ano antes, portanto, da estréia de Main Street nos cinemas. Viveu muito, 93 anos – nasceu em Wharton, Texas, em 1916. Quando jovem, tentou as carreiras de ator de teatro e escritor, até perceber que era melhor mesmo no texto. Escreveu dezenas de peças teatrais e outros tantos roteiros cinematográficos. Em 1962, fez a adaptação para o cinema do maravilhoso livro de Harper Lee, To Kill a Mockingbird, no Brasil O Sol é Para Todos, que lhe deu seu primeiro Oscar. Em 1984, voltaria a ganhar o Oscar de melhor roteiro – desta vez, de roteiro original – por A Força do Carinho/Tender Mercies, sobre um cantor country, interpretado por Robert Duvall. (Foi o autor que indicou para o diretor Robert Mulligan o então jovem ator Duval para o papel de Bo Radley em O Sol é para Todos. Por A Força do Carinho, Duvall levou o Oscar.)
Escreveu também para a televisão: A Trip to Bountiful foi primeiramente uma produção da NBC, em 1953, e só depois uma peça na Broadway, com as mesmas atrizes da TV, Lilian Gish e Eva Marie Saint. Viraria filme apenas em 1985 – no Brasil, O Regresso para Bountiful –, com Geraldine Page; o roteiro teve indicação ao Oscar, Geraldine Page levou a estatueta como melhor atriz.
Autor de belas histórias para a TV, o teatro e o cinema, adaptador de histórias de outros escritores para o cinema (é dele o roteiro de Ratos e Homens, de 1992, baseado no clássico de John Steinbeck), teve um de seus textos adaptados para o cinema pela dramaturga Lillian Hellmann – a peça The Chase, que Arthur Penn filmou em 1966 (no Brasil, Caçada Humana), um retrato apavorante da violência, da mesquinhez e da hipocrisia da sociedade em uma pequena cidade do Texas.
Teve sua obra fartamente reconhecida com prêmios. Além dos dois Oscars e mais 11 prêmios como roteirista de cinema, recebeu o Pulizer em 1995 pela sua peça The Young Man From Atlanta, e em 2000 foi agraciado com a National Medal of Arts, o maior galardão oficial americano para um artista.
A atriz Tess Harper, a protagonista feminina de A Força do Carinho, definiu Horton Foote como “o Tchékov americano”: “Se ele não tiver estudado os russos, é a reencarnação deles. É um homem simples que cria personagens simples”. O próprio Foote se definiu assim: “Eu sei que as pessoas acham que eu tenho um certo estilo, mas acho que estilo é como a cor dos olhos. A gente não escolhe”.
É absolutamente fantástico que ele estivesse com 92 anos quando escreveu o roteiro deste Main Street. Que maravilha viver tanto, escrever tanto para todos os meios, ganhar tantos prêmios e, no fim da vida, entregar um texto que é a perfeição da simplicidade.
Bom Demais Pra Ser Verdade/Main Street
De John Doyle, EUA, 2010
Com Ellen Burstyn (Georgiana Carr), Colin Firth (Gus Leroy), Patricia Clarkson (Willa), Orlando Bloom (Harris Parker), Amber Tamblyn (Mary Saunders), Margo Martindale (Mrs. Parker), Reid Dalton (Crosby Gage), Andrew McCarthy (Howard Mercer)
Argumento e roteiro Horton Foote
Fotografia Donald McAlpine
Música Patrick Doyle
Produção 1984 Films, Annapurna Productions. Blua-ray e DVD Paris Filmes.
Cor, 92 min
***
Este filme parece um mistério; no IMDB está isto: http://www.imdb.com/title/tt1365483/ e na Wikipedia isto: http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Street_(film)
Dá para pensar que o filme só passou no Brasil, não é?
Os dois links apontados pelo José Luís levam ao mesmo filme, este sobre o qual escrevi o comentário. O filme teve de fato problemas para a exibição nos Estados Unidos, exatamente porque é sério, e foge de qualquer charme ou glamour. No Brasil, foi lançado diretamente em DVD, sem exibição no circuito comercial.
Sérgio
eu numca assisti o filme mas parece ser legal
Filme adorável, não entendo por que é tão menosprezado.