Dor e Glória, o filme que Pedro Almodóvar fez no ano em que completou 70 de vida, reflete bem a passagem do tempo, a idade. O grande realizador está ficando velho – o que é um truísmo, uma obviedade, uma consequência da lei da natureza. Um tanto surpreendente é que o filme mostra um Almodóvar suave, doce, cheio de carinho com seus personagens, e até mesmo positivo, esperançoso, believer.
Dor e Glória, sua versão personalíssima (como tudo o que faz) do Oito e Meio de Fellini, é uma jornada de redenção.
Com uma dose de ironia, daria para dizer que o Almodóvar 2019 tem uma visão hollywoodiana da vida. Não é nos filmes de Hollywood que as pessoas ficam melhores, mais sábias, de coração mais doce, e se redimem?
Vai aí, no parágrafo acima, um pouco de brincadeira. Mas a verdade é que o Almodóvar 2019 tem pouco a ver com a irreverência, a rebeldia, os exageros, o atrevimento, a iconoclastia que marcaram os filmes do cineasta dos anos 80 e 90.
“Os personagens de meus filmes são assassinos, estupradores, e assim por diante, mas eu não os trato como criminosos, eu falo sobre a humanidade deles”, disse Almodóvar, como está citado no livro 501 Movie Directors. Segundo o livro, nos filmes do diretor espanhol o conceito de “garoto encontra garota pode ser redefinido em termos de tentativa de estupro numa história envolvendo serial killers, fanatismo religioso e um aprendiz de toureiro que desmaia ao ver sangue”.
“Apaixonado pelo brega, pelas cores berrantes, por tudo que era atrevido (e um pouco gay), a princípio parecia apenas querer chocar e no máximo brincar com as hipocrisias da sociedade”, diz dele Rubens Ewald Filho em seu Dicionário de Cineastas.
Seus filmes eram “quase todos marcados por uma sensualidade desenfreada”, dizia Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores.
Pois é. Quem diria: em Dor e Glória, não há um assassinato, sequer uma morte violenta. Não há estupro, diferentemente, por exemplo, do não tão distante A Pele que Habito, de 2011. As cores continuam exuberantes, há sexo, é claro – a visão frontal de um homem nu, aliada ao calor do verão, provoca até um desmaio. Mas o personagem central chega a recusar a oferta de uma noite de sexo, por entender que seria melhor assim, naquelas determinadas circunstâncias. E um personagem importante – para o horror e a fúria dos fanáticos do LGBTismo – abandona a homossexualidade e se assume como hétero.
Um cineasta abatido por doenças, sem ânimo
Assim como o Guido Anselmi interpretado por Marcello Mastroianni no Oito e Meia de Fellini, Salvador Mallo – o protagonista da história, interpretado por um Antonio Banderas contido, nada careteiro – é um cineasta num momento de crise, que mergulha em suas memórias, em suas lembranças do passado.
A rigor, a rigor, se eu não estiver muito enganado, as semelhanças entre o Oito e Meio de Fellini e o de Almodóvar terminam aí.
A Guido Anselmi faltavam idéias para um novo filme; a Salvador Mallo falta praticamente tudo: disposição, força, energia e, sobretudo saúde. Salvador sofre constantemente de dores nas costas, dores musculares; engasga-se a todo momento, parece que vai perder a respiração, que vai ter um troço sério. Tem insônia e sofre de depressão. Só quando o filme já se encaminha para o fim o espectador ficará sabendo que ele ainda não se refez da perda da mãe, morta dois anos antes da época em que se passa a ação.
Toma um coquetel de medicamentos – mas eles já não parecem mais fazer tanto efeito, e as dores são constantes.
Pior ainda: tomado pelo desânimo, pelo desencanto, Salvador sequer toma coragem para consultar seu médico, o competente dr. Galindo (Pedro Casablanc).
Não se sente em condições físicas de dirigir um filme. Sequer escrever tem conseguido.
É assim que ele nos é apresentado, no início da narrativa.
Mas há algo interessante acontecendo: a Filmoteca tinha acabado de restaurar Sabor, seu filme feito 32 anos antes, um dos mais importantes da sua carreira, e estava planejando relançá-lo. Haviam pedido que, na sessão de relançamento, ele estivesse presente, para responder a perguntas do público. Ele gostaria de ir com o ator central do filme, Alberto Crespo (o papel de Asier Etxeandia, na foto abaixo). Só que Salvador e Alberto não se falavam exatamente desde o lançamento original do filme, 32 anos antes. Haviam discutido e brigado – Salvador achava que Alberto não havia interpretado o personagem do jeito que ele o tinha concebido.
Por um desses acasos de que é feita a vida, Salvador se encontra com uma antiga conhecida, a atriz Zulema (o papel da sempre marcante Cecilia Roth). E Zulema passa para Salvador o telefone e o endereço de Alberto – depois de uma temporada fora da Espanha, no México, fazendo novelas, o ator estava morando em El Escorial, um município próximo a Madri. Salvador não telefona antes: vai direto até a casa do ex-amigo – talvez ex-amante. Provavelmente ex-amante, embora isso não fique expresso, apenas sugerido.
Alberto fica absolutamente surpreso com a chegada inesperada de Salvador. Mas conversam, vão se reencontrando.
Desde sempre Alberto era viciado em heroína. No meio da conversa, diz que vai se chapar. E, surpreendentemente, Salvador diz que vai querer experimentar. Nunca havia provado a droga. Prova pela primeira vez com o amigo que não via fazia 32 anos – e a droga o deixa relaxado, sem sentir dor. Ele até dá um cochilo.
Passará a usar a droga a partir daí.
Vai se falar muito do filme Sabor, feito 32 anos antes.
Não resisto à tentação de fazer a continha básica. Se Salvador Mallo é o alter ego de Pedro Almodóvar, qual é o filme de Pedro Almodóvar que corresponderia ao fictício Sabor? 2019 menos 32, 1987 – o ano de A Lei do Desejo. Uma daquelas histórias picantes, esquisitas, doidas do jovem cineasta que deslumbrava a nova Espanha e o mundo todo: o diretor de cinema Pablo (Eusebio Poncela), ama Juan (Miguel Molina), que não o ama, e acaba tendo um caso com Antonio (Antonio Banderas), que morre de ciúme de Juan; e aí Tina (Carmen Maura), a irmã transexual de Pablo, é feita refém por Antonio, que se mostra um homicida violento.
La Ley del Deseo parece sem dúvida ser um filme especial para seu realizador. Ele deu o nome de El Deseo à produtora que criou com seu irmão Agustin Almodóvar, e que tem sido a responsável pela produção todos os seus filmes. E é El Primer Deseo o nome de um outro filme que aparecerá dentro de Dor e Glória.
Duas histórias simultâneas, uma hoje, outra no passado
Dor e Glória vai nos apresentando duas histórias, simultaneamente, concomitantemente. A de Salvador agora, hoje, a partir do seu encontro com Zulema, e depois seu encontro com Alberto, o início de seu vício com heroína – e também, em paralelo, a história do garoto Salvador, ali pelo final dos anos 50, início dos 60.
Parece que é a história real de Salvador, contada em flashbacks, ao mesmo tempo em que vamos vendo o Salvador de hoje. Tudo, absolutamente tudo nos indica que é a história de Salvador contada em flashbacks. Só que não é exatamente isso: como este é um filme de Pedro Almodóvar, haverá uma surpresa no finalzinho, bem no finalzinho. Um twist, uma reviravolta – embora não seja exatamente, propriamente um twist, uma reviravolta. É, a rigor, um pulo do gato, como a Mary definiu com perfeição.
A primeira das duas histórias que vemos, a que aparece primeiro na tela – logo depois de uma sequência sem palavras que apenas mostra o Salvador de hoje mergulhado em uma piscina –, é a de Salvador menininho aí com uns 6 anos.
Revi o começo do filme, para checar algumas coisas – e, quando se revê, fica muito nítido, muito claro que aquela primeira sequência em que vemos Salvador menininho e sua mãe, Jacinta, interpretada por aquela Penélope Cruz toda, lavando roupa com três amigas à beira de um riacho de águas límpidas, as quatro cantando, alegres, felizes, e Salvador menininho lindo e sorrindo muito… Ah, aquilo tudo é bonito demais! Parece uma idealização. Um sonho. Um filme.
Me pareceu que o garoto Salvador é interpretado pelo menos por dois atores mirins, um aí mais novinho, tipo 6 anos, outro um pouco mais velho, tipo 10 anos de idade. Só consegui, no entanto, ver o nome de um ator que faz Salvador criança – Asier Flores.
O garoto Salvador é bastante esperto, especialmente inteligente. Aprende a ler e a fazer as contas básicas bem cedo. Os acasos da vida farão com que – por iniciativa de Jacinta – ele ensine a ler e a escrever um jovem pedreiro, Eduardo (César Vicente), que, em troca, executa melhorias na casa da família, situada abaixo do nível do solo, num vilarejo do interior.
Uma casa abaixo do nível do solo. Uma caverna, diz Jacinta, triste, frustrada, quando o marido, Venancio (Raúl Arévalo), mostra a ela o imóvel que conseguiu alugar. Uma catacumba – como as dos cristãos em Roma, 2 mil anos atrás…
Não há filme de Almodóvar sem falar em religião, cristianismo, padres.
O terceiro filme de uma trilogia autobiográfica
Para prosseguir nos estudos, uma criança de família pobre, ali no interior da Espanha no final dos anos 50, início dos 60, sob a ditadura franquista, só tinha uma opção: o seminário. Jacinta quer pôr Salvador no seminário – e o menino repete à exaustão: – “Yo no quiero ser cura!”
Não queria de jeito nenhum ser padre, mas foi para o seminário. Lá, por ter a voz mais afinada da sua turma, foi escolhido o solista do coral. A sequência em que um padre pianista checa os dons vocais dos garotos, ainda no início do filme, é gostosa – uma oportunidade para Agustin Almodóvar fazer uma participação no filme do irmão. Agustin, o homem da produtora El Deseo, sempre faz uma participação assim, quase à la Hitchcock, nos filmes do irmão.
Padres, seminário. O tema – que aqui aparece um tanto en passant – é o centro do Almodóvar 2004, Má Educação. Os críticos dizem que este Dor e Glória a rigor é o terceiro filme de uma trilogia autobiográfica iniciada com A Lei do Desejo e que prosseguiu com Má Educação.
“Este filme foi um alívio para mim, mas é delicadíssimo brincar com a sua própria vida e convertê-la em ficção”, disse Almodóvar em entrevista no tapete vermelho da pré-estreia de Dor e Glória em Madri, em março de 2019.
Ao fundo, canções de Dolores Duran e Pino Donaggio
Pedro Almodóvar é um apaixonado por belas canções, e por isso é sempre bom prestar atenção às músicas que ele coloca em seus filmes. Sei lá se as escolhe sozinho ou com seu fiel e habitual parceiro Alberto Iglesias, autor das trilhas sonoras da maioria de seus filmes, mas o fato é que são sempre preciosas.
É fã da música popular brasileira. No meio do drama denso que é Fale com Ela (2002), inventou uma sequência para que Caetano Veloso cantasse em um bar “Cucurrucucú Paloma”. Neste Dor e Glória, no meio de um espetáculo teatral, um monólogo com o ator Alberto Crespo, escrito por Salvador Mallo, fala-se de tempos na cidade do México, em que se ouvia Chavela Vargas cantando “La noche de mi amor’ – e, no teatro, o som toca o início da canção. Chavela Vargas (1919-2012), nascida na Costa Rica e radicada no México, onde foi extremamente popular, canta com vigor a canção cujo título original é “A Noite de Meu Bem”. Lá do céu, Dolores Duran seguramente aplaudiu e agradeceu pela gentil homenagem.
Naquela sequência idílica do comecinho do filme, em que a mãe de Salvador, Jacinta, lava a roupa e canta com as amigas, a voz da própria Penélope Cruz faz dueto com a de Rosalia, numa canção tradicional espanhola (de Juan Solano Pedrero e Rafael de León), “A tu vera”. Eu não tinha a menor idéia, mas essa Rosalía, que faz aquela rápida participação especial como uma das lavadeiras da beira do rio, é uma cantora famosa, vencedora de um Grammy latino. Rosalia, aprendo, faz uma mistura do flamenco tradicional com a moderna música pop espanhola.
Há uma outra canção fascinante, que ouvimos numa sequência importante, em que o jovem pedreiro Eduardo começa a desenhar o garoto Salvador. Demorei um pouquinho para identificá-la, porque é cantada em espanhol, pela italiana Mina – e Mina até aparece em um antiquíssimo clipe. É “Come sinfonia”, que Pino Donaggio compôs e gravou no começo dos anos 60. Seguramente o garoto Pedro Almodóvar a ouviu quando tinha aí uns 12, 13 anos, assim como o garoto Sérgio Vaz ouviu em Belo Horizonte. (São da mesma idade, os dois – o espanhol é de final de 1949, o outro é do começo de 1950.)
Uma montanha de prêmios e indicações
Este aqui é o segundo filme de Almodóvar em que trabalham Antonio Banderas e Penélope Cruz – o primeiro foi Os Amantes Passageiros, de 2013. Só que em Dor e Glória não há uma única cena em que os dois estejam juntos, já que Penélope faz a mãe de Salvador quando ele era menino.
Quando idosa, Jacinta é interpretada por Julieta Serrano. A curiosidade é que esta foi a terceira vez em que Julieta Serrano interpreta a mãe do personagem de Banderas em filme de Almodóvar, depois de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Matador (1986).
Todos da mesma panelinha. Este filme é o sexto do diretor com Penélope Cruz, e o oitavo com Antonio Banderas.
Até o fim de fevereiro de 2020, Dor e Glória havia vencido 50 prêmios, fora outras 141 indicações. Entre as indicações mais prestigiosas estavam duas ao Oscar, nas categorias de melhor filme internacional, novo nome do velho prêmio de melhor filme estrangeiro, e melhor ator para Banderas, mais as indicações – exatamente nessas mesmas categorias – ao Globo de Ouro. Ao Bafta, o Oscar britânico, o filme também foi indicado na categoria melhor filme não em língua inglesa – perdeu para o sul-coreano Parasita tanto no Bafta quanto no Oscar. Não levou nenhum desses prêmios.
O filme havia sido exibido no Festival de Cannes de 2019, na mostra competitiva. Antonio Banderas venceu como melhor ator e Alberto Iglesias venceu pela trilha sonora.
Atenção: aqui vem spoiler. Atenção, cuidado.
Fiquei pensando, depois de ver Dor e Glória, que Pedro Almodóvar – além de todas as demais qualidades – pertence àquele clube exclusivíssimo dos cineastas-autores, os que bolam as histórias que filmam. E ao ainda mais exclusivérrimo clube dos cineastas-autores de produção vasta.
Quem mais escrevia ou escreve as histórias originais de seus filmes, ou ao menos de muitos deles? Além de Almodóvar, só consigo pensar em Satyajit Ray, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e Woody Allen.
Meu Deus, que time!
Que fascinante autor de histórias é esse sujeito. Suas histórias são sempre surpreendentes, fascinantes. Há sempre surpresas, reviravoltas, pulos do gato.
Confesso que a história de Dor e Glória não estava me parecendo nada muito especial, enquanto víamos o filme, até ali um pouco mais da metade de seus 113 minutos. Me parecia um bom filme, claro – mas não à altura de tantos outros filmes de Almodóvar.
Ai, quando estamos com exatamente 65 minutos, há uma centelha de brilho. Tcham tcham tcham tcham… Eis aí o brilho, pensei.
E aqui eu pediria aos eventuais leitores que ainda não viram Dor e Glória para parar por aqui. Não devem prosseguir a leitura, porque vou revelar spoilers.
Não vou relatar em detalhes o que acontece ali. Não teria sentido, seria spoiler demais da conta. Basta dizer, creio, que é ali aos 65 minutos que surge um personagem novo na história – um homem chamado Federico, interpretado pelo ator argentino Leonardo Sbaraglia.
Já o pulo do gato do finalzinho, embora seja bem no finalzinho, creio que dá para contar, já que foi dado o aviso de que viria spoiler.
A última sequência do filme revela que o que tínhamos visto do passado, os acontecimentos da vida de Salvador quando garoto, não eram exatamente flashbacks, como Almodóvar havia nos feito crer. Não eram propriamente flashbacks – eram outra coisa.
O pulo do gato. Outra centelha de brilho, de gênio.
Agora, aos 70 anos de idade, não mais um garoto apaixonado por tudo que é atrevido, irreverente, rebelde, exagerado, iconoclasta, Almodóvar está mais doce, suave. Ainda mais carinhoso com seus personagens – e esperançoso, positivo, believer. Mas sempre brilhante, genial.
Anotação em janeiro de 2020, com complemento em fevereiro.
Dor e Glória/Dolor y Gloria
De Pedro Almodóvar, Espanha, 2019
Com Antonio Banderas (Salvador Mallo)
e Asier Etxeandia (Alberto Crespo), Leonardo Sbaraglia (Federico Delgado), Nora Navas (Mercedes, a amiga de Salvador), Julieta Serrano (Jacinta, a mãe), Penélope Cruz (Jacinta, a mãe, quando jovem), Asier Flores (Salvador criança), César Vicente (Eduardo, o pedreiro), Cecilia Roth (Zulema, a atriz conhecida de Salvador), Susi Sánchez (Beata, amiga de Jacinta jovem), Raúl Arévalo (Venancio Mallo, o pai de Salvador), Pedro Casablanc (Dr. A. Galindo, o médico), Julián López (o apresentador), Eva Martín (a radiologista), Sara Sierra (Conchita)
Argumento e roteiro Pedro Almodóvar
Fotografia José Luiw Alcaine
Música Alberto Iglesias
Montagem Teeresa Font
Casting Evca Leira e Yolanda Serrano
Produção Agustin Almodóvar, El Deseo, Radio Televisión Española, Canal+, Ciné +, El Primer Deseo.
Cor, 113 min (1h53)
***
Ótima critica sobre um ótimo filme.
Realmente a cena final do filme é incrivelmente satisfatória. Me lembrou um pouco a cena final de A montanha Sagrada de Alejandro Jodorowsky. Uma sacada de génio mesmo, brincar sobre o seu maior amor, que é o cinema.