O Cidadão Ilustre, produção argentina de 2016 com apoio da pátria-mãe Espanha, como são muitos dos filmes dos hermanos nas últimas décadas, é uma daquelas coisas que fazem o espectador rir demais – para, ao final, o riso dar lugar a um gosto terrivelmente amargo.
Não falta quem o classifique como comédia de humor negro.
Tenho um imenso, terrível problema com o conceito de comédia de humor negro. Não consigo compreender o conceito, não sou capaz de me sintonizar como obras que se ajustem perfeitamente a ele. Não tenho a capacidade de enxergar graça alguma no que as pessoas chamam de humor negro.
Com O Cidadão Ilustre, no entanto, não foi nada disso que aconteceu. Dei boas risadas, gargalhadas até, durante boa parte de seus 118 minutos, em que o filme é a mais pura e gostosa comédia. Até chegar aos momentos finais – em que tudo fica negro, pesado, horroroso, pavoroso e, na minha opinião, sem qualquer tipo de humor.
O Cidadão Ilustre é um filme muitíssimo bem realizado – como tantos outros do cinema de nuestos hermanos, aquellos hijos de puta que saben muy bien como hacer buen films.
É um filme muitíssimo bem realizado, é interessante, é forte, é marcante. Mas seu personagem central é também demasiadamente metido a besta para o meu gosto – e, ao fim e ao cabo, o filme apresenta uma moral com a qual, com a qual…
Não é apenas que eu não concorde.
O filme apresenta uma moral da história que é o oposto daquilo em que acredito na vida.
Para O Cidadão Ilustre, a imensa maioria dos seres humanos é formada por idiotas, imbecis, babacas, violentos, egoístas, pequenos, diminutos.
Umas poucas pessoas, alguns abençoados, alguns poucos, alguns happy few – os artistas, em especial – são geniais, maravilhosos.
O Cidadão Ilustre defende uma visão de mundo – com talento, com um belo cinema, com belíssimos frases, impressionantes diálogos – que é exatamente o contrário da minha.
O Cidadão Ilustre leva quase 2 horas para nos demonstrar que só prestam na vida os artistas, os geniais artistas que sabem que este mundo nosso é uma merda absoluta e lutam por um mundo melhor do que este que está aí. Que todo o resto da humanidade é uma merda.
O que eu acho da vida é exatamente o oposto do que o filme diz. O que eu acho é que a imensa maioria das pessoas é boa – gente de metrópoles ou gente de lugarejos pequetitos, gente que se deu maravilhosamente bem na vida ou gente simples, humilde, gente que tem um monte de títulos acadêmicos e gente que não tem qualquer um deles.
A pessoa de maior ego que a ficção já criou
Brinca-se que os argentinos são italianos que se crêem ingleses.
Brinca-se que os argentinos, quando querem suicidar, pulam do alto de seu ego.
Brinca-se que, quando há relâmpagos, os argentinos dizem uns para os outros: – “Olha lá Deus tirando fotos de nós!”
Daniel Mantovani, o protagonista da história, muito bem interpretado por Oscar Martínez, se enquadra com perfeição nessa imagem brincalhona (e, é claro, reducionista, primária) dos argentinos.
O cara é tão metido a besta que, na primeira sequência do filme, esnoba o Prêmio Nobel de Literatura, esnoba a Academia Sueca, esnoba os reis da Suécia.
Na cerimônia de gala preparada pela Academia Sueca e pelo cerimonial dos reis, Daniel Mantovani ensina ao mundo o que é a obra de arte, o que é o dever do artista:
– “Dois sentimentos me invadem ao receber o Prêmio Nobel de Literatura. Por um lado, me sinto lisonjeado. Muito lisonjeado. Mas por outro lado – e este é a amarga sensação que prevalece em mim –, tenho a convicção de que este tipo de reconhecimento unânime tem a ver, de maneira direta e inequívoca, com o ocaso de um artista. Esse prêmio revela que minha obra coincide com os gostos e as necessidades de jurados, especialistas, acadêmicos e reis. Evidentemente, eu sou o artista mais cômodo para vocês.”
(A câmara dos diretores de fotografia Mariano Cohn e Gastón Duprat, eles também os diretores do filme, focaliza neste momento, em plano americano, os atores que fazem os papéis dos monarcas suecos.)
– ”E essa comodidade tem muito pouco a ver com o espírito que toda obra de arte deve ter. O artista deve interpelar, sacudir. Por isso o meu pesar por minha canonização final como artista. A mais persistente das paixões, contudo, o mero orgulho, me conduz, hipocritamente, a agradecer a vocês por estabelecerem o fim de minha aventura criativa. Mas, por favor, não quero que pensem que os culpo ao dizer isso. Nada disso. Aqui há um único responsável. Eu mesmo. Muito obrigado.”
Uau, meu!
Não me lembro de nenhum ser humano – real ou criado pela imaginação dos artistas – mais cheio de si, com mais rei na barriga, mais absolutamente certo de sua gigantesca genialidade do que esse senhor Daniel Mantovani, criado por Andrés Duprat, o autor do roteiro original deste O Cidadão Ilustre.
Nem Alfred Hitchcock e Federico Fellini, os maiores marqueteiros de si mesmo, os maiores divulgadores de sua própria genialidade que o cinema já conheceu seriam capazes de tamanha empáfia, tamanha arrogância!
Fiquei me lembrando aqui, enquanto degravava o discurso de Daniel Matovani – interpretado com brilho por Oscar Martínez – naquele sujeito que ganhou de verdade o Prêmio Nobel de Literatura, e fez muito douto acadêmico e crítico metido a besta menosprezar a Academia Sueca por ter dado o prêmio a um cantorzinho de música popular. Bob Dylan, o mais elogiado e querido dos poetas da música, costumava responder, quando o paparicavam muito, em meados dos anos 60: – “‘I think of myself more as a song-and-dance man.’ Penso em mim mesmo como um homem de canção-e-dança.
Já o fictício laureado Daniel Mantovani se acha um gênio superior a mais de 99,99% da humanidade.
Nos primeiros momentos em Salas, ele parece até simpático
O roteiro inteligente, esperto, bem construído de Andrés Duprat coloca bem rapidamente os fatos básicos da história de O Cidadão Ilustre diante do espectador. Daniel Mantovani havia nascido numa cidade bem pequena do interiorzão da Argentina, Salas, mais de 700 quilômetros ao Sul de Buenos Aires. Deixara su pueblo natal aos 20 anos, mudara-se para a Espanha – e lá, com contos e romances que falavam de personagens bem parecidos com pessoas reais de Salas, havia conquistado fama, respeito e fortuna. Morava na Espanha havia já uns 40 anos quando ganhou o Nobel.
Depois dessa sequência de abertura passada em Estocolmo, na cerimônia de entrega do Nobel, um letreiro nos avisa que cinco anos se passaram. Vemos Daniel em sua mansão nos arredores de Barcelona com sua competente secretária-executiva Nuria (Nora Navas, na foto acima). Ficamos sabendo que, desde o Nobel, ele não escreveu mais nada. E que ele permanecia, mesmo cinco anos sem escrever nada, sendo convidado para dar palestras nas mais prestigiosas universidades do mundo todo – e recusava cada convite. Cada um deles, fosse de universidade japonesa, fosse de Harvard, de Yale, do que fosse.
Entre esses convites todos, chega um da Prefeitura de Salas, convidando-o para uma visita de alguns dias, em que receberia diversas homenagens.
Tudo o que Daniel Mantovani havia escrito na vida era sobre pessoas de Salas, de sua pequena cidadezinha.
Para absoluta surpresa da super-secretária Nuria, Daniel diz que aceita.
Quando o filme está com 13 de seus 118 minutos, Daniel está num avião, atravessando o Atlântico e o Equador.
Só nos 5 minutos finais ele estará de volta à Europa. Ou seja: em sua imensa maior parte, Um Cidadão Ilustre mostra Daniel Montovani de volta a sua cidadezinha, su pueblo.
Não creio que seja o caso de avançar mais no relato da trama – mas só acho necessário registrar dois pontos fundamentais. O primeiro: o Daniel que chega a Salas tem muito pouco a ver com o artista metido, emproado, rempli de soi-même, rei na barriga, cheio de frescura, que a própria secretária Nuria conhecia. Em sua carta para o prefeito de Salas, Cacho (Manuel Vicente), em que informava que o cidadão ilustre aceitava o convite, Nuria estabelecia uma série de condições: nada de fotos, nada de selfies, nada de abraços, nada disso, nada daquilo…
Pois o cara chega lá na cidade que havia abandonado mais de 40 anos antes – e se deixa fotografar, abraçar…
Nos seus primeiros momentos em Salas, Daniel Mantovani se mostra quase um ser humano simples, cordato, simpático!
O segundo ponto fundamental: as situações que vão se apresentando diante de Daniel – e portanto diante do espectador – são curiosas, interessantes, engraçadas, às vezes engraçadérrimas, hilariantes. Só quando o filme vai se aproximando do fim é que o clima vai mudando e as risadas vão dando lugar àquele gosto amargo da tragédia humana.
Só para exemplificar como há bom humor no filme: quando o prefeito Cacho introduz Daniel a um grupo de cidadãos de Salas, ele diz:
– “Que orgulho para nós, argentinos, não? Diego, o Papa, a rainha da Holanda, Messi… E agora você, Daniel querido!”
Depois ele chama todo mundo de ignorante
O discurso que faz bem mais tarde, quando a temporada em sua cidade natal está terminando, é duro. E é o que me pega como um soco de Muhammad Ali no que penso na vida:
– “Como observador da comédia humana, sinto que é minha obrigação tentar fazer deste mundo um lugar menos horrível. Sei que é uma batalha perdida, mas isso não significa que vou deixar de lutar. Vocês continuem assim. Que aqui nada mude, nunca. Continuem sendo uma sociedade hipócrita e estupidamente orgulhosa de sua ignorância e brutalidade. Lamento ter causado tantos transtornos. Continuem com suas vidas tranquilas. Continuem fazendo de Salas este paraíso cativante.”
Um artista incensado no mundo inteiro, o sujeito mais cheio de si que já passou por uma tela de cinema. Desprezando as pessoas simples, como Irene, a namorada dos tempos da juventude (o papel de Andrea Frigerio, na foto abaixo).
Prefiro mil vezes, 200 mil vezes as pessoas simples.
Claro, há imbecis em Salas. Há imbecis em qualquer lugar.
Mas, exatamente ao contrário do que pensa esse lamentável Daniel Mantovani, os imbecis são minoria.
A imensa maioria das pessoas é boa.
Eles têm o papa, o Oscar… Só não têm o Nobel
Diego, o Papa, a rainha da Holanda, Messi… Nessa ordem de importância, segundo o prefeito Cacho, aquela figura.
Outro dia mesmo as redes estavam cheias de memes dizendo que a Argentina tem o Papa, tem Oscar e tem vacina – bem ao contrário de nosotros, los hermanos más pobres.
Eles só não têm o Nobel de Literatura – que, de resto, nós também não temos. Como Daniel Mantovani mesmo diz, Jorge Luís Borges não ganhou o Nobel. Nem Julio Cortázar.
Fiz a pesquisinha obrigatória, e, já que ela está feita, ponho aqui. Seis escritores da América Latina já ganharam o Nobel de Literatura. Pela ordem:
1945 – Gabriela Mistral (Chile, 1889-1957)
1967 – Miguel Ángel Asturias (Guatemala, 1899-1974)
1971 – Pablo Neruda (Chile, 1904-1973)
1982 – Gabriel García Márquez (Colômbia, 1927-2014)
1990 – Octavio Paz (México, 1914-1998)
2010 – Mario Vargas Llosa (Peru, 1936- )
O Cidadão Ilustre foi o escolhido pela Argentina para participar da corrida rumo ao Oscar – mas não chegou a ficar entre os indicados ao prêmio. Em festivais mundo afora, no entanto, recebeu 34 prêmios, fora outras 25 indicações.
Não me lembrava disso ao ver este O Cidadão Ilustre, mas já está no + de 50 Anos de Filmes uma anotação sobre outro filme dessa dupla de diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat: O Homem do Lado, de 2009, um bom filme, um drama que incomoda, deixa o espectador aflito, apreensivo, nervoso. Escrevi sobre ele:
“Mostra uma disputa entre dois vizinhos por algo que parece pequeno, um detalhe. A tensão, no entanto, vai se elevando, inexoravelmente, e sabemos o tempo todo que virá uma tragédia.
“É um filme extremamente bem realizado. Se não fosse por algumas coisinhas menores, devidas, sem dúvida, à juventude dos diretores – um excesso, o tempo todo, de close-ups, big close-ups, e um esticar um pouco demais a corda, o tempo de duração –, poderia ser um grande, magnífico filme.
“Os jovens diretores argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, eles próprios responsáveis pela direção de fotografia, mostram talento desde as primeiras imagens, os créditos iniciais.”
Foi muito bom ter visto esta anotação sobre o filme da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat feito sete anos antes deste aqui. Porque o que escrevi em 2012 realça as qualidades que vi neles já naquela época.
Como disse no início deste texto, O Cidadão Ilustre é, na minha opinião, um bom filme, muitíssimo bem realizado, interessante, forte, marcante. Não gosto do que o protagonista representa, da visão de mundo do protagonista, que acaba sendo a moral da história. Mas isso não tem a ver com o fato de que ele é um bom filme.
Anotação em janeiro de 2021
O Cidadão Ilustre/El Ciudadano Ilustre
De Gastón Duprat e Mariano Cohn, Argentina-Espanha, 2016
Com Oscar Martínez (Daniel Mantovani)
e Dady Brieva (Antonio, o amigo da juventude), Andrea Frigerio (Irene, a namorada da juventude), Nora Navas (Nuria, a secretária), Manuel Vicente (Cacho, o prefeito de Salas), Belén Chavanne (Julia, a jovem liberada até demais), Marcelo D’Andrea (Florencio Romero), Gustavo Garzón (Gerardo Palacios), Julián Larquier Tellarini (Conserje), Emma Rivera (Emilse), Nicolás de Tracy (Roque, o namorado de Julia), Daniel Kargieman (Renato Provicello), Alexis López Costa (o assistente do prefeito), Leonardo Murija (Mendez), Pedro Roth (o apresentador do Prêmio Nobel)
Argumento e roteiro Andrés Duprat
Fotografia Mariano Cohn, Gastón Duprat
Música Toni M. Mir
Montagem Jerônimo Carranza
Casting Javier Braier
Produção Arco Libre, Televisión Abierta, Magma Cine, A Contracorriente Films, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), Televisión Española (TVE), Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA)
Cor, 118 min (1h58)
Disponível na Netflix em 1/2021.
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