Uma das características do cinema argentino das últimas décadas é a qualidade das interpretações. Os detratores de nuestros hermanos costumam gozá-los dizendo que eles se acham ingleses – mas a verdade é que os danados conseguiram mesmo obter um padrão de qualidade dos atores invejável, admirável, quase britânico.
Não é, no entanto, o caso deste Perdida, co-produção Argentina-Espanha de 2018, exibida na Netflix com o título brasileiro de Desaparecida. Neste filme, as atuações não são boas. Não chegam a ser uma absoluta lástima, o horror dos horrores, como são algumas produções brasileiras dos últimos anos – mas estão longe do padrão geral do cinema argentino.
Na melhor das hipóteses, os atores parecem esforçados. Alguns são bastante ruins mesmo.
Além de não dominar a direção de atores, o diretor Alejandro Montiel, 47 anos no lançamento do filme, se mostra fascinado por formalismos. Vai depois se mostrar também apaixonado por cenas de luta, de grande violência. Uma combinação nada atraente.
Uma produção com orçamento confortável, bem cuidada
É muito fácil de perceber que é uma produção com orçamento confortável, se não folgado, com bons recursos técnicos, filmagens em diferentes locações, cuidados com a cenografia, os figurinos. É um filme bem feito, em termos artesanais.
Na primeira sequência há várias pessoas dentro de um carro, uma van – tomadas caprichadas, com uso de filtros, estudadas para não mostrar direito o rosto dos personagens.
A segunda sequência é um absoluto plongée: a câmara está bem no alto, voltada para baixo, como aquelas tomadas que a TV mostrava dos jogos da Copa da Rússia. É uma tomada de grande beleza: como se estivéssemos em um helicóptero cujo piso é todo de vidro, vemos lá embaixo, na neve, uma dúzia de pessoas, com cães farejadores, vasculhando a área, obviamente à procura de sinais de alguém desaparecido.
O grupo encontra uma correntinha, um colar.
Nova tomada mostra uma moça, uma adolescente, numa varanda de casa, diante da paisagem nevada.
“Patagônia, 2003”, informa um letreiro.
Corta, e um novo letreiro explica: “Buenos Aires, 14 anos depois”.
2003 mais 14, 2017, dias de hoje. Tá bom.
Uma jovem mulher está num carro, numa rua de bairro residencial, fazendo uma campana.
A montagem jovem garota na Patagônia / corta / jovem mulher em Buenos Aires quer, obviamente, fazer o espectador compreender que aquela ali que está fazendo a campana é a mesma garota que estava na Patagônia em 2003 quando alguém desapareceu. Sutil como um elefante na sala das jóias da rainha na Tower of London.
A protagonista é uma policial competente, mas muito rebelde
Um homem entra numa casa, bem no campo de visão da mulher que agora já percebemos que será a protagonista da história, Manuela Pelari, que todos conhecem como Pipa (Luisana Lopilato, na foto acima). Pipa sai do carro, caminha até a casa, descobre uma janela pela qual consegue entrar. Lá dentro há uma adolescente acorrentada. O homem, o abusador, o sequestrador, aparece, e há uma dura luta entre ele e Pipa. Ela leva muita porrada, mas é bem treinada, é forte pra cacete, e domina o homem. Aproveita que ele já está dominado e o enche de porrada.
A adolescente acorrentada chora, apavorada. Estaria ela apaixonada pelo sequestrador, possuída pela Síndrome de Estocolmo? Seria por isso que chorava tanto?
Pipa a tranquiliza, diz que é da polícia, que está tudo bem.
Na sequência seguinte aparecem o chefe de Pipa, um comandante da polícia, Oreyana (Rafael Spregelburd), e seu subordinado imediato, Martin Seretti (Nicolás Furtado). Rapidamente, a sequência mostra para o espectador qual é a situação: fazia bastante tempo que aquela equipe da Polícia Federal argentina investigava um caso de um sequestrador de adolescentes. Pippa, policial competente, boa investigadora, boa de ação, resolveu furar os próprios colegas, a equipe, e foi sozinha atrás do sequestrador.
Pippa – ficamos sabendo ali, naquela sequência de início de filme, antes de 10 minutos de projeção – é assim mesmo. Tem fama de não trabalhar em equipe, de ser competente mas rebelde. Só continua no time porque o comandante da unidade, Oreyana, gosta dela, a protege. Foi quem ensinou tudo de polícia a ela.
O roteiro pendular, pingue-pongue, torna a trama mais obscura
De uma maneira um tanto enviesada, fugindo um pouco da clareza, o roteiro nos contará que, naquela ocasião lá atrás, 14 anos antes dos dias de hoje, cinco garotas de 14 anos de idade, estudantes, colegas de escola, amigas desde sempre, haviam viajado em excursão até a Patagônia, para conhecer o lugar, chegar perto do vulcão que há ali.
Pipa era uma delas. Todas as outras eram suas grandes amigas, mas a amiga mais próxima, mais querida de todas era Cornelia. Numa noite, as cinco saíram juntas, foram para um bar – e depois disso Cornelia desapareceu. Jamais voltou a ser vista. Houve buscas e mais buscas – comandadas, veremos bem mais tarde, pelo então 14 mais jovem policial Oreyana, ele mesmo.
As buscas revelaram-se infrutíferas. Acharam apenas aquele colar que pertencia a Cornelia, e era idêntico aos que as outras amigas usavam, sinal da amizade, símbolo da união delas.
O desaparecimento coincidiu com a erupção do vulcão ali perto.
O corpo de Cornelia jamais foi encontrado – mas, após quatro anos de investigações, a polícia deu o caso por encerrado.
A história que havia começado em 2003 na Patagônia e avançado para 14 anos depois em Buenos Aires lá pelas tantas tem novo onde e quando: “Ilhas Canárias, 7 anos antes”. Antes de 2017, portanto em 2010 – 7 anos antes do tempo presente, 7 anos depois do desaparecimento de Cornelia na Patagônia.
A trama – que o roteiro pendular, pingue-pongue, vai pra frente, vai pra trás, já não ajudava muito a ser clara – vai incluir mercado de escravas brancas, jovens adolescentes roubadas de suas famílias para se transformarem em prostitutas de organização mafiosa controlada por um homem mau, mau, mau, O Egípcio (Pedro Casablanc).
Desaparecida/Perdida é uma grande bobagem, uma perda de tempo danada.
Formalismo e muita violência: estaria se criando um estilo Netflix?
A rigor, com 10 minutos de filme já estava bastante claro que se tratava de um filme ruim.
Com 10 minutos, o filme já havia mostrado aquele coquetel venenoso de atuações ruins, falsas, fracas, com formalismo e muita violência.
Será que essa coisa de formalismo de um lado e muita violência de outro tem a ver com a Netflix? Estaria se formando um estilo Netflix de produção, venha de onde vier, Inglaterra, França, Croácia, Argentina, Zimbábue, Azerbaijão?
O filme é apresentado como sendo uma produção Netflix. Tenho muitas dúvidas sobre essa coisa, porque já constatei vários casos em que nitidamente a Netflix não teve absolutamente nada a ver com a produção – apenas pagou pelo direito de exibir a obra depois que ela foi feita.
Mas estariam produtores independentes do mundo todo fazendo produções dentro de um estilo Netflix, na esperança de ter seu produto comprado pela empresa de streaming?
Sei lá.
O fato é que, nas últimas semanas, vimos uma série inglesa, uma série francesa e este filme argentino aqui – todos apresentados como uma produção Netflix – em que acontece o desaparecimento de uma adolescente. No inglês Safe, é uma adolescente de 16 anos – exatamente a idade da adolescente que desparece no francês La Forêt. Aqui, é uma adolescente de 14 anos. E, em todos os três casos, há muita violência.
No filme não aparece o detetive que é a marca da escritora
Perdida se baseia em um romance policial que tem o título da personagem que desaparece na Patagônia, quando está com 14 anos, Cornelia.
Foi o terceiro romance policial escrito por Florencia Etcheves, jovem jornalista, escritora e ativista pelos direitos femininos nascida em Buenos Aires em 1971, que por três anos seguidos (2010, 2011 e 2012) recebeu o Prêmio Martín Fierro pelo melhor trabalho jornalístico feminino.
Nunca tinha ouvido falar em Florencia Etcheves – mas, por pura intuição, sem ter nada de fato em que me apoiar, tive a sensação de que os roteiristas mexeram muito na história criada pela escritora.
São três os roteiristas – Jorge Maestro, Mili Roque Pitt e o diretor Alejandro Montiel.
Jamais vou saber se minha intuição tem lastro, tem algo a ver com a verdade dos fatos, se de fato o roteiro acabou fugindo muito da história original. Mas de uma coisa dá para a gente ficar sabendo: Cornelia foi o terceiro livro policial da autora, e o terceiro livro em que aparece o detetive Francisco Juárez, o personagem emblemático das obras de Florencia Etcheves, seu Hercule Poirot, seu Sam Spade, seu Philip Marlowe.
No filme Perdida, o detetive Francisco Juárez não aparece. Estamos em falta do detetive que é a marca da escritora.
Com dez minutos de projeção – repito – dava para perceber perfeitamente que era um filme ruim. Eu disse isso. Mary perguntou se eu queria parar de ver, eu disse que não – queria ver onde aquela história iria dar. Ela também estava percebendo que era um filme ruim, mas não quis parar, também estava curiosa.
Pois bem: o filme não vai dar em nada. É uma coleção de furos, de inverossimilhanças, de absurdos.
E que, ao contrário do que tem sido a tradição no atual cinema argentino, não tem boas atuações.
Anotação em agosto de 2018
Desaparecida/Perdida
De Alejandro Montiel, Argentina-Espanha, 2018
Com Luisana Lopilato (Manuela Pelari, Pipa), Amaia Salamanca (La Sirena/Nadine), Rafael Spregelburd (Oreyana), Nicolás Furtado (Martin Seretti), Pedro Casablanc (O Egípcio), Maite Valero (Pipa adolescente), Mora Magnarelli (Cornelia adolescente), Micaela Kastan (Leonora adolescente), Laura Laprida (Leonora), Marina Garré (Micaela), Guadalupe Grande Simonini (Micaela adolescente), Sol Wainer (Mariana adolescente), Denise Yañez (Mariana), Arancha Martí (Lucrecia), Oriana Sabatini (Alina)
Roteiro Jorge Maestro, Alejandro Montiel, Mili Roque Pitt
Baseado no romance Cornelia, de Florencia Etcheves
Fotografia Guillermo Nieto
Música Alfonso Gonzalez Aguilar
Montagem Fran Amaro
Produção Bowfinger International Pictures, FilmSharks International. Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, MyS Producción, Televisión Federal.
Cor, 103 min (1h43)
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