“As pernas das mulheres são compassos que circulam pelo globo terrestre em todos os sentidos, dando a ele seu equilíbrio e sua harmonia.”
A frase é dita mais de uma vez, ao longo dos 120 minutos de absoluto encanto de O Homem Que Amava as Mulheres, que François Truffaut lançou em 1977.
O Homem Que Amava as Mulheres é um dos meus filmes prediletos, dos 10 ou 15 de que mais gosto, que não canso nunca de rever.
É também, muito provavelmente, o filme que mais focaliza pernas de mulheres de toda a História. Truffaut e seu diretor de fotografia, o grande Néstor Almendros (1930-1992), abusam das cenas em que a câmara, colocada bem perto do chão, acompanha o andar de mulheres, mostrando desde o início das saias e/ou vestidos até os sapatos.
A principal estrela do filme são as pernas das mulheres.
Em 1977, unanimemente tido como um dos melhores cineastas do mundo, Truffaut poderia chamar qualquer atriz para seus filmes – nenhuma seria louca de recusar um convite dele. Já havia dirigido Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, Julie Christie, Delphine Seyrig, Bernadette Lafont, Jacqueline Bisset, Isabelle Adjani.
O Homem Que Amava as Mulheres tem umas 20 personagens mulheres. No entanto, é um filme quase sem grandes estrelas. Esse detalhe me chamou a atenção, ao rever o filme agora pela, sei lá, sexta, sétima vez.
O protagonista, Bertrand Morane, é interpretado por Charles Denner, um ótimo ator que nunca foi propriamente um astro. Denner teve papéis importantes em dois filmes de Claude Lelouch: Toda uma Vida (1974) e Robert et Robert (1978). Havia trabalhado antes com Truffaut em A Noiva Estava de Preto, de 1968, em um papel pequeno – na maior parte de seus filmes, fez papéis pequenos. Este aqui é um dos pouquíssimos filmes em que é o protagonista.
O filme conta a história de Bertrand Morane, ou, mais exatamente, a história das aventuras amorosas de Bertrand Morane – e foram muitas, dezenas e dezenas, as mulheres que passaram pela vida dele. Dessa imensa quantidade, o filme focaliza cerca de 20.
E as únicas do elenco que já eram estrelas são Leslie Caron e Brigitte Fossey.
Leslie, mundialmente famosa desde Sinfonia de Paris/An American in Paris (1951) e Gigi (1958), interpreta Véra, uma personagem que aparece apenas em uma seqüência, quando a narrativa já se encaminha para o fim. É uma personagem diferente das demais, e, como aparece quase no fim, falar sobre ela seria um spoiler.
Brigitte Fossey (na foto abaixo), um fenômeno do cinema francês, premiada no Festival de Veneza aos seis anos de idade por Brinquedo Proibido/Jeux Interdits, de René Clément (1952), não chegou, creio, a ser muito conhecida fora de seu país.
Nos créditos iniciais, aparecem, pela ordem, os nomes de Charles Denner, Brigitte Fossey, Nelly Borgeaud, Geneviève Fontanel e Leslie Caron.
Nos créditos finais, aparecem os nomes de quase duas dezenas de atrizes – nenhuma delas, tirando Leslie e Brigitte, era grande estrela.
Uma delas viria, sim, a ser uma atriz muito famosa: Nathalie Baye, mais de 90 filmes no currículo, dez prêmios e oito outras indicações, nove indicações ao César e nada menos que quatro vitórias neste que é o Oscar francês, é hoje uma das grandes atrizes do cinema do país dos irmãos Lumière. Na época, estava ainda em início de carreira.
Essa ausência de grandes estrelas me parece proposital, e não mero acaso.
Me parece óbvio que, com isso, Truffaut quis fazer a elegia de todas as mulheres do mundo. As mulheres – está implícito aí, na escolha do elenco – não precisam ser deusas, maravilhosas, extraordinariamente belas para serem a inspiração, a razão de viver dos homens.
Bertrand teria gostado de seu funeral; do caixão, veria as pernas das mulheres
O início, a abertura de O Homem Que Amava as Mulheres é um absoluto deslumbre.
Diversas mulheres estão chegando para um enterro, enquanto vão rolando os créditos iniciais. Algumas sozinhas, outras com amigas, outras em grupos. Uma tem um grande curativo no nariz – sinal de uma plástica recente. Outra chega diretamente de uma quadra de tênis, belas coxas à mostra; põe sobre o corpo rapidamente, enquanto anda, um sobretudo. Uma chega com um homem, provavelmente um namorado – mas vemos que ela gesticula para que ele pare ali, não se aproxime do local do enterro.
Ao final dos créditos iniciais, um letreiro situa para o espectador o local e a época da ação: “Montpellier, Natal de 1976”.
Uma jovem loura, bastante bonita, em um sobretudo elegantérrimo (os créditos finais informarão que ela veste Ted Lapidus, um grande nome da alta costura francesa da época), chega sozinha. Não se aproxima do local do enterro – prefere observar a cena um pouco de longe. Veremos depois que ela se chama Geneviève – o papel de Brigitte Fossey.
Ela narra para o espectador, com a voz em off:
– “Todos os funerais são exatamente iguais. No entanto, este é especial. Não se vê um homem – apenas mulheres. Nada, exceto mulheres. Sim, acho que Bertrand teria gostado de ver o espetáculo de seu próprio funeral.”
O caixão é baixado à sepultura. Cada mulher passa pela cova e joga ali um pouco de terra. A câmara fica no chão, quase dentro da sepultura, de tal maneira que focaliza apenas as pernas das mulheres.
– “De onde ele está, é perfeito para olhar o que ele mais gostava em nós.”
As pernas das mulheres vão passando diante da câmara que faz as vezes dos olhos de Bertrand em seu caixão.
– “Eu me lembro de uma frase que ele costumava dizer. ‘As pernas das mulheres são compassos que circulam pelo globo terrestre em todos os sentidos, dando a ele seu equilíbrio e sua harmonia.’”
Uma lição de como pode ser brilhante uma sacada na sala de montagem
E aqui há uma pequena lição de como pode ser brilhante uma sacada na montagem.
Temos a tomada das pernas das mulheres passando diante da cova de Bertrand.
Corta.
Entra a tomada das pernas de uma mulher que usa um vestido branco que termina em franja. O branco da franja contrasta com a meia de nylon escura. O vestido não é curto: vai até pouco abaixo dos joelhos. O sapato, preto, é alto – não altíssimo. As pernas são lindas.
Bertrand está numa lavanderia. A mulher de vestido com franja e pernas lindas também.
Entre uma tomada de pernas de mulheres junto ao túmulo e uma tomada das pernas de uma mulher numa lavanderia, apenas com a junção de uma tomada com a outra, Truffaut fez o flashback perfeito – depois da sequência de abertura, a narrativa volta no tempo para mostrar Bertrand vivo, e em ação.
A mulher da saia com franja sai da lavanderia, que fica um pouco abaixo do nível do solo. Por uma janela, Bertrand – assim como o espectador – vê as belas pernas da mulher se afastando.
Ele corre para fora da lavanderia, segue a mulher, que entra num carro, dá a partida e desaparece. Bertrand tem tempo de anotar a placa do carro.
De posse do número, vai às repartições públicas em busca do nome e endereço da mulher. Não fornecem. A única forma de Bertrand obter essas informações – ele fica sabendo, nas suas idas às repartições – seria se aquele carro tivesse batido no dele. Aí então, por causa do seguro, ele poderia obter o nome da motorista.
Ele bate o carro numa pilastra de um estacionamento.
O carro usado pela moça pertencia a uma locadora, a Midi-Car. Ele vai até lá, mas a funcionária que o atende, rígida, diz que nem assim pode fornecer nome e endereço da mulher que havia alugado o carro naquele determinado dia.
Uma outra funcionária, uma lourinha linda, ouve a conversa. Quando Bertrand está para sair com seu carro, ela corre até ele; diz que ouviu tudo, que ele tem o direito de saber quem foi a mulher que bateu em seu carro, e dá o nome e o telefone dela.
A mulher não mora em Montpellier, e sim numa cidade vizinha. Bertrand liga para o número que havia obtido, e viaja até a cidade. Conversa com a moça que atende ao telefone, convence-a a ir se encontrar com ele num bar do centro.
Espera ansiosamente a chegada da moça.
A moça que chega ao bar, Martine, é linda – era linda, a jovem Nathalie Baye (na foto acima), então iniciando a carreira (havia trabalhado com Truffaut em A Noite Americana, de 1973, a rigor seu primeiro filme). Mas Martine – que pecado! – chega ao bar de calça comprida. Bertrand fica frustradíssimo.
Conversam um pouco. E Martine diz àquele estranho sujeito que a moça que ele procura não é ela, e sim sua prima, que é casada com um canadense e naquele exato momento está em um avião de volta para Montreal.
Não ocorre a Bertrand, naquele momento frustrado, triste, dar uma cantada na encantadora Martine-Nathalie Baye. Martine deve ter sido a única mulher que passou pela frente de Bertand e não ouviu dele uma cantada.
Ele volta para Montpellier, onde vive desde que deixou Paris, alguns anos antes. Na volta, lembra-se de ir cantar a loura linda do Midi-Car.
Estamos aí com 12 minutos de filme.
O incansável Bertrand canta até a moça da telefônica que liga para despertá-lo
O espectador não vê o rosto da mulher de vestido de franja. A mulher que não mostra o rosto mas mostra as belas pernas chama-se Anne Bataille. Foi, segundo o IMDb, uma de suas duas únicas aparições no cinema. Antes, em 1975, tinha aparecido rapidamente – sem ter seu nome dos créditos – em um filme chamado O Último Samurai do Oeste.
A bela loura do Midi-Car é interpretada por Ghylaine Dumas (na foto abaixo).
Me dei ao trabalho de, com a ajuda do IMDb e do belo livro Truffaut par Truffaut, reunir o nome de algumas das atrizes que aparecem bem pouco, as diversas conquistas de Bertrand:
Valérie Bonnier (Fabienne, uma das primeiras de Montpellier),
Roselyne Puyo (Nicole, a lanterninha surdo-muda do cinema)
Anna Perrier (Uta, a babá loura),
Marie-Jeanne Montfajon (a mãe de Bertrand),
Valerie Pêcheur (a tenista no cemitério),
Thi Loan N’Guyen (a chinesa).
Errei ao dizer que Martine-Nathalie Baye é a única mulher que passou diante de Bertrand e ele não cantou.
Há também Liliane (Nella Barbier), a garçonete de um restaurante que Bertrand freqüenta. Um dia, um cliente estúpido resolveu fazer gracinhas com Liliane. A moça era karateca da maior qualidade, e então prega um golpe fulminante no imbecil, quebrando, ao fazê-lo, uma mesa do restaurante. É sumariamente demitida pelo patrão; Bertrand, que havia simpatizado com ela, arranja para Liliane um emprego como telefonista no lugar em que trabalha, um Instituto de Mecânica de Fluidos.
Lá pelas tantas, o próprio Bertrand observa que jamais propôs algo a Liliane.
E há ainda Denise (Martine Chassaing), uma colega dele no Instituto. Denise aparece muito rapidamente, en passant, em diversas sequências no local de trabalho do nosso herói. Com absoluta sutileza, de tal forma que a personagem poderá passar completamente despercebida pelo espectador menos atento, o filme mostra que Denise tem uma queda por Bertrand – mas ele não nota nada. Parece nem sequer tomar conhecimento de sua existência – como se, por ser colega de trabalho, ela fosse um homem.
E há ainda uma personagem fascinante que jamais aparece em cena. Nem Bertrand nem o espectador sabem como ela é – apenas ouvimos sua voz. É a moça da companhia telefônica encarregada do serviço de despertador. (Estávamos em 1977, longe ainda dos serviços automatizados, computadorizados.)
Ela liga no horário marcado por Bertrand, e diz bom dia, são tantas horas – mas ele, conquistador nato, inato, empedernido, puxa conversa com ela. Tenta marcar encontro. Passa a chamá-la de Aurore – porque ela sempre surge na aurora do dia. Com o passar do tempo, Aurore conversa um pouco a cada dia com aquele cliente maluco. Não cede às cantadas dele, resiste a se encontrar com ele. Depois… Não, contar o que vem depois seria spoiler.
Bertrand resolve escrever suas memórias, as histórias de seus amores
As personagens femininas mais importantes do filme são as interpretadas pelas atrizes que aparecem nos créditos iniciais. Faço um registro rápido sobre elas.
Geneviève (o papel de Brigitte Fossey) aparece, como já foi dito, na primeira seqüência, no enterro. Ela é assim uma espécie de narradora da história – embora boa parte seja narrada pelo próprio Bertrand. Geneviève está presente no início e no fim da narrativa. Só depois de passada a metade da ação ela reaparece: é uma das editoras de uma grande empresa de livros de Paris.
Delphine (Nelly Borgeaud, na foto acima) é a personagem mais doidona de todas as que aparecem na história. É uma contradição ambulante: sempre diz o contrário do que na verdade quer dizer. Tem uma fixação com algo que mistura exibicionismo e perigo: adora dar em lugares públicos. A primeira vez em que se menciona o nome dele é porque ela está saindo da prisão. Truffaut, assim como Lelouch, assim como tantos realizadores franceses, adora uma história policial, uma trama que envolva prisão, mulher presidiária – basta lembrar do delicioso Uma Jovem Tão Bela Como Eu (1972).
Hélène (Geneviève Fontanel) é uma personagem fascinante. É a dona, ou gerente, de uma boutique de roupas íntimas. Bertrand costuma passar diante da boutique indo ou vindo do trabalho, ou simplesmente passeando pelas ruas de Montpellier. Às vezes conversam um pouco, o conquistador inveterado e a senhora que vende calcinhas, sutiãs, lingerie de todos os tipos. Um dia, finalmente, Bertrand convida Hélène para sair.
É por causa de Hélène que, aos 26 minutos de filme, Bertrand vai até uma parte alta de um armário e de lá retira uma esquecida máquina de escrever, e dá início às suas memórias, à qual dará o título – canhestro, grotesco – de “Le Cavaleur”. Essa palavra parece ser uma gíria um tanto grosseira – sequer aparece no meu Petit Larrouse antiquíssimo –, que significa mulherengo, conquistador, cavalgador.
Felizmente existem os editores, e a editora Geneviève irá sugerir a troca desse título grosseiro pelo belo L’Homme Qui Aimait les Femmes.
A quarta personagem feminina importante da história é Véra, o papel de Leslie Caron. Já disse, lá acima, que falar sobre Véra pode ser spoiler, e então vou apenas dizer que Leslie Caron aparece como Véra quase ao fim do filme num vestido tão grotesco quando o título “Le Cavaleur”. É um desses troços que os caras da alta costura criam para as mulheres muito ricas irem a festas noturnas. Não entendo coisa alguma de moda, é claro, embora tenha sido casado com uma das melhores jornalistas que passaram pela área de moda da imprensa brasileira, mas insisto: o vestido usado por Leslie Caron é um horror. Nos créditos finais ficamos sabendo que ele é da autoria de Christian Dior.
Como é da natureza dos jornalistas falar sobre assuntos dos quais não entendem lhufas, digo que as roupas usadas por Genevièvie-Brigitte Fossey, de Ted Lapidus, são elegantérrimas; o vestido criado por Dior para Leslie Caron é mais brega que todo o repertório de Lindomar Castilho.
Truffaut era um homem que amava apaixonadamente as mulheres, os filmes e os livros
É absolutamente necessário fazer um registro: O Homem Que Amava as Mulheres não é o único filme em que François Truffaut filma pernas femininas, o andar das pernas das mulheres.
Domicílio Conjugal (1970), um dos filmes do realizador sobre seu alter-ego Antoine Doinel, começa com a câmara seguindo as pernas de Claude Jade. Em Vivement Dimanche!, no Brasil De Repente num Domingo (1983), seu canto de cisne, a câmara persegue as pernas de Fanny Ardant, na época senhora François Truffaut. No meio do drama pesado que é A Mulher do Lado (1981), Truffaut arranjou um jeito de fazer a saia de Fanny Ardant agarrar-se à cadeira, de modo a mostrar as longas coxas dela, ainda que numa tomada bem rápida.
Em O Homem Que Amava as Mulheres, François Truffaut, fã de carteirinha de Alfred Hitchcock, autor do maravilhoso livro Hitchcock Truffaut Entrevistas, realizador de um filme hitchcockiano, A Noiva Estava de Preto, e de dois filmes musicados pelo hitchcockiano Bernard Herrmann, Fahrenheit 451 e o própria A Noiva Estava de Preto, dá uma de Hitch.
Exatamente como o velhinho inglês louco e safado fazia em quase todos os seus filmes, Truffaut aparece rapidamente numa sequência de O Homem que Amava as Mulheres. É bem no início, na primeira seqüência: como quem não quer nada, de maneira absolutamente desnecessária para a trama, o diretor passa em frente da câmara junto da parede externa do cemitério, onde os carros estacionam. (Ele faz uma desssas aparições que em inglês são chamadas de cameo também em Na Idade da Inocência/L’Argent de Poche.)
Não bastasse isso, ainda fez sua fiel colaboradora Suzanne Schiffman dar uma de Hitchcock também. Suzanne, co-autora do roteiro deste filme e de vários outros do cineasta, tem uma brevíssima aparição como uma senhora que está com um bebê na escadaria do prédio de Madame Duteil (Monique Fury), a datilógrafa que Bertrand contrata para digitar direito os originais do livro de memórias que resolve escrever.
Truffaut era um homem que amava as mulheres, os filmes e os livros. E amava tudo intensamente, apaixonadamente.
O amor de Truffaut pelos livros salta à vista do espectador em diversos de seus filmes – muitos deles, aliás, adaptações de obras literárias. Seria possível dizer, a grosso modo, sem qualquer exatidão, que cerca de metade dos filmes do realizador são adaptações de obras literárias, e a outra metade históriais originais criadas por ele e seus colaboradores.
São raríssimos os filmes de Truffaut em que não aparecem livros, bibliotecas, gente lendo livros.
Os livros são parte importante de O Homem Que Amava as Mulheres. As últimas imagens que vemos na tela, ao final dos 120 minutos que passam depressa demais, são de livros.
Neste seu filme bem humorado, Truffaut faz uma citação de sua própria obra
Dá para imaginar que Truffaut estava num momento feliz, quando fez O Homem Que Amava as Mulheres. O filme não é uma comédia escrachada, dessas de fazer gargalhar, mas é todo feito em um tom bem humorado, de quem está de bem com a vida. É um filme que deixa o espectador com um permanente sorriso.
Além de brincar de Hitchcock fazendo uma aparição rápida na tela, Truffaut ainda faz uma citação de sua própria obra.
Mais uma vez, o espectador menos atento poderá sequer reparar; é uma rápida tomada, sem qualquer importância dentro da narrativa. Bertrand pega a bandeja com os restos do café da manhã e a coloca no chão do corredor do hotel. Um gato preto se aproxima da bandeja – corta, o filme vai adiante.
É uma citação de A Noite Americana, o filme de Truffaut sobre o cinema, sobre os filmes, de 1973, que havia sido um tremendo sucesso de público e crítica, 12 prêmios, inclusive o Oscar de melhor filme estrangeiro, fora outras seis indicações.
Em geral, na maior parte do tempo leve, bem humorado, suave, terno, O Homem Que Amava as Mulheres tem um lado sério, pesado. É quando Bertrand se lembra de sua adolescência, e vemos cenas em preto-e-branco dentro de um filme de cores vivas, o Bertrand garoto interpretado por Michel Marti.
Não foi uma adolescência feliz.
A mãe de Bertrand (interpretada por Marie-Jeanne Montfajon) é pintada como uma mulher fútil, vã, uma namoradeira incansável, uma mulher que não poderia jamais ter sido mãe, que não tem a menor consideração pelo filho, e na verdade o despreza.
Seria um tanto autobiográfico, essa parte do filme? Em Les Quatre Cent Coups, no Brasil Os Incompreendidos, seu longa-metragem de estréia, de 1959, abertamente autobiográfico, o realizador havia pintado um quadro bastante dramático de sua adolescência. Por pouco, muito pouco, o jovem François Truffaut escapou de virar um marginal.
O Guide do mestre Jean Tulard diz que é um dos filmes mais pessoais do cineasta
Esta anotação já está absurdamente gigantesca, e sequer usei a imensa quantidade de informações sobre o filme contidas nos livros Truffaut par Truffaut e François Truffaut, este último editado por Robert Ingram e Paul Duncan.
Diabo.
Registro, então, apenas que O Homem Que Amava as Mulheres veio logo depois de Na Idade da Inocência/L’Argent de Poche, de 1976. Truffaut começou a trabalhar no roteiro logo após a estréia do anterior, em março, mas foi surpreendido pelo convite de Steven Spielberg para interpretar o professor Claude Lacombe em Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Durante as filmagens de Contatos Imediatos, no interior do Alabama, arranjaram para ele um escritório onde pôde continuar a trabalhar no roteiro de seu filme seguinte.
Não gostaria de concluir a anotação sem ver o que diz sobre o filme o Guide do mestre Jean Tulard. Vai sem aspas, para me desobrigar a ser absolutamente literal:
Não se pode duvidar da co-relação que existe entre Bertrand Morane e François Truffaut, já que a paixão de Truffaut pelas mulheres é tão conhecida. Contrariamente ao que pode parecer o roteiro, L’Homme Qui Aimait les Femmes não é um filme machista; ao contrário, é um formidável hino ao belo sexo. Bertrand Morane não é um sedutor, nem um demolidor, é um homem que é apaixonado por todas as mulheres. É nisso que o filme de Truffaut é tocante. Betrand não pode viver e se alegrar a não ser através delas. Les jambés de femmes, ele diz, sont des compas que arpentent le globo en tous sens, lui donnant son harmonie e son equilibre. Ao lado de Les Quatre Cents Coups, este filme é talvez o mais pessoal de Truffaut”.
Gostaria de ter aqui anotações sobre todos os filmes de François Truffaut
Li o verbete do Guide des Films de Jean Tulard só depois de ter escrito toda a minha anotação que está acima do parágrafo anterior. Ou seja: citei Les Quatre Cents Coups antes de ler o que o grande guia fala sobre o filme.
É óbvio que me dá grande satisfação verificar que o Guide do grande Tulard abona, avaliza o que escrevi.
Volta e meia penso que deveria me concentrar nos filmes de que gosto, feitos por realizadores que admiro. Que deveria ver menos filmes novos, recentes – a não ser os realmente importantes, ou que tenham alguma coisa a ver com os artistas de que gosto. Que deveria parar de me obrigar a, de vez em quando, ver clássicos que são importantes mas que não são os meus prediletos. Parar de me obrigar a escrever sobre os filmes que meu amigo Elói Gertel ou meu sobrinho Beto me cobram: orra, mas não tem Blade Runner, não tem o Bravura Indômita dos irmãos Coen!, eles reclamam.
Isto aqui não é um guia de filmes. Nunca pretendeu ser enciclopédico, abarcar tudo – até porque é impossível uma única pessoa abarcar tudo.
Não tenho a menor vontade de viver muitos anos mais, de ser muito longevo.
Mas gostaria, isso sim, de viver o suficiente para anotar sobre os filmes de que mais gosto. Acho que não vai dar tempo, mas gostaria, isso sim, que este 50 Anos de Filmes tivesse anotações sobre todos os filmes de François Truffaut.
Faltam tantos…
Anotação em setembro de 2013
O Homem Que Amava as Mulheres/L’Homme Qui Aimait Les Femmes
De François Truffaut, França, 1977
Com Charles Denner (Bertrand Morane),
e Brigitte Fossey (Geneviève Bigey, a editora), Nelly Borgeaud (Delphine Grezel, a doida), Geneviève Fontanel (Hélène, a da loja de lingerie), Leslie Caron (Véra), Nathalie Baye (Martine Desdoits, a prima da moça do vestido de franja), Valérie Bonnier (Fabienne, uma das primeiras de Montpellier), Jean Dasté (doutor Bicard), Sabine Glaser (Bernadette, funcionária da Midi Car), Henri Agel (leitor), Nella Barbier (Liliane, a karateca que vira telefonista), Anne Bataille (a moça do vestido de franja), Martine Chassaing (Denise, engenheira do Instituto de Mecânica de Fluidos), Roselyne Puyo (Nicole, a lanterninha do cinema), Ghylaine Dumas (a loura da locadora de carros), Monique Fury (Madame Duteil, a datilógrafa), Anna Perrier (Uta, a babá loura), Marie-Jeanne Montfajon (a mãe de Bertrand), Roger Leenhardt (Sr. Bétany, o editor), Michel Marti (Bertrand adolescente), Valerie Pêcheur (a tenista no cemitério), Thi Loan N’Guyen (a chinesa), Suzanne Schiffman (a dama com o bebê na escadaria do prédio da datilógrafa).
Argumento e roteiro François Truffaut, Suzanne Schiffman e Michel Fermaud
Fotografia Néstor Almendros
Música Maurice Jaubert
Montagem Martine Barraqué
Produção Les Films du Carrosse, Les Artistes Associés. DVD Silver Screen Collection.
Cor, 120 min
R, ****
Sérgio, comece a escrever então sobre os filmes que você gosta/teria prazer em rever. Tem muito filme incensado que eu não vejo, simplesmente porque não tenho interesse.
E pára com essa história de que não quer viver muitos anos mais. Hoje quando uma pessoa de bem morre antes dos 85 eu digo que se foi cedo (mas eu também falo que não quero viver muito, a vida aqui nesse planetinha anda muito complicada).
Live long and prosper!
Abraços.
Também um filme do meu lado esquerdo do peito.
Oi Sérgio,
Lhe dou total apoio a escrever sobre os filmes que gosta ou que lhe despertam o interesse… Não vale a pena perder tempo com certo tipo de filmes, escever belos e informativos textos como este já deve lhe dar muito trabalho.
Até hoje só assisti a 3 filmes do Truffaut e este foi o que mais gostei. É um filme do ponto de vista masculino mais que faz uma grande homenagem às Mulheres e, todos os Homens (sejam casados, solteiros, conquistadores ou monôgamos…), se identificam de alguma forma com o personagem principal, seja na apreciação às mulheres ou na vulnerabilidade diante delas.
Um belo filme. Abç, Miranda
Truffaut, seu lindo.
Gostei da crítica mas faltou você mencionar a menina do vestido vermelho chorando na escadaria. Charles Denner foi a grande estrela do filme. Ator fantástico e expressivo. O personagem estava em seu olhar, suas intenções. Basta ver os fotolitos.
Grande abraço.
Eu tinha 28 anos quando saí desse filme com um sorriso que durou até o dia seguinte. Que linda homenagem às mulheres! Fiquei tão emocionada e flutuando como se estivesse chapada C alguma droga. Tonta e feliz. Fui procurar se havia crítica do Mulheres à beira de um ataque histérico e me deparo com esse maravilhoso escrito. Existem cenas que a gente nunca esquece: as pernas claro! As da lavanderia. Amei, Sérgio.