Poucos filmes conseguiram reunir tantas grandes personalidades quanto O Condenado de Altona, de 1962. Pelos créditos iniciais passam diversos dos nomes mais imponentes das artes do século XX. É um estupor.
O diretor é Vittorio De Sica, um dos maiores cineastas da Itália na época em que a Itália fazia o melhor cinema do mundo.
O roteiro é assinado por uma improvável, impensável dupla de mestres, o italiano Cesare Zavattini e o americano Abby Mann. Zavattini é tido como o principal arquiteto do neo-realismo italiano, autor dos roteiros dos grande clássicos Ladrões de Bicicletas, de De Sica (1949), Belissima, de Luchino Visconti (1951), Milagre em Milão (1951), Umberto D. (1952) e Duas Mulheres/La Ciociara, os três também de De Sica, para citar só alguns. Abby Mann escreveu, entre outros, os roteiros de Julgamento em Nuremberg (1961) e A Nau dos Insensatos (1965), ambos de Stanley Kramer, e Minha Esperança é Você (1963), de John Cassavetes.
O italiano e o americano criam o roteiro com base na peça Les Sequestrés d’Altona, de autoria do filósofo, escritor, ensaísta e dramaturgo Jean-Paul Sartre.
A trilha sonora não foi composta especialmente para o filme. Os realizadores optaram por utilizar concertos do compositor russo Dmitri Shostakovich – e foi uma decisão sábia. A maravilhosa composição se adequou como uma luva ao tom do filme.
O produtor é uma lenda do cinema italiano, Carlo Ponti, um dos grandes produtores da Europa, ao lado de Franco Cristaldi e Dino De Laurentiis.
Dentro da narrativa, vemos a encenação, pelo lendário Berliner Ensemble, de duas peças de Bertold Brecht, Terror e Miséria do Terceiro Reich e A Resistível Ascensão de Arturo Ui.
E o elenco – enxuto, pequeno: são poucos personagens – reúne nada mais, nada menos, que Sophia Loren, Maximilian Schell, Fredric March (na foto acima), Robert Wagner e Françoise Prévost. Globalização é isso aí: uma italiana, uma francesa, dois americanos, um austríaco.
É muito talento, muita maestria reunida em um único filme.
Tanto talento reunido – e, no entanto, o filme é um desapontamento
E, no entanto, o filme me pareceu um desapontamento, quando o revi agora – ele foi lançado há pouco no Brasil pelo selo Cult Classic. O verbo “rever” aí talvez não seja muito exato. Está no meu primeiro caderninho de cinema que vi O Condenado de Altona duas vezes, em 1964, com um intervalo de poucos dias; mas isso foi há tanto tempo que parece ter sido em uma outra encarnação (ou encadernação, como se diz para os jornalistas). O adolescente de 14 anos que fui em outra encadernação deu cotação máxima para o filme; não dá para saber o quanto ele compreendeu daquilo que viu, mas seguramente a montanha de grandes nomes o fez adorar O Condenado de Altona, mesmo que não tenha sido capaz de compreender tudo.
Feito esse registro pessoal, passo a palavra a quem entende.
Diz a sinopse do Guide des Films de Jean Tulard:
Um oficial alemão que se passas por morto é trancado num quarto na mansão da família desde o fim da guerra, onde vive por 13 anos. (A rigor, 1962 menos 1945 são 17 anos.) Sua única ligação com o exterior é através de sua irmã, que o persuade que a Alemanha ainda está tomada pela guerra e pela miséria.
O segundo parágrafo do verbete do Guide faz a análise:
“Jean-Louis Bory escreveu sobre este filme que ele utilizava ‘um barroco de convenção sobre um realismo de melodrama’. Franz encarna a angústia, a perturbação de um homem que foi abusado pela ideologia nazista.”
O Guide não dá nota para o filme, o que não é anormal; dos 15 mil títulos comentados, o Guide de Tulard dá cotação para uma minoria.
Em outra obra, o seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Jean Tulard dedica uma única frase ao filme, no verbete sobre De Sica: “Sua adaptação de O Condenado de Altona, baseado em Sartre, decepcionou”.
Leonard Maltin, o americano autor dos guias de filmes mais vendidos no mundo, dá 2.5 estrelas, e também sintetiza tudo em uma única sentença:
“Versão sluggish, pseudo-intelectual, da peça de Jean-Paul Sartre sobre a Alemanha pós Segunda Guerra Mundial envolvendo um magnata à beira da morte (March), seus dois filhos – um deles um playboy (Wagner) com uma esposa atriz (Loren), o outro um insano criminoso de guerra nazista (Schell).
Duas coisas apenas sobre o que diz Maltin. Sluggish significa lento, vagaroso, letárgico, frouxo. Eu não acho isso, mas opinião é opinião. E o personagem interpretado por Robert Wagner, Werner, não é um playboy; é um advogado.
Pauline Kael, a grande dama da crítica americana, que analisou centenas e centenas de filmes europeus, não escreveu sobre O Condenado de Altona em seu livro 5001 Nights at the Movies.
Este parece ser um dos menos lembrados filmes de Sophia e de De Sica
Nas duas páginas dedicadas a Sophia Loren, o livro 501 Movie Stars lista duas dezenas dos filmes mais importantes da grande estrela – e O Condenado de Altona não consta, embora ela esteja nele gloriosamente, deslumbrantemente bela. Aparentemente, dos oito filmes que Sophia fez sob a direção de De Sica, este é hoje um dos menos lembrados.
Parece também que a peça Les Séquestrés d’Altona é pouco lembrada dentro do gigantesca, infindável obra de Sartre, que, para o teatro, escreveu 12 peças. Esta aqui foi a antepenúltima, lançada em 1959, e representada pela primeira vez naquele mesmo ano, no Théâtre de la Renaissance, em Paris, sob a direção de François Darbon.
Os roteiristas Zavattini e Mann fizeram a ação se iniciar em uma seqüência ainda durante a Segunda Guerra, no front russo. A seqüência inicial dura exatamente o tempo dos créditos – enquanto vemos aquele desfile de nomes imponentes, vemos também belas tomadas gerais em que um batalhão nazista avança pelos campos gelados da Rússia. O oficial que comanda o batalhão é mostrado com o rosto semicoberto pelos agasalhos para se proteger do frio, mas o espectador poderá reconhecer ali Maximilian Schell.
Ao final dos créditos, um homem que havia sido preso pelos nazistas é executado.
Corta, e estamos já nos anos 1960, em Hamburgo, na Alemanha reconstruída após a Segunda Guerra. Um senhor idoso, de aparência dura – Gerlach, o papel de Fredric March, então com 65 anos, mas aparentando bem mais – está recebendo do médico o diagnóstico de que o câncer na laringe o deixa com no máximo seis meses de vida.
Gerlach, veremos em seguida, é um magnata da indústria naval; herdara do avô os estaleiros que levam o nome da família, e, entre 1932 e 1945, os anos em que a Alemanha esteve sob o domínio nazista, expandira seus negócios, provendo o regime de navios de guerra. Com o fim da guerra, as indústrias Gerlach prosperaram ainda mais; produziam navios tanto para os países da Otan, a aliança militar ocidental, quanto para os soviéticos. Num jantar em família, quando o filme está aí com uns 20 minutos, o velho Gerlach dirá que suas empresas servem ao governo do país, sejam ele qual for.
Gerlach vive numa gigantesca, imponente mansão com sua filha, Leni (o papel da francesa Françoise Prévost). Num imenso aposento no sótão da mansão vive também seu filho mais velho, Franz (o papel de Maximilian Schell), mas pai e filho nunca se vêem. Como já foi dito acima, o único contato de Franz com o mundo exterior é sua irmã Leni. Dado oficialmente como morto, condenado à revelia por crimes de guerra em Nuremberg, Franz vive trancafiado em meio a paredes onde desenhou figuras horrendas e frases um tanto incompreensíveis. Alterna um resto de lucidez com momentos da mais pura insanidade, tornada maior por doses massivas de benzedrina com champagne.
O velho Gerlach manda chamar o filho mais novo, Werner (Robert Wagner), que vive entre Dusseldorf e Munique com a mulher Johanna (o papel de Sophia Loren), uma atriz brechtiana.
O magnata quer que o filho caçula assuma seu império.
Durante o jantar em família que citei acima, a jovem Johanna enfrenta duramente o sogro todo poderoso. Diz que a Alemanha comete o erro imperdoável de esquecer o que aconteceu ali entre 1933 e 1945.
– “Lembre-se das palavras de Goethe”, diz ela, corajosamente, para o sogro, diante do marido e da cunhada silenciosos. “Aqueles que não se lembram de seu passado estão condenados a repeti-lo.”
A existência de Franz na mansão é um segredo – mas Johanna logo o desvenda. À noite, vê a cunhada Leni carregar uma bandeja de comida para o sótão, segue-a e em seguida se confronta com Franz.
Provavelmente a história seria mais apropriada para Visconti que para De Sica
A partir daí, na minha modestíssima opinião, a trama, o filme, tudo desanda.
Não conheço a peça de Sartre; não dá para saber se foram Cesare Zavattini e Abby Mann que não souberam adaptar a obra do filósofo endeusadíssimo. Mas o fato é que a partir do momento em que Johanna encontra Franz no sótão em que ele está prisioneiro há mais de uma década tudo desanda.
Ao escrever em julho de 2013 sobre o lançamento de O Condenado de Altona em DVD no Brasil, o excelente crítico Luiz Carlos Merten, do Estadão, escreveu que “o filme prenuncia Os Deuses Malditos, de Luchino Visconti, de 1969”.
Sem dúvida alguma, a atmosfera de O Condenado de Altona faz lembrar muito o clima de algumas obras do grande Visconti. Pensei em Visconti, em Os Deuses Malditos, enquanto via o filme, antes, é claro, de ler a crítica de Merten.
De Os Deuses Malditos o filme tem o retrato de uma família de industriais riquíssimos que deu apoio ao nazismo, tem a decadência moral. De Vagas Estrelas da Ursa, de 1965, o filme tem o clima claustrofóbico de outra família em decadência moral, e as insinuações de um amor incestuoso. O amor incestuoso, mostrado às claras em Vagas Estrelas, em O Condenado de Altona é bastante presente, embora menos explícito.
E O Condenado e Vagas Estrelas, feitos na mesma época, com uma diferença de apenas três anos, por dois grandes realizadores italianos, em preto-e-branco, têm ainda em comum a beleza estonteantemente de duas das maiores estrelas do cinema mundial até hoje, Claudia Cardinale num, Sophia Loren no outro – ambas no auge da beleza jovem.
Merten diz em seu texto que o universo de Sartre não era o de Vittorio De Sica, e que o filme “é uma decepção”.
Sim, de fato talvez O Condenado de Altona fosse mais apropriado para Visconti que para De Sica.
O filme me pareceu se levar a sério demais. Ficou pesado demais. Me pareceu um filme que se pretende solene demais, palavroso demais, definitivo demais.
Esses grandes atores todos estão (sempre na minha opinião, que vale menos que três guaranis furados) algumas oitavas acima do tom, falando alto demais, solenemente demais, e com gestos e expressões teatrais demais.
Não que seja um filme ruim. Não é, de forma alguma, e tem importância, e merece respeito. Mas o tom grandioso em excesso de fato o prejudica.
Felizmente, hoje o cinema alemão tem feito bons filmes sobre a barbárie nazista
“Há o costume na Alemanha de esquecer o que aconteceu entre 1933 e 1945”, diz Johanna, a personagem de Sophia Loren.
Creio que a frase era bem verdadeira na época em que a peça foi escrita, 1959, e o filme foi produzido, 1962.
Felizmente, as coisas mudaram muito de lá para cá. O cinema alemão tem feito belas obras para que não nos esqueçamos nunca da barbárie nazista: A Queda! As Últimas Horas de Hitler (2004), Uma Mulher Contra Hitler (2005), Minha Quase Verdadeira História (2007), Os Falsários (2007), Jud Süss: Ascensão e Queda (2010), para mencionar apenas alguns.
E felizmente, também, têm sido feitos filmes sobre a outra ditadura que se abateu sobre metade da Alemanha, depois da derrota dos nazistas – a ditadura comunista que dominou a parte oriental do país desde o final dos anos 1940 até o final dos anos 1980. Belos filmes, como A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck (2006), Barbara, de Christian Petzold (2012).
Todos eles bom cinema – e necessários, importantes. Porque “aqueles que não se lembram de seu passado estão condenados a repeti-lo.”
Anotação em setembro de 2013
O Condenado de Altona/I Sequestrati de Altona
De Vittorio De Sica, Itália-França, 1962.
Com Sophia Loren (Johanna), Maximilian Schell (Franz), Fredric March (Gerlach), Robert Wagner (Werner), Françoise Prévost (Leni)
Roteiro Abby Mann e Cesare Zavattini
Baseado na peça Les Sequestrés d’Altona, de Jean-Paul Sartre
Fotografia Roberto Gerardi
Música Dmitri Shostakovich
Montagem Manuel Del Campo e Adriana Novelli
Direção de arte Ezio Frigerio
Figurinos Pier Luigi Pizzi
Produção Carlo Ponti, Titanus, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.). DVD Cult Classic.
P&B, 114 min
R, **1/2
Oi, Sérgio.
Entre os nomes das grandes personalidades do século passado, que participaram da realização de O Sequestrado de Altona, faltou mencionar o de Renato Guttuso, “il pittore comunista”, que fez os desenhos nas paredes do cárcere privado. Viveu de 1911 a 1987, sofreu as duas guerras, portanto. No final da década de trinta participou do movimento artístico “Corrente”, que se opunha à cultura oficial, com uma forte conotação antifascista. Foi senador da Itália.
Também vi o filme em 1964, mas eu tinha 22 anos. Lembro-me que os desenhos me marcaram fortemente, só por isso tenho vontade de rever o filme. À ocasião, a Veja fez uma reportagem sobre o pintor e durante muito tempo eu guardei as ilustrações. Guttuso foi expressionista com alguns momentos cubistas e sua obra vai de momentos de grande intimidade a denúncias sobre as atrocidades sociais.
Quanto ao texto de Sartre, 1: Não sei porque traduziram como “O sequestrado…”, se no original e no título do filme italiano é “OS”. Isto modifica bem a idéia básica, não apenas o nazista é o sequestrado mas todos os personagens. 2: Não consegui ler o texto original, apesar de algumas tentativas, de tão chato. A peça de Sartre é de 1959 e de Sica fez o filme três anos depois, conforme você menciona. O defunto era fresquinho.
Abraços do sul.