Anotação em 2011: Este filme – de título um tanto poético que a rigor não diz a que vem – é tão obscuro quanto fascinante. Tentando entrar no espírito do título O Último Brilho do Crepúsculo, poderíamos dizer que é uma pérola perdida nas areias do tempo – e do excesso de filmes. Ou pelo menos foi o que me pareceu.
Areias de um tempo não tão distante assim: é uma produção de 1977, uma ficção política que se passa num então futuro próximo, 1981. Tem coisas que parecem muito mais remotas, bem anteriores a 1977. Tem também um jeitão de produção B, embora seja de Robert Aldrich, com um elenco que tem Burt Lancaster, Richard Widmark e um bando de bons atores experientes – Charles Durning, Joseph Cotten, Melvyn Douglas.
Jamais tinha ouvido falar deste filme – ou, se algum dia ouvi, tinha me esquecido absolutamente, o que dá no mesmo. Peguei na locadora exatamente porque me era completamente desconhecido. Só nos créditos iniciais me deparei com o nome de Robert Aldrich, bom diretor de filmes dos mais diversos gêneros.
Por coincidência, vimos o filme num dia em que encontrei, no Segundo Caderno do Globo, uma entrevista com Antoine de Baecque, jovem historiador francês. “A cinefilia foi salva pelo DVD e pela internet”, me informou Antoine de Baecque, do alto de sua condição de francês, historiador, crítico, biógrafo, ex-editor dos Cahiers du Cinéma e autor de Cinefilia – Invenção de um Olhar: História de uma Cultura 1944-1968, que a Cosac Naify está colocando agora nas livrarias brasileiras.
Sensacional: nunca soube que a cinefilia estava morrendo, ou sequer em perigo, mas agora fico sabendo por Antoine de Baecque que a cinefilia foi salva pelo DVD e pela internet.
Mas quer saber? O cara até tem razão, ao menos em parte. O DVD não salvou a cinefilia coisa nenhuma – mas que o VHS e depois dele o DVD trouxeram de volta, colocaram novamente à disposição do respeitável público uma imensa quantidade de filmes, muitos deles clássicos, faladíssimos, muitos deles obscuros, pouco conhecidos, lá isso é a mais verdadeira das verdades dos fatos.
Mas, teóricos que falam asneiras à parte, vamos em frente.
A narrativa começa na Casa Branca, ocupada por um homem de bem
Posso eu mesmo estar falando asneira ao dizer que este é um filme obscuro. Só depois que anotar um tanto sobre ele é que irei aos alfarrábios para ver informações objetivas e outras opiniões – como faço sempre.
Os créditos iniciais aparecem sobre uma bandeira americana, ao som de uma canção patriótica que eu não conhecia. Surge um letreiro informando ao espectador que estamos em 1981 – o futuro, do ponto de vista do filme, feito, repito, em 1977. Uma tomada geral da Casa Branca, e vemos o principal ocupante do prédio fazendo a barba. O presidente dos Estados Unidos da América é interpretado por Charles Durning, ótimo coadjuvante em dezenas e dezenas de filmes, quase nunca protagonista. Chama-se David Stevens, e bem rapidamente veremos que é um homem de bem.
O filme nos conta isso através de uma sequência um tanto longa. David Stevens recebe na Casa Branca, naquele dia – um domingão -, a visita de um antigo professor, um senhor cuja pele é negra. O visitante vem pedir a ele um favor pessoal: que acolha como asilado político o rapaz por quem sua filha está apaixonada. Esse rapaz havia matado o presidente de seu país. E então David Stevens argumenta com seu antigo mestre que não pode fazer aquilo: mesmo que a vítima do rapaz fosse um ditador, era, afinal, um chefe de governo, e uma pessoa. Dar proteção a um assassino não seria algo moralmente defensável.
O professor agradece pelo tempo que tomou do presidente, e prepara-se para sair. Por duas vezes, o presidente pede ao professor que explique à sua filha que ele não poderia tomar outra atitude. Ao que o professor responde algo do tipo: “Por favor, David. Vou explicar à minha filha que tentei. E que você, embora não tenha sido um aluno brilhante, é uma pessoa honesta”.
Neste iniciozinho do filme, estão acontecendo outras ações, em paralelo. Um grupo de quatro homens, Burt Lancaster e Burt Young entre eles, pára numa estrada o carro que conduz oficiais da Força Aérea; um dos homens do carro militar é assassinado ali mesmo, o grupo assume o controle do carro, e vai entrar numa base militar, no distante Estado de Montana.
Fiquei por um momento pensando que a questão de se conceder asilo ou não ao jovem assassino de um ditador estrangeiro – tema da manchete de um jornal de Washington – poderia ter a ver com aquele grupo que se prepara para invadir a base militar em Montana. Não, não tem. A questão do asilo é apenas para o filme contar ao espectador que o presidente David Stevens é um homem de bem, uma pessoa honesta.
Um general renegado ameaça disparar mísseis contra a União Soviética
Como estamos em um filme, uma ficção política, o grupo de quatro homens consegue, nos primeiros 15 minutos de ação, invadir a base militar de segurança máxima mais absoluta, e tomar o centro de controle, situado muitos metros abaixo do nível do solo de Montana. A base – veremos logo em seguida – é nada mais, nada menos, que a detentora de nove foguetes dotados de mísseis nucleares, filé mignon dos armamentos atômicos dos US of A.
Leva-se algum tempo para que o filme nos revele que o personagem de Burt Lancaster, que havia fugido de uma prisão com três sujeitos condenados por crimes comuns, é um general da Força Aérea americana, Lawrence Dell, sujeito com currículo irretocável, brilhante, um dos peritos que idealizaram e planejaram exatamente aquela base de lançamento de mísseis.
O general Dell exige falar com seu velho desafeto, o general Martin MacKenzie (o papel de Richard Widmark, com aquela cara de maus bofes que o caracteriza), a quem expõe sua exigência: quer falar com o presidente.
Em Washington, o presidente reúne todos os seus homens: seu chefe da Casa Militar, ou adido militar, sei lá que nome tem o posto, o general O’Rourke (Gerald S. O’Loughlin); o secretário de Estado, Arthur Renfrew (Joseph Cotten); o secretário da Defesa, Zachariah Guthrie (Melvyn Douglas); o ministro da Justiça, William Klinger (William Marshall), e mais os comandantes do Exército, da Aeronáutica.
E, diante desses homens todos, o presidente tem a primeira conversa telefônica com o general doido, tresloucado. O general exibe suas exigências – e, se elas não forem atendidas, ele lançará os nove mísseis nucleares contra a União Soviética. (Ela ainda existia, no futuro 1981 imaginado no filme de 1977.) As exigências são várias: US$ 10 milhões em notas pequenas, garantia de que os assaltantes serão levados no Air Force One, o AeroLula deles, para fora do país, mas, sobretudo, principalmente, a promessa de que o presidente divulgará, em rede nacional de TV, uma ata ultra-secreta de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, feita ainda durante a guerra do Vietnã, que decidiu pela continuidade da guerra.
Uma trama danada de ousada, pretensiosa – e rara
Uau!
Uma trama ousada, pretensiosa, mas muito, muito pretensiosa!
Revelei, nessa sinopse detalhada, comprida, à la Sérgio Vaz, talvez um pouquinho mais do que os 30 minutos iniciais do filme. Não botei aí nenhum spoiler. Muita coisa vai acontecer depois disso, até porque o filme é longo – são 143 minutos, segundo a capinha do DVD, ou146, segundo o IMDb.
Mas quis revelar tudo isso para tentar deixar claro o tamanho da gigantesca, imensa pretensão da trama.
Evidentemente, ela faz lembrar, pela coisa da ameaça de uma guerra nuclear, o Dr. Fantástico de Stanley Kubrick, de 1964. Todo mundo sabe da trama do Dr. Fantástico, todo mundo se lembra, todo mundo já viu – embora, segundo o professor doutor francês Antoine de Baecque, a cinefilia estivesse ameaçada, antes do surgimento do DVD e da internet. Uma série de erros – humanos, principalmente – faz com que mísseis atômicos americanos estejam para ser lançados contra a União Soviética. O pobre presidente americano – interpretado por Peter Sellers, que faz diversos outros papéis no filme – tenta conversar com Dimitri, seu colega-adversário soviético –, para que eles juntos tentem impedir a Terceira e Última Guerra Mundial.
O filme de Kubrick – brilhante em seu humor negro ácido, corrosivo, louco – conseguiu obscurecer completamente uma obra que queria dar o mesmo recado, naqueles anos mais quentes da Guerra Fria, o seriíssimo, sisudo, apavorante, exasperante Limite de Segurança/Fail Safe, feito no mesmo ano de 1964 por Sidney Lumet, com um seriíssimo (a repetição do adjetivo é proposital) Henry Fonda no papel que na comédia de humor trágico de Kubrick coube ao comediante Peter Sellers, o do presidente americano que tenta evitar o inevitável.
Fizeram-se vários outros filmes sobre a ameaça da guerra nuclear, alguns deles muito bons – poderia citar pela menos meia dúzia. Mas eram mais ficção-científica, parábolas próximas da ficção-científica.
São poucas as ficções políticas sérias americanas, ou os filmes americanos sérios que abordam a política numa perspectiva da ficção. São muito raros os filmes americanos que abordam a possibilidade de o Império do Bem, a Maior Democracia do Mundo, ser ameaçada por inimigos internos, em especial ao retratar o período da Guerra Fria.
Tento me lembrar de alguns, boto o japonesinho da minha cabeça pra funcionar, dou o localizar, e só me ocorrem Sob o Domínio do Mal/The Manchurian Candidate, de 1962, e Sete Dias em Maio, de 1964, ambos de John Frankenheimer. O primeiro, embora muito respeitado, incensado (e que até teve uma refilmagem, na minha opinião desastrosa), me parece uma grande bobagem: envolve um soldado que passou por lavagem cerebral na guerra da Coréia e vira um assassino de políticos. O segundo é mais assustador: fala de um grupo de militares que planeja um golpe contra o presidente porque ele apóia um tratado de desarmamento com a União Soviética. Por uma fantástica coincidência (ou não), Sete Dias em Maio também é estrelado por Burt Lancaster.
Uma ficção que quer discutir a forma como o mundo foi dividido em Yalta
Este filme de Robert Aldrich – e Robert Aldrich, embora bom diretor, não chega a ser um Sidney Lumet ou um Stanley Kramer – consegue ir talvez até mais fundo do que Dr. Fantástico e Limite de Segurança. Até porque a questão principal que ele levanta não é simplesmente a possibilidade de a guerra nuclear final começar por um conjunto de erros, sejam humanos, técnicos, ou os dois. A guerra nuclear final pode começar, segundo este filme aqui, porque um militar doido resolve usar a ameaça de mísseis atômicos para obter o que deseja.
E o que o general doido interpretado por Burt Lancaster deseja é que o presidente da República revele, em 1981, uma ata do Conselho de Segurança Nacional sobre a guerra do Vietnã, escrita enquanto a guerra ainda prosseguia – portanto, um documento do início dos anos 70.
A ameaça de guerra nuclear final, na verdade, não é o centro, o fulcro da questão, em O Último Brilho do Crepúsculo. O fulcro da questão tem a ver com o Vietnã – mas, na verdade, na verdade, tem a ver com Yalta.
Quem mesmo?
Yalta, ora bolas. Onde estavam, nas aulas de História, as pessoas que não se lembram da forma como Roosevelt, Stálin e Churchill dividiram o mundo na Conferência de Yalta?
Aldrich poderia ter cortado fora algumas cenas
Não é um grande filme. Mistura momentos excelentes, extraordinários, brilhantes, com outros que de fato parecem de um filme B.
O filme fica dividido entre um clima de ação e seqüências extremamente discursivas, de tal maneira que não conseguiria mesmo agradar nem quem gosta de filmes de ação (embora tenha excelentes momentos nessa área), nem quem gosta de filmes que discutem as grandes questões da história (embora tenha excelentes momentos nessa área).
E é comprido demais. Fica-se com a sensação de que Aldrich ficou muito encantado com sua própria obra, e foi, na sala de montagem, incapaz de cortar fora coisas que poderiam ser cortadas. Faltou a Aldrich alguém macho que dissesse a ele umas verdades: pô, Bob, tá grande demais, corta alguma coisa aí.
Vou agora aos alfarrábios. Começo pelo grande Jean Tulard, já que, obviamente, nem todos os franceses falam asneiras, como se tivessem acabado de descobrir que a Terra gira. Mas Tulard, que faz grandes elogios a Aldrich (1918-1983), chamado de “genial”, não cita este filme. Também não há referência ao filme no Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho. E o mesmo acontece no texto sobre ele no 501 Movie Directors; o título do filme apenas aparece no item “Top Takes” – um entre 25 top takes. Para que um diretor tenha 25 top takes, é porque o cara é bom. Mas o fato é que, nos textos de três livros de referência sobre diretores, não há uma palavra sobre O Último Brilho do Crepúsculo. Talvez eu estivesse certo ao dizer que é um filme obscuro.
”Abuso do poder institucional”
Epa! Acho, na biografia de Aldrich no Baseline, reproduzido no Cinemania, CD-ROM da Microsoft que era tão bom que pararam de fazer, a primeira referência ao filme:
“O abuso do poder institucional motiva um terrorista no thriller político Twilight’s Last Gleaming (1977). Um general renegado captura um silo de míssil nuclear e exige que o presidente leia em rede nacional de TV um memorando dos chefes das forças armadas admitindo que mais de 50 mil americanos e 100 mil asiáticos morreram numa guerra que o governo sabia que a América não poderia jamais vencer. Ele insiste em que o presidente restaure a confiança do público ao admitir que a guerra do Vietnã foi ‘um holocausto teatral perpetrado por negligência criminal’. Na visão de mundo cínica de Aldrich, os chefes militares…”
Não transcrevo a última frase do Baseline, porque ela revela o que Aldrich quis dizer com a seqüência final do filme – e não gosto de revelar as seqüências finais dos filmes. Mas dá para dizer que essa obra entendeu perfeitamente o que Aldrich quis dizer em seu filme – um libelo forte, violento, virulento, embora irregular e um tanto palavroso demais, contra o que chamavam de complexo industrial-militar americano.
A grande Pauline Kael, primeira-dama da crítica americana, falou sobre o filme, e Sérgio Augusto selecionou o texto dela na versão abreviada da obra dela publicada no Brasil pela Companhia das Letras, 1001 Noites no Cinema, o que contradiz minha afirmação de que é um filme obscuro:
“Melodrama de suspense, passado em 1981, sobre um general da Força Aérea dos EUA que, por suas atitudes contra a guerra do Vietnã, é incriminado numa acusação de assassinato e enviado para a prisão. Ele foge, assume o controle de um local de lançamento de mísseis nucleares e ameaça lançar nove deles e provocar uma guerra nuclear se o presidente (Charles Durning) e os chefes do Estado-Maior Conjunto não fizerem uma revelação pública dos objetivos secretos da guerra. A ação construída na primeira hora tem certa urgência, mas quando o diretor, Robert Aldrich, entra na parte séria – quando o presidente e seus conselheiros discutem as exigências do general – o filme desmorona e afunda cada vez mais. O roteiro de Ronald M. Cohen e Edward Huebusch é uma mistura de cinismo pegajoso e ingenuidade política – sugere um episódio de TV longo em excesso, e as tentativas de humor são pateticamente grosseiras.”
Ho, ho. Com todo respeito pela Dame Pauline, não vejo ingenuidade política, não. Ao contrário: vejo um diretor corajoso pacas botando o dedão numa ferida muito profunda, talvez profunda demais – o que seria capaz de explicar por que este filme é tão pouco falado.
Mas agora, felizmente, com o DVD, a gente pode ver o filme.
Conforme nos ensina o historiador francês Antoine de Baecque, agora que existem o DVD e a internet, a gente pode rever filmes do passado.
Há algo estranho na lição do historiador francês. O que será que eu, e milhões de outras pessoas mundo afora, estávamos fazendo, vendo milhares e milhares de filmes, antigos e novos, antes do DVD e da internet?
E por que será, raios, que o cara desconheceu o mundo do VHS? Isso para não falar da TV aberta, a TV pré-TV paga, que sempre passou filmes, novos e antigos, e dos cineclubes que nunca pararam de existir, e dos relançamentos no cinema.
Ah, essas pessoas que acham que o mundo começou quando elas nasceram… Dá uma preguiça…
O Último Brilho do Crepúsculo/Twilight’s Last Gleaming
De Robert Aldrich, EUA-Alemanha Ocidental, 1977
Com Burt Lancaster (general Lawrence Dell), Roscoe Lee Browne (James Forrest), Joseph Cotten (secretário de Estado Arthur Renfrew), Melvyn Douglas (Zachariah Guthrie), Charles Durning (o president David T. Stevens), Richard Widmark (general Martin MacKenzie), Paul Winfield (Willis Powell), Burt Young (Augie Garvas)
Fotografia Robert B. Hauser
Música Jerry Goldsmith
Roteiro Ronald M. Cohen e Edward Huebsch
Baseado no livro Viper Three, de Walter Wager
Produção Avaria Atelier, Geria Productions, Lorimar Productions.
Cor, 143 min
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