(Disponível na Netflix em 9/2021.)
Jaguar, minissérie espanhola de 2021 distribuída pela Netflix, vem com a promessa de trama muito interessante, abordando um tema sério. Na Madri de 1962, no fundo da ditadura fascista do generalíssimo Francisco Franco, onde vivem muito à vontade criminosos nazistas que escaparam do Tribunal de Nuremberg, uma sobrevivente de campo de concentração planeja executar o monstro que havia assassinado seu pai em Mauthausen.
O primeiro dos seis episódios da minissérie (cada um tem cerca de 50 minutos) é extraordinário.
É verdade que tem frescura formal demais. Fogos de artifício, invencionice demais – aquela coisa de o diretor ficar o tempo todo berrando na cabeça do espectador “Olha como eu sou genial!”
Frescura formal demais – mas, se tem talento, se é bom, paciência, uai.
Porque tem muito talento. É muito, mas muito bom.
Pois é. Mas, depois dos primeiros três episódios fascinantes, de babar, a série se afunda em sequências de ação. Vira uma coisa tipo… Tipo… Hum… Não vou dizer Velozes e Furiosos, até porque nunca vi um troço desses – só algumas tomadas rápidas durante as zapeadas. Mas algo do tipo Bourne, a Identidade, A Supremacia, O Ultimato, O Legado Bourne. Filme de ação – bem realizado, sim, sem dúvida, mas aquela coisa não propriamente assim inteligente, de linguagem e tema sérios, dirigidos a público maduro.
Infelizmente, é isso: os três últimos episódios de Jaguar são bem realizados, têm boas interpretações – mas optam por ser filme de ação. Filme de mocinho versus bandido – bandidos sendo, é claro, os nazistas e as forças de segurança da ditadura franquista. Desnecessário dizer quem são os mocinhos.
O cinema americano cometeu muitas coisas assim – uma espécie de variação do western, substituindo as velhas batalhas Cavalaria versus índios pela luta dos soldados americanos contra os nazistas. Filmes como Fugindo do Inferno/The Great Escape (1963), de John Sturges, Os Doze Condenados/The Dirty Dozen (1967), de Robert Aldrich. Não por coincidência, dois diretores – bons diretores – que fizeram muitos westerns – e bons westerns, sem dúvida algum. Esses aí são bons filmes, têm legiões de fãs, merecem respeito – mas, a rigor, a rigor, são isso: filmes de ação. Uma variação dos velhos (e bons) westerns.
É uma pena que os realizadores da série Jaguar tenham optado por enveredar por esse caminho, essa coisa de filme de ação, na sua segunda metade. Porque, na primeira metade, a série trata com seriedade, de forma magnífica, esse tema importante que foi a sobrevivência impune, livre leve solta de tantos criminosos de guerra nazistas na Espanha, na Argentina, na Bolívia, no Brasil – e abre espaço para uma discussão sobre a vingança.
Temas densos, sérios, áridos, difíceis – mas esses, sim, importantes para quem deseja ver nas telas não apenas entretenimento, mas também conteúdo. Alimento para o espírito.
Em seus melhores momentos, Jaguar obriga o espectador a enfrentar a questão das diferenças – e das semelhanças – entre o desejo de justiça e o desejo de vingança. Entre a linha às vezes tênue que separa a moralmente correta – e obrigatória – necessidade de punição dos culpados, por um lado, da, por outro, cega perseguição da Lei do Talião, do olho-por-olho, dente-por-dente.
17 anos preparando a vingança
A protagonista da história se chama Isabel Garrido. Quando a série começa – em Madri, em 1962, como informa um letreiro –, Isabel trabalha como garçonete em um restaurante grã-fino, caro, chamado Haus, que é frequentado por um grande número de alemães aí na meia idade. Todos eles nazistas, saudosos do Führer e do Reich. O líder do grupo é um sujeito chamado Otto Bachmann (Stefan Weinert).
Flashbacks vão nos mostrando acontecimentos no campo de concentração de Mauthausen, na Áustria. Isabel, criança aí de uns seis, sete anos, viu o momento em que um dos chefes do campo de concentração tirou o revólver e matou o pai da garota a sangue frio. Aquele oficial nazista era Otto Bauchmann.
A garotinha Isabel, por algum motivo qualquer, foi escolhida pela mulher de Bauchmann para trabalhar como criadinha em sua casa, ali dentro do campo. Durante meses, até o fim da guerra, em 1945, a menina viu o casal Bauchmann receber outros oficiais nazistas em sua casa, para almoços, jantares, festas.
Para o campo de concentração de Mauthausen foram levadas centenas e centenas de espanhóis – republicanos que haviam lutado contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e foram entregues pelos vencedores aos nazistas no período que antecedeu o início da Segunda Guerra Mundial. Centenas morreram lá – mas algumas centenas sobreviveram.
Um belo filme de 2018, O Fotógrafo de Mauthausen, da realizadora catalã Mar Targarona, reconstitui fatos ocorridos naquele campo de concentração, ao contar a história real de Francesc Boix, o personagem título do filme, que acabou sendo responsável pela preservação de milhares de negativos de fotos feitas dentro do campo – documento daquele palco de horrores que os alemães tentaram destruir quando o final da guerra se aproximou.
Como a maioria dos filmes que reconstituem episódios históricos, El Fotógrafo de Mauthausen abre com algumas informações para situar o espectador no contexto daquele momento. Ali o filme afirma que “pelos muros de Mauthausen passaram mais de 7 mil espanhóis”.
A série Jaguar não mostra como, mas o espectador vai percebendo que Isabel Garrido havia passado todos aqueles 17 anos – entre o final da guerra, 1945, até 1962, a época em que se passa a ação, e ela é uma linda mulher trabalhando como garçonete no restaurante frequentado por veteranos nazistas – preparando-se para o momento em que, enfim, vingaria seu pai e todo o seu sofrimento em Mauthausen.
O momento em que ela assassinaria o assassino. Olho-por-olho, dente-por-dente.
Uma belíssima atriz no papel central
Uma linda mulher.
A garotinha Isabel no campo de concentração e na casa do oficial nazista Otto Bachmann é interpretada por Alicia Chojnowski. A Isabel de 1962 é o papel de Blanca Suárez, e meu Deus do céu e da Terra, como a moça é bonita.
Blanca Suárez é uma madrilenha da classe de 1988, que começou a carreira aos 20 aninhos, em 2008, e de lá para cá já atuou em 34 filmes e/ou séries de TV, como a muito falada As Telefonistas (2017-2020). Três filmes com ela já estão aqui neste + de 50 Anos de Filmes: A Pele Que Habito / La Piel Que Habito (2011), de Pedro Almodóvar, Tirando a Sorte Grande / The Pelayos (2012), de Eduard Cortés, e O Bar / El Bar (2017), de Alex de la Iglesia.
Os dois diretores da série, Carlos Sedes e Jacobo Martínez (o primeiro dirigiu quatro episódios, o segundo os outros dois), demonstram que não são bobos nem nada, e usaram e abusaram da beleza fantástica da moça. E dá-lhe close-up de Isabel Garrido-Blanca Suárez.
Uma sobrevivente de campo de concentração que passa 17 anos se preparando para matar o nazista que matou seu pai. Eis aí um bom tema.
Mas isso é só o ponto de partida da história da série Jaguar, uma criação de Ramón Campos e Gema R. Neira, que foi roteirizada pelos dois e mais Moisés Gómez Ramos, Salvador S. Molina e David Orea.
Ao longo dos 50 minutos – eletrizantes, fantásticos – do primeiro episódio, vamos vendo que Isabel é seguida de perto por um grupo de homens bem treinados, bem equipados. Cada passo que a moça dá é acompanhado por aqueles homens – sem que ela perceba.
E o espectador não sabe quem eles são! Ele pode pensar que os homens que seguem cuidadosamente aquela moça sejam de uma equipe da polícia política da ditadura fascista de Franco. Tem todo o direito de pensar isso. Mas saber quem são, isso o espectador não sabe.
A série demora um tanto a dizer quem persegue Isabel
Só se fica sabendo quem eles são no finalzinho do primeiro episódio (Ou seria no começo do segundo? Já não me lembro exatamente – deixei passar vários dias entre ver a série e escrever esta anotação.)
O suspense que se mantém ao longo do primeiro episódio é um elemento importante da série.
O chefe do grupo que segue Isabel de chama Lucena (o papel de Iván Marcos). Nós o vemos mais de uma vez se encontrando com uma mulher que é superior a ele, de quem recebe indicações, sugestões – a maneira educada de um bom chefe dar ordens a seus subordinados. Lucena se refere a ela como Ramos – o que tem todo o jeito de ser um codinome, um apelido de guerra.
Lucena e Ramos se encontram numa beleza de museu de arte – seguramente o Prado, o maior museu da Espanha e um dos mais importantes do mundo. Por mais de uma vez, os dois se sentam diante de um quadro de Francisco José Goya e Lucientes – e a câmara do diretor de fotografia Jacobo Martinez (sim, o mesmo profissional que dirige dois dos seis episódios da série) então se debruça sobre a obra do extraordinário pintor.
Vemos por um bom tempo a beleza fantástica que é “O 3 de Maio de 1808 em Madri” – o quadro de 2,6 por 3,4 metros que mostra o fuzilamento de um madrilenho sublevado contra os invasores franceses do exército de Napoleão Bonaparte – e Lucena e Ramos conversam sobre temas que têm tudo a ver com o quadro, a força bruta contra o povo, o poder das armas contra as pessoas.
São sequências de grande beleza – e é fascinante ver que os realizadores escolheram para interpretar Ramos, a financiadora daquele grupo de homens chefiado por Lucena, a mais internacional das atrizes portuguesas, Maria de Medeiros, em uma bela participação especial. Maria de Medeiros, que mostrou sua beleza estranha, nada convencional, em filmes tão diversos como Encontro com Vênus (1991), do húngaro István Szabó, Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, e Minha Vida sem Mim (2003), da espanhola Isabel Coixet, só para citar uns poucos, tem também uma carreira de diretora – fez, entre outros, o ótimo Capitães de Abril (2000), sobre a Revolução dos Cravos, o movimento militar que derrubou a ditadura salazarista.
Aqui, um monólogo do final do episódio 3
No final do terceiro episódio de Jaguar, há uma sequência longa, impressionante, marcante, dessas difíceis de se esquecer.
Faço questão de falar aqui dessa sequência, e de registrar parte do fascinante monólogo dito por um dos personagens importantes da história. No entanto, como isso vem, repito, no final do terceiro episódio, bem no meio da série, o eventual leitor que chegou até este ponto mas ainda não viu esta Jaguar deveria parar por aqui. Não que seja, a rigor, spoiler, mas…
O grupo havia capturado um inimigo, um nazista – o braço direito de Otto Buchmann. E esse nazista havia visto uma ação do grupo – se fosse solto, informaria à polícia, destruiria tudo o que aqueles homens haviam feito até ali, poriam por terra todo o seu planejamento, todos os seus esforços para finalmente prender o importante criminoso de guerra que estava para chegar à Espanha e entregá-lo à Justiça na vizinha e, ao contrário da Espanha, democrática França.
Não havia outro jeito: o nazista teria que ser executado.
Sordo e Castro (interpretados respectivamente por Adrián Lastra e Óscar Casas) chegam a disputar na cara e coroa quem teria que assumir a tarefa de matar. Marsé (o papel de Francesc Garrido) se adianta e toma para si a função.
Marsé havia sido padre. Nós o vemos, num outro momento da história, contar para Isabel que a crueldade que ele havia testemunhado num campo de concentração nazista o havia feito perder a fé em Deus.
E então vemos o ex-padre levando o nazista que haviam capturado para um ponto afastado de um bosque.
– “Me deixe ir, por favor”, implora o alemão, encapuzado, mãos amarradas à sua frente.
Marsé tira o pano que cobria a cabeça do sujeito – e ele confessa o que o grupo precisava saber. – “Ele está em Almería”, diz o preso, na desesperada tentativa de escapar da execução. “Ele” é o líder nazista importante que estava para chegar à Espanha, de onde Otto Buchmann iria levá-lo para um lugar seguro, onde pudesse viver em tranquilidade seus últimos anos.
– “Juro que ele está em Almería. Por favor, não quero morrer.”
E Marsé: – “Mateus, 5:38. Você ouviu o que foi dito. Olho por olho e dente por dente. Mas eu lhe digo: se alguém lhe bater na face direita, ofereça-lhe também a outra face. E se alguém quiser pegar sua túnica, dê a sua capa também. Se alguém o forçar a caminhar uma milha, vá com ele duas. Dê a todos que pedirem. Não recuse quem pedir emprestado a você. Eu digo, ame seus inimigos e reze por quem o persegue, para que possam ser filhos de Seu Pai no céu. Porque ele faz nascer o Sol sobre o mal e sobre o bem e faz chover sobre os justos e sobre os injustos.”
O nazista está chorando. Marsé o faz se ajoelhar, e prossegue:
– “E agora, de acordo com a palavra de Deus, devo deixá-lo ir. O problema é que, por culpa de vocês, parei de acreditar Nele.”
Depois que Marsé atira, vemos seu rosto se contorcendo pela dor em um super close-up – e, em seguida, em um impressionante plongée, a câmara no alto, carregada por um guindaste, nós o vemos dando um imenso grito de desespero. As tomadas mais abertas, em plongée, se alternam com os close-ups, em montagem acelerada. O conjunto da sequência é absolutamente impressionante.
Robert Guédiguian, o grande diretor de tantos filmes contra a vingança sem fim, o olho-por-olho, dente-por-dente, seguramente aplaudiria de pé como na ópera.
Anotação em setembro de 2021
Jaguar
De Ramón Campos e Gema R. Neira, criadores, Espanha, 2021
Direção Carlos Sedes, Jacobo Martínez
Com Blanca Suárez (Isabel Garrido),
Iván Marcos (Lucena), Óscar Casas (Castro), Adrián Lastra (Sordo), Francesc Garrido (Marsé), Stefan Weinert (Otto Bachmann), Julia Möller (Ilse Bachmann), Lorenz Christian Köhler (Franz Zierreis), Alicia Chojnowski (Isabel Garrido criança), Robert Catrini (o maître do restaurante Haus), Jochen Horst (Aribert Heim), Maria de Medeiros (Ramos, a financiadora), Antonio Del Olmo (coronel Aguado), Diego Bergmann (Patrick), Jochen Hägele (Gunter), Lea Marlen Woitack (Greta), Millán de Benito (Javier), Sergi Méndez (Domingo), Lamin Ceesay (Greykey), India Martínez (cantora), Tristán Ulloa (Riaza), Jesús Carroza (pastor), Juan Carlos Villanueva (médico)
Roteiro Ramón Campos, Moisés Gómez Ramos, Salvador S. Molina,
Gema R. Neira, David Orea
Fotografia Jacobo Martinez
Música Federico Jusid
Casting Natalia Rodríguez
Figurinos Antonio Sánchez
Produção Bambú Producciones
Cor, cerca 300 min (5 horas)
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