4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um belo filme, extraordinariamente bem realizado e com interpretações magníficas. É um drama sobre relações familiares denso, barra pesadíssima como poucos. O cinema americano tem feito muitos filmes sobre problemas de famílias ditas disfuncionais, mas em geral usa um tom leve, até bem humorado. Aqui não há bom humor algum: a coisa é muito, muito feia.
Rachel, a moça que vai se casar (Rosemarie DeWitt, ótima, que, confesso, não conhecia) até usa essa expressão, família disfuncional, para descrever a dela. Não acho que a família do filme, os Buchman, seja propriamente disfuncional. Não. É uma família normal, mas que tem problemas graves: Kym, a segunda filha (a jovem e bela Anne Hathaway, em seu papel mais importante até hoje, que lhe deu uma indicação ao Oscar e ao Globo de Ouro e vários prêmios), é viciada em drogas. Há também, pairando no ar, a sombra de uma grande tragédia que se abateu sobre a família no passado – e que o espectador só vai conhecer bem depois da metade do filme. Então é uma família, repito, que tem problemas graves, gravíssimos, mas não é, a meu ver, disfuncional.
Uma família sem traços de obscurantismo
Até porque as coisas funcionam na família. São ricos, bem ricos; moram numa bela e imensa propriedade num excelente bairro de Connecticut, o Estado que tem a vantagem de estar ao mesmo tempo distante da loucura de Nova York mas perto o suficiente para que se vá até a capital do mundo confortavelmente de trem todas as manhãs. São educados, inteligentes, progressistas, modernos, não padecem da grave doença do racismo nem qualquer outro obscurantismo. Rachel está terminando a faculdade de Psicologia e Kym, embora ovelha negra, viciada, teve carreira como modelo, está se tratando, está limpa há nove meses – quando a ação começa, poucos dias antes da data do casamento de Rachel com Sidney (Tunde Adebimpe), um músico bom sujeito, resolvido, afetuoso, cheio de amigos, Kym está saindo de uma clínica de reabilitação.
O pai das moças, Paul (Bill Irwin), está casado de novo, com Carol (Anna Devere Smith), uma mulher simpática, boa gente. Paul é um bom pai, afetuoso, carinhoso, cuidadoso, atencioso; é com ele que vivem as filhas – o que não é nada estranho, peculiar. disfuncional. A mãe de Rachel e Kym, Abby (Debra Winger, a grande, maravilhosa Debra Winger), também casada de novo, tem uma relação sem conflitos com o ex-marido e, aparentemente, também com as filhas.
Ah, sim, um pequeno detalhe sem importância qualquer. A pele de Sidney é negra. O espectador vê isso – mas não verá nem ouvirá qualquer menção especifícica a esse detalhe menor. A família Buchman, felizmente, vive num mundo em que a cor da pele das pessoas não faz a menor, mas a menor diferença.
O problema da família Buchman são os conflitos psicológicos, afetivos, não resolvidos, apesar de todo o conforto material, apesar da boa disposição de todos em enfrentar os problemas, apesar do tratamento de Kym. Há o problema do vício dela, mesmo após nove meses de abstinência – e todas as pessoas que já viveram de alguma maneira a questão de ter um vício ou ter um parente ou amigo próximo viciado sabem muito bem como é duro, é profundo, é desestruturador.
Aliás, não se especifica qual é o vício de Kym. Sabemos que é droga, mas não sabemos qual, ou quais. O que vemos é que ela está também em abstinência de álcool – e, de novo, todos sabemos o que, para um viciado em qualquer droga, significa enfrentar dias de uma gigantesca festa sem uma gota de álcool. Kym fuma, e fuma muito, nestes dias em que fumar cigarro industrializado de nicotina e tabaco é crime gravíssimo; esse pequeno detalhe é muito interessante e revelador, porque, de fato, de maneira geral viciados em fase de abstinência fumam muito.
E há a sombra da grande tragédia. Mas ela, na maior parte do filme, é apenas uma sombra. Só vai explodir, como já disse, mais para o final.
Então, o que vamos vendo, conforme vão mostrando, com maestria, a roteirista Jenny Lumet (sim, ela é filha do grande Sidney Lumet) e o diretor Jonathan Demme, é um clima de tensão que se revela primeiro em pequenos detalhes. Depois a tensão vai crescendo, se acumulando. Detalhes: Kym fica frustrada e furiosa porque Rachel escolheu a grande amiga Emma (Anisa George) para a principal dama de honra, e não escolheu a ela, a irmã. Rachel vai se irritando com atitudes como essa da irmã, e se queixa de que o pai protege Kym no momento em que ela está se casando e mereceria ser o centro das atenções. Tensão crescendo: nos discursos de cada um dos muito familiares e amigos, num jantar às vésperas da grande festa de casamento, Kym exacerba, exagera, fala demais dela, do vício, do tratamento.
Isso não é nada com o que virá depois.
Um diretor experiente, com forte ligação com a música
Jonathan Demme é um diretor experiente; o iMDB lista 40 filmes e/ou episódios que ele dirigiu, em 36 anos de carreira. Teve um espetacular sucesso e grande reconhecimento em 1992, com O Silêncio dos Inocentes/The Silence of the Lambs, que levou os cinco principais Oscars (filme, direção, ator para Anthony Hopkins, atriz para Jodie Foster, roteiro adaptado para Ted Tally) e iniciou uma série infinitas de filmes com o personagem de Hannibal, o canibal. Teve outro grande sucesso de público e crítica no ano seguinte, com Philadelphia.
Sujeito interessante, esse Jonathan Demme, um nova-iorquino de Long Island nascido em 1944. É fanático por música, amigo de músicos. Para a trilha de Philadelphia, de 1993, conseguiu reunir Bruce Springsteen, Neil Young, Peter Gabriel, Indigo Girls, Sade; a canção Philadelphia, de Bruce, levou o Oscar (Bruce, herdeiro e discípulo de Dylan, ganhou o Oscar de melhor canção sete anos antes do mestre). Dirigiu vídeos de Bruce, dos Pretenders.
Depois, em 2006, fez um longa-metragem com o show de Neil Young no Grand Ole Opry, o templo do country na capital country, Nashville, Neil Young: Heart of Gold. Uma beleza de documentário, aliás. (Me deu vontade de rever…)
A música tem importância imensa neste O Casamento de Rachel – e recebe um tratamento que, se não é único em toda a história do cinema, é no mínimo absolutamente singular.
A festa de casamento da rica Rachel com o músico cheio de amigos Sidney é programada para ser de arromba, de gigantesca arromba. O casamento será na propriedade dos Buchmam, em tendas montadas nos enormes jardins, e haverá dezenas e dezenas e dezenas de convidados. Muitos deles são músicos, amigos de Sidney – nova-iorquinos de todas as descendências, ingleses, europeus, do Oriente Médio. Ficam ensaiando na própria mansão dos Buchman, nos dias que antecedem a festa.
Pois muito bem: Jonathan Demme convidou (e fez sua diretora de casting convidar) diversos músicos para participar da festa e do filme. Os músicos ficavam então ensaiando, tocando o tempo todo no próprio set de filmagem – e, ao mesmo tempo em que câmaras iam filmando os atores, outras câmaras filmavam e gravavam tudo o que os músicos iam tocando, improvisando, compondo. Boa parte da trilha sonora do filme foi então composta ali mesmo, ao vivo, durante as filmagens principais. O resultado é extraordinário.
Na zorra total, há espaço até para Cyro Batista e um bando de brasileiras bastantudas e gostosonas, que sambam em Connecticut como se estivessem na Marquês de Sapucaí.
Há também uma bela homenagem a Neil Young: o noivo Sidney – interpretado por esse Tunde Adebimpe, ele mesmo cantor da banda TV on the Radio – canta, a capella, Unknown Legend, do disco Harvest Moon, de 1992 (e o juiz de paz dirá: “pelos poderes a mim investidos pelo Estado de Connecticut – e por Neil Young…”).
No excelente elenco, o fenômeno Anne e a grande Debra
Bem. É preciso falar, um pouco que seja, do elenco – todo excelente, todo extremamente bem dirigido.
Rosemarie DeWitt está ótima como Rachel, a noiva que teme que os problemas da irmã mais jovem empanem o brilho da maior festa da sua vida. Não conhecia a moça; chequei a filmografia, e de fato não tinha visto nada com ela, mas é atriz para a gente prestar atenção.
Anne Hathaway é um desses fenômenos que nos fazer questionar por que a divindade às vezes concentra tanta riqueza em uma pessoa só – um capitalismo danado de selvagem. A moça é linda, tem uma sorte imensa, não pára de ser chamada para papéis importantes em filmes idem. Aos 26 anos em 2008, já fez uma fileira de filmes de sucesso – O Diário da Princesa partes I & II, O Segredo de Brokeback Mountain, O Diabo Veste Prada, Amor e Inocência/Becoming Jane, Passageiros, Agente 86 – e coleciona 11 prêmios e 21 indicações, inclusive a do Oscar.
Mais ou menos com dois terços do filme, o diretor Demme pára sua câmara inquieta sobre o rosto de Anne Hathaway, em close-up.
(Câmara inquieta. Este é o único senão que eu poderia fazer a esse filme bem feitíssimo. Cacilda, precisava de tanta câmara de mão, o tempo todo? Que baita canseira, meu, que saco.)
Mas então a câmara inquieta pára sobre o rosto de Anne Hathaway. Fica só o rosto dela na tela; os outros personagens ao fundo estão absolumente desfocados, para que toda a atenção recaia sobre o rosto da protagonista. Kym, sua personagem, está falando no grupo de Narcóticos Anônimos, revelando exatamente a grande tragédia da família Buchman. É uma tomada bem longa, uma fala muito comprida, tensa, pesadíssima.
É um brilho absoluto. Impossível não apertar o rewind e rever a tomada.
E ainda temos Debra Winger, essa atriz fora de todos os padrões. O texto já está longo demais, e já falei muito de Debra Winger em outros comentários, em especial no sobre A Força do Destino. Mas é preciso relatar uma historinha deliciosa que o diretor Jonathan Demme conta no making of do filme.
Debra Winger é, sabidamente, uma atriz tida como difícil, anti-estrela, anti-Hollywood; é brigona, chata, cheia de opiniões, quer discutir tudo. Então Demme conta que teve um certo medo ao chamá-la para o papel difícil e fundamental de Abby, a mãe das duas moças. Queria chamá-la, claro, porque é uma atriz brilhante, mas tinha um certo medo. No dia da primeira filmagem de que ela participaria – o do longo jantar às vésperas do casamento, em que um bando de gente faz discurso para os noivos –, Debra Winger tentou chamar Demme para um canto dizendo algo como: “Olhe, eu sei que o personagem de Abby tem vários subtextos que explicam seu comportamento…” E Demme retrucou com uma frase tipo: “Debra, à puta que pariu com os subtextos. Faça a cena”. Dois minutos depois – continua o diretor – ele olhou para o lado e viu entrar no set não Debra Winger, a atriz, mas Abby, a mãe da noiva e da drogada.
Outros filmes com Debra Winger neste site: A Força do Destino/An Officer and a Gentleman, 1982; Laços de Ternura/Terms of Endearment, 1983; O Mistério da Viúva Negra/Black Widow, 1987; Terra das Sombras/Shadowlands, 1993; Esqueça Paris/Forget Paris, 1995.
O Casamento de Rachel/Rachel Getting Married
De Jonathan Demme, EUA, 2008
Com Anne Hathaway, Rosemarie DeWitt, Bill Irwin, Tunde Adebimpe, Debra Winger, Anna Devere Smith, Anisa George
Argumento e roteiro Jenny Lumet
Fotografia Declan Quinn
Música Donald Harrison Jr e Zafer Tawil
Produção Marc Platt. Estreou em SP 13/2/2009; em Portugal, 12/2/2009
19/8/2009.
Cor, 113 min
****
Título em Portugal: O Casamento de Rachel
Filme muito bom. Obra rara. Serio, sem delongas.
O filme é bom, mas é muito duro, não tem um momento de alegria; é tenso o tempo todo. Tb acho que eles não eram uma família disfuncional, acho que cada um vivia grandes conflitos internos, e aparentemente isso se dava pelo fato ocorrido, mas penso que os conflitos estavam além e o episódio servia apenas de desculpa pra carregarem seus demônios (ou não). Acho que o filme é uma aula de gente conflituosa: o pai que só pensa em oferecer comida e protege a filha mais nova; a filha mais velha que se ressente do pai e se enciúma da irmã por causa disso; a mais nova que se envolveu com drogas, acha que está todo mundo contra ela e quer ser o centro das atenções mesmo no dia do casamento da irmã mais velha; a mãe, omissa e negligente, que se dava bem com as filhas apenas na superfície. A cena das duas brigando foi um banho de atuação. Chocante! O fato da mãe ir embora do casamento da filha tão cedo foi bastante simbólico e explica muita coisa. Enfim, é um bom filme, mas faltou um pouco de alegria ou pelo menos de leveza àquelas pobres vidas. Nem no momento da notícia da gravidez houve uma alegria por completo. Acho que o cachorro era a única criatura feliz da casa, rsrs.
Concordo com vc, a câmera nervosa é um saco mesmo, irritante. Difícil não ficar tonta.
Muito legal a história dos músicos convidados e a historinha com a Debra Winger nos bastidores. Como sempre, vc nos presenteando com essas particularidades.
Olá, Sérgio.
Assisti hoje ao filme e quis, imediatamente, dar uma olhada na sua opinião sobre ele. Hm, eu entendi seu ponto de vista, mas acredito que ele diz mais do que você expressou. Para mim foi um dos filmes em que mais se deixa que o público interprete e que tenha a chance – real – de se colocar no lugar de cada um dos personagens. Não achei esse drama todo que tu descreveste no post, nem tão triste quanto Jussara o percebeu. Achei simplesmente real, senti-me dentro do filme, fazendo parte da história. Enfim, visões distintas à parte, o filme é realmente primoroso e as atuações estarrecedoras.
Deixo meu post para fomentar, humildemente e apenas, sua reflexão.
Saudações!
Olá, Flávia!
Não acho que nossas visões sejam propriamente distintas, diferentes. Poderiam ser, é claro: nada mais natural e saudável e gostoso que haver visões diferentes. Mas acho que nem chegamos propriamente a discordar. São visões, eu diria, que se complementam, que se somam, sem que uma exclua a outra. Você deu importância a uma face do filme, eu dei a outra, Jussara comentou sobre uma delas. Ou não?
De qualquer forma, é bem interessante essa sua visão, de que o filme é assim uma coisa aberta, que permite que cada um tenha a chance de se colocar no lugar de cada personagem. Na minha opinião, é assim que são as boas obras.
Para quem quiser visitar o belo blog da Flávia, o endereço é http://meuscontextos.blogspot.com/
Sérgio
Quando eu disse triste eu quis dizer infeliz, acho que usei a palavra errada. Na minha opinião eles eram infelizes e atormentados. Alguém ali conseguiu ou iria um dia conseguir realmente ser feliz depois do acontecido? Acho que todos culpavam a “fulana”, mas no fundo se culpavam tb.