3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: O Crime que o Mundo Esqueceu é um filme rico, interessantíssimo. Há momentos em que ele parece doido, confuso, perdido; parece que os personagens não batem bem, que as informações não se ajustam umas às outras, não fazem sentido. É uma impressão ilusória, passageira: no fim, tudo se encaixa perfeitamente.
Nunca tinha ouvido falar do filme – ou, se alguma vez ouvi, tinha me esquecido completamente. Sequer me lembrava de ter visto o DVD nas prateleiras da locadora. Peguei única e exclusivamente porque vi o nome de Debra Winger, essa atriz fantástica, extraordinária, das mais brilhantes que há. Mary ainda comentou que nunca ter ouvido falar do filme poderia ser um mau sinal, sinal de que é uma droga, e por isso ficou obscuro.
Foi total surpresa ver, nos créditos iniciais, que o roteiro é de Arthur Miller, o grande dramaturgo, um dos maiores do século, e que a direção é de Karel Reisz, diretor de respeito; ao final da apresentação, falei que as chances de ser uma droga total tinham caído para perto de zero.
E aí veio aquela impressão de que a história parecia doida, confusa. Mas repito: a impressão se desvanece completamente. É um belo filme, coisa de gente grande.
Estou achando meio complicado falar da trama, porque é o tipo de história que não pode ser estragada, não pode ter revelação, spoiler – ou o prazer de ver o filme será irreversivelmente estragado. Vou falar só dos dez, 15 minutos iniciais, antes de usar o aviso de spoiler.
Um apelo por um preso que teria sido condenado injustamente
O filme abre com Tom O’Toole, o personagem interpretado por Nick Nolte, encontrando-se pela primeira vez com Angela Crispini, o papel de Debra Winger. Angela o conhecia através da televisão – Tom é um detetive particular, um investigador de casos policiais conhecido, de renome, já apareceu várias vezes em telejornais. Angela escreveu para ele, solicitando um encontro, pedindo que ele aceitasse investigar o caso de um rapaz, Felix (Frank Military), que foi julgado e condenado pelo assassinato de seu tio, um médico proeminente naquele pequena cidade da Nova Inglaterra – a cidade é fictícia, mas o filme a situa no Estado de Connecticut.
Angela garante a Tom que o rapaz, Felix, é inocente, que o advogado que o defendeu no julgamento era ruim, desleixado, deixou de usar diversas evidências a favor de Felix, e que o promotor, Charlie Haggerty (Frank Converse) não conseguiu apresentar nenhuma prova contundente, cabal. Tom ainda não se decidiu se aceita ou não investigar o caso, mas vai conhecer Felix na prisão, ao lado de Angela. E ele conhece bem o promotor Haggerty – no passado, os dois já haviam se enfrentado em outros casos.
Angela não diz a Tom os motivos pelos quais resolveu defender Felix. E seu próprio comportamento passa a ser cada vez mais estranho, à medida em que a narrativa prossegue – ela parece absolutamente louca, insana, psicótica.
É uma personalidade extremamente complexa, essa Angela – e que grande acerto foi terem escolhido Debra Winger para o papel. Só uma atriz dotada como ela, capaz de expressar todas as gamas de sentimentos, poderia interpretar, com tanto brilho, aquela mulher que parece atormentada, torturada, louca.
Só pela interpretação de Debra Winger, o filme já valeria a pena. Mas ele tem muito mais a oferecer ao espectador.
O primeiro roteiro de Miller desde Os Desajustados
Leonard Maltin, que detestou o filme, chama a atenção para o fato de que foi o primeiro roteiro que Arthur Miller escreveu desde Os Desajustados, de John Huston, de 1961 – um filme triste e trágico, pelo que mostra e pelo que aconteceu depois de sua realização. Todos os seus principais atores morreram pouco depois do término das filmagens – Marilyn Monroe, que havia sido casada com Arthur Miller, Clark Gable e Montgomery Clift.
Os créditos do filme dizem apenas “screenplay by Arthur Miller”. Há algumas regras a respeito dos créditos de roteiros. Quando se diz “written by”, significa isso mesmo, literalmente, escrito por, ou seja: o argumento original, a história, e também o roteiro, são de autoria da pessoa. Quando se diz “screenplay by”, significa em geral que o roteiro foi escrito por aquela pessoa, mas com base em uma história de autoria de outro. Achei isso estranho desde o início. Não sei por que os produtores e o diretor Karl Reisz não quiseram dizer que o roteiro de Miller se baseava (a informação é dada por Leonard Maltin) em uma peça de sua própria autoria, de um único ato, Some Kind of Love Story.
Se você não viu o filme, é melhor não ler a partir daqui
Arthur Miller é um crítico virulento, virulentíssimo, da sociedade americana, da competição desenfreada, das profundas desigualdades, da injustiça. Seu roteiro deu origem a um autêntico film noir, embora algumas décadas depois da era dos filmes noir, os anos 40 e 50. É intrinsecamente noir, em sua absoluta descrença na Justiça, nas instituições todas; mostra um microcosmo absolutamente atolado na corrupção – e indica que não há saída alguma.
A personagem central, Angela, que nos parece louca, insana, psicótica, só no final revela o que de fato é: uma femme fatale, que é capaz de tudo para conseguir o que quer. Uma femme fatale – exatamente como a Phyllis Dietrichson feita por Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity, como a Cora Smith feita por Lana Turner em O Destino Bate à sua Porta/The Postman Always Rings Twice, ou suas descendentes mais jovens, a Matty Walker interpretada por Kathleen Turner em Corpos Ardentes/Body Heat, e a Rhea Malroux interpretada por Elisabeth Shue em Crime em Palmetto/Palmetto.
Por dois exemplos apenas, dá para ver que a crítica se dividiu sobre o filme. Maltin, tadinho, não entendeu nada, ou não quis entender. Deu 1 estrela em 4: “Detetive particular com um machado para afiar empresta sua reputação profissional a uma puta esquizóide de cidade pequena. O primeiro roteiro de Arthur Miller desde The Misfits (baseado em sua peça de um ato Some Kind of Love Story) resulta nesse fiasco de título que é irônico; Winger tropeça num papel difícil – talvez até mesmo impossível de ser interpretado.” (O título irônico a que ele se refere, claro, é o original, Everybody Wins, todos ganham, todos vencem.)
Já Pauline Kael viu o filme que eu vi. Sua resenha – que está na edição brasileira de seu livro, 1001 Noites no Cinema, com tradução de Sérgio Augusto – é um primor absoluto. Não dá para não transcrever inteiro:
“Este film noir de Karel Reisz, com argumento de Arthur Miller, estreou sem exibições para a imprensa e em geral foi tido como uma fracasso. Lembra teatro de idéias muito bem construído (demonstra que “o sistema” é corrupto), mas também tem um tom alucinatório idiossincrático e desempenhos maravilhosos. O cenário é uma (fictícia) cidade industrial pequena e decadente da Nova Inglaterra; um conhecido médico foi assassinado, e um jovem condenado pelo crime. Afirmando que o jovem é inocente, e que “todo mundo sabe” quem é o verdadeiro assassino, uma sedutora semi-prostituta chamada Angela (Debra Winger) convence um detetive particular, de fora da cidade (feito por Nick Nolte) a examinar o caso. O filme não é sobre o bem vencendo o mal; pergunta: o que está acontecendo? Por que as autoridades municipais conspiraram para condenar o homem errado? A instável Ângela é o mistério principal: que sabe ela? Por que age de maneira tão contraditória? Pode-se acreditar em alguma coisa do que ela diz? Angela não é uma simples mentirosa. É algo novo nos thrillers: é uma femme fatale esquizofrênica, e Winger atira-se ao papel e torna a irracionalidade de Angela apaixonadamente real. Pode-se ver por que o detetive se torna seu amante e vítima. A Angela de Winger é mole, invertebrada e atraentemente prostituída. (O diretor parece deixar que a atriz imponha o ritmo do filme.) Ela esquenta a voz; está menos rouca, mais maternal. (Não há apelação em sua sexualidade; e suas mudanças de personalidade parecem simplesmente naturais.) Nolte, fazendo um católico relapso, sente remorsos como um padre representado por Richard Burton. Angela é ansiosa e intrigante como Marilyn Monroe; o detetive, atraído para uma fantasia erótica, sempre atinge as emoções da moça tarde demais. Durante um breve período, em fins da década de 60 e início dos anos 70, os espectadores de cinema pareciam dispostos a acompanhar um filme seguindo a intuição e a imaginação; se este filme inteligentemente divertido fosse lançado naquela época, poderia ser considerado um clássico menor. (Arthur Miller juntou seu conhecimento sobre Um Inimigo do Povo, de Ibsen, e seu problema com Marilyn Monroe.)”
O cinemão americano emburreceu a partir dos anos 70
Depois de ler um texto dessa mulher, fico com vergonha do que escrevo. Parece composição infantil. Mas paciência.
É especialmente interessante a observação dela de que o cinema americano piorou muito, do início dos anos 70 até 1990, o ano em que este filme foi feito. É o que Roger Ebert também diz, em vários de seus textros. É o que eu, que não sou crítico nem nada, também acho. O cinema americano se infantizou, se emburreceu, ao tornar seu alvo principal o público adolescente, o que mais bota grana nas bilheterias. Há exceções, é claro, mas, de uma maneira geral, houve um emburrecimento imenso nesse período.
Dois registros. Karel Reisz (1926-2002), checo de nascimento, radicado na Inglaterra, foi o autor de poucos e alguns preciosos filmes, como Isadora, com Vanessa Redgrave no papel da bailarina, e A Mulher do Tenente Francês, com Meryl Streep e Jeremy Irons, adaptação do romance de John Fowles, autor também de O Colecionador.
E ainda: titulozinho imbecil, este que os exibidores brasileiros escolheram. Por que, raios, não usar o título original, Todos Vencem?
Bem, mas o que importa é que é de fato um filme fascinante. Tão logo termina, dá vontade de ver de novo, para descobrir mais detalhes, mais camadas, agora que já sabemos o que a narrativa só revela bem no final.
E, mais uma vez, babo diante do talento dessa atriz espetacular. Grande Debra Winger!
O Crime que o Mundo Esqueceu/Everybody Wins
De Karel Reisz, EUA, 1990
Com Debra Winger (Angela Crispini), Nick Nolte (Tom O’Toole), Will Patton (Jerry), Judith Ivey (Connie), Jack Warden (Juiz Harry Murdoch), Kathleen Wilhoite (Amy), Frank Converse (Charlie Haggerty), Frank Military (Felix), Steve Skybell (Padre Mancini), Mary Louise Wilson (Jean)
Roteiro Arthur Miller
Baseado na sua peça Some Kind of Love Story
Fotografia Ian Baker
Música Mark Isham
Produção Film Trustees Ltd, Orion Pictures
Cor, 98 min
***
Ora, eis um filme que não peguei pra ver por causa do título. Imperdoável. Também acho que o cinema norte-americano emburreceu depois dos 70. Os grandes responsáveis pelo emburrecimento me parecem ser os [d]efeitos especiais. Por isso gosto de por a culpa maior em George Lucas!
Acabei de asistir ao filme, que comprei há alguns dias e não tinha visto ainda. Genial!
Concordo que Debra Winger dispensa apresentações. Magnífica! Mas convém ressaltar o trabalho do diretor Karel Reisz. Primoroso! Escreveu um ótimo livro sobre montagem em fins da década de 50 que é referência até hoje. Um autêntico mestre! Nick Nolte também está ótimo.
PS.: o banner lá encima é de ‘Jules e Jim – uma mulher para dois’, de François Truffaut, né?
Só conhecia o filme pela crítica de Kael, e agora o achei em DVD a preço baixo nas bancas, vi-o ontem e achei-o muito bom. Especialmente por Debra Winger, cuja personagem é o centro de tudo. Mas Nolte também está interessante, sendo manipulado, mas sem perder a integridade e a perplexidade. O filme tem uma loucura, um certo clima de atordoamento, que o torna diferente dos policiais noir comum. É muito contemporâneo, é de um cinismo de arrepiar. E sim, o cinema americano caiu demais, ultimamente. Tanto que um espetáculo como “Avatar” pode se orgulhar de uma tecnologia e tanto, mas é de uma miséria intelectual infinita.