A Minha Canção de Amor / My Own Love Song

Nota: ★★★☆

Depois do grande sucesso internacional de sua cinebiografia de Edith Piaf, Piaf – Um Hino ao Amor, o jovem realizador francês Olivier Dahan se meteu a fazer um filme nos Estados Unidos, com base numa história de sua própria autoria. O resultado, este A Minha Canção de Amor/My Own Love Song, um road movie sobre pessoas desajustadas e sofredoras, não chega a ser um grande filme, na minha opinião. Parece um conjunto um tanto descosturado, um tanto irregular, de muitas idéias e boas intenções. Mas tem diversas qualidades.

A primeira grande qualidade: atuações excepcionais. Dahan já havia provado ser um ótimo diretor de atores; a belíssima Marion Cotillard fez uma feia Piaf de babar, e conquistou, merecidamente, um monte de prêmios, inclusive o Oscar, o Bafta e o César. Em A Minha Canção de Amor, Dahan dirigiu Renée Zellweger e Forest Whitaker, dois grandes atores. Suas interpretações são magníficas, brilhantes.

Na sua aventura americana, Olivier Dahan acabou tendo uma sorte grande, além de ter nos principais papéis essa bela dupla. Pensou em encomendar uma canção a um compositor americano, alguém sugeriu ninguém menos que Bob Dylan. Os produtores entraram em contato com os empresários do cara. Dahan disse a Dylan – pelo menos é o que conta – que gostaria que ele visse seu filme sobre Piaf, e Dylan respondeu que já havia visto, e gostado muito.

Sujeito de sorte, o tal Dahan. Além de talentoso, sortudo. Dylan não fez apenas uma canção especificamente para o filme – fez várias, e canta várias. Não são especialmente magistrais – mas são canções de Bob Dylan. As canções menos importantes do sujeito são melhores do que uns 90% do que se produz no universo da música pop.

Na primeira sequência, o rosto de Renné Zellweger em close-up

Parece que o jovem diretor francês (ele nasceu em 1967; estava, portanto, com 42 anos quando fez A Minha Canção de Amor) tem uma ligação especial com a música popular. Depois de fazer o filme sobre a vida do maior mito da canção francesa, escreveu uma história sobre uma mulher que já havia sido cantora, no passado. Quando a narrativa começa, Jane, a personagem de Renée Zellweger, não canta mais – é apenas uma mulher solitária num bar de uma cidadezinha perdida no interior do Kansas.

A primeira seqüência do filme é excelente. A câmara focaliza o rosto de Jane-Renée Zellweger em close-up. Ouvimos a voz de um homem que não aparece no quadro, e que se dirige a ela, num início de papo que sugere que virá em seguida uma cantada. Não é um papo grosseiro, mas também não chega a ser nada original. Ele elogia as mãos dela – havia reparado que ela movimentava as mãos ritmadamente, sobre a mesa do bar, acompanhando a música que vinha do aparelho de som. Pergunta se ela é pianista, se ela é daquele lugar. “Born and raised”, ela responde – sim, nascida e criada naquela pequena cidade de fim de mundo.

A câmara de Olivier Dahan demora para deixar de lado o close-up do rosto expressivo de Jane-Renée Zellweger para mostrar, agora em plano de conjunto, o homem que está ali iniciando a cantada.

Ele a convida para um jogo de sinuca. Ela topa – e afasta um pouco para trás da mesa de bar sua cadeira de rodas.

Muito rapidamente, o homem descobre que tem pressa, que tem que ir embora.

Joey, o personagem de Forest Whitaker, é doido – e acredita em anjos

Essa seqüência inicial, de um realismo cru, seco, me deu a sensação de que a seguir viria uma beleza de filme.

Não vem uma beleza de filme, repito – mas vem um filme que tem muitas qualidades.

É interessante que esse estilo realista, cru, seco da primeira sequência será substituído, quando a narrativa avança, por outros tons bastante distantes desse inicial.

Jane tem um único amigo próximo: Joey (o papel do grande Forest Whitaker), um sujeito desajustado, desempregado, gago, às vezes bêbado, com problemas psiquiátricos e comportamentais, que de tempos em tempos tem ataques de fúria e quebra o que estiver à sua frente. O espectador ficará sabendo que Jane e Joey se conheceram na ala psiquiátrica de um hospital, sete anos antes, na época em que Jane foi internada após o acidente de carro que a deixou paraplégica.

Joey é um espiritualista. Acredita em anjos. Conversa com eles. É fã apaixonado de um escritor de livros de auto-ajuda que incentiva as pessoas a conversarem com seus anjos, um tal de Jeff Nofray (Richmond Hoxie). Nofray vai dar uma conferência em Nova Orleans, e Joey fará tudo para convencer Jane a acompanhá-lo, da cidadezinha deles no Kansas, até o sul de Louisianna, para ouvir a palestra do escritor

Joey descobrirá – e, com ele, o espectador – uma carta de Devon (Chandler Frantz), o filho de Jane, convidando a mãe para ir à primeira comunhão dele, em Baton Rouge. Veremos que, depois do acidente, sete anos antes, Jane parou de cantar e deixou de ter condições de criar Devon, então um garotinho de uns três anos; o menino foi entregue a pais adotivos, e Jane nunca mais o tinha visto.

Doido atrai doido, e à dupla vão se unir mais dois outros desajustados

Vão se pôr na estrada, os dois desajustados sofridos, a cantora que não canta mais e o doido às vezes furioso, às vezes manso. Doido atrai doido, e lá pelas tantas à dupla vai se unir Billie (Madeline Zima), uma jovem meio hippie, meio sonsa, um tanto sonhadora, cujo marido havia um belo dia desaparecido. Passam a viajar os três juntos. Dão uma parada na casa de uma irmã mais velha de Billie, ela também um tanto hippie, que, com um grupo de amigos ripongas, cultiva o amor a fogos de artifício.

E mais adiante o trio vai se encontrar com outro desajustado, dropout, Caldwell (o papel de Nick Nolte, exageradamente exagerado), um guitarrista muito doidão. Caldwell fornece ao trio um bolo à base de um alucinógeno não identificado, e nesse momento o filme, que havia começado com um tom realista, vira uma viagem muito maluca, em que as cores das coisas ficam mais fortes do que no mais colorido dos filmes de Jacques Demy e Agnès Varda.

Depois desse viajandão, surgem no céu de Nova Orleans diversos tipos de pássaros pintados como se fossem desenhos de criança. A meu lado, Mary comentou sabiamente que o diretor de arte do filme tinha tomado um alucinógeno dos bons. Verdade. Provavelmente sobrou para ele um pedaço do bolo do guitarrista Caldwell, que, lá pelas tantas, reconta para Jane, Joey e Billy a lenda do encontro de Robert Johnson com o Diabo, numa encruzilhada.

A cena em que Robert Johnson se encontra na crossroads com o Diabo me fez lembrar, imediatamente, do encontro com o Diabo no delicioso A Marvada Carne.

Bob Dylan, Robert Johnson – e ainda virá uma homenagem a Woody Guthrie

Robert Johnson, the king of the Delta Blues singers, o mais lendário blueseiro da História, numa citação especial. Bob Dylan, o maior gênio da música pop mundial da segunda metade do século XX como autor da trilha sonora. Já não era necessário mais nada, mas Olivier Dahan não é homem de se contentar com muito – tem que ser demais. E então haverá ainda uma interpretação única, inigualável, diferente de todas as 20 que a gente já conhecia, da mais emblemática folk song do maior nome da folk song, Woody Guthrie, o homem que o jovem Dylan imitava abertamente no iniciozinho de sua carreira.

A interpretação de Renée Zellweger de “This Land is Your Land” é sensacional, extraordinária. A rigor, a rigor, nem precisava de todo o resto. A Minha Canção de Amor já valeria só pela sequência inicial, no bar da cidadezinha do Kansas, e a interpretação que Renée Zellweger faz da música-símbolo dos ideais libertários e igualitários de gerações de americanos bem intencionados, dos Weavers a Bruce Springsteen.

Interessante: há algo dos clips de Bruce Springsteen no início dos anos 80 no filme americano do francês Olivier Dahan. Aquelas seqüências de rostos de gente comum, gente do povo, quando a narrativa se aproxima do fim, tem muito a ver com velhos clips de Bruce. Um amor apaixonado pela pessoas comuns, que não têm culpa alguma pelas políticas equivocadas, às vezes assassinas, daquele país que até hoje é o maior Império que já houve na História.

Pessoas extremamente sofridas, mas que ainda assim perseguem a felicidade

Parece que o diretor queria contar uma história de pessoas que enfrentam problemas sérios na vida, uma dureza sem conta e sem fim, mas que, mesmo assim, buscam algum tipo de esperança, de alegria.

O filme é isso, sim: um road movie de pessoas desajustadas e sofridas que ainda têm forças para perseguir a felicidade.

Mas acaba tendo tantos elementos díspares, disparatados, que deixa aquela sensação de obra irregular, um tanto descosturada.

No entanto, mesmo assim é – repito mais uma vez – um filme que tem muitas qualidades.

Anotação em fevereiro de 2012

A Minha Canção de Amor/My Own Love Song

De Olivier Dahan, EUA-França, 2010

Com Forest Whitaker (Joey), Renée Zellweger (Jane Wyatt), Madeline Zima (Billie), Nick Nolte (Caldwell), Elias Koteas (Dean), Annie Parisse (Nora), Chandler Frantz (Devon), Richmond Hoxie (Jeff Nofray)

Argumento e roteiro Olivier Dahan

Fotografia Matthew Libatique

Canções originais Bob Dylan

Produção Légende Films. Blu-ray e DVD Califórnia Filmes.

Cor, 102 min

***

2 Comentários para “A Minha Canção de Amor / My Own Love Song”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *