4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1997: Primeira observação: é um filme, como tantos de Woody Allen, que a gente não quer que termine. É beleza pura, gozo puro; o espectador fica triste ao perceber que está se caminhando para o fim. Eu queria mais, eu queria três vezes mais.
Segunda: meu Deus do céu e também da terra, como de fato ele está feliz da vida, depois que se livrou de Mia Farrow. Como ele está distante da fase Bergman-Fellini; como vão longe os Interiores, A Outra, Crimes e Pecados. Não que os filmes dessa fase sejam ruins. Não são, de forma alguma; são excelentes. Mas que bom ver que esse gênio voltou a se dedicar a cantar os prazeres da vida, e não as angústias.
Terceira: embora tenha abandonado a fase Bergman-Fellini, Woody Allen, do alto de gloriosos 61 anos de idade, percebeu que é mais europeu do que americano; que é mais admirado na Europa do que no seu próprio país, onde a inteligência anda cada vez mais escassa. Pela primeira vez em 25 anos de filmes anuais, se transporta para Paris e Veneza, opta por um final europeu em vez de em Nova York; ainda ama Nova York, é claro – e as declarações de amor a Nova York continuam tão apaixonadas como sempre, e tão belas quanto sempre, mas agora seu personagem escolheu Paris, e ele escolheu Paris para terminar o filme.
A história gira em torno de uma família riquíssima, que mora numa gigantesca cobertura na Park Avenue. Tranquilo sinal dos tempos, o casal está no segundo casamento. Bob (Alan Alda), advogado, democrata, liberal ao extremo, tem um casal do primeiro casamento, Skylar (Drew Barrymore) e um rapaz cujo nome (de ator e de personagem) esqueci, que tem idéias republicanas, para completo desgosto do pai. (Mais para o fim do filme, saberemos que ele andou tendo um problema de saúde; era por causa de pouco sangue no cérebro que ele tinha virado republicano!) Steffi (Goldie Hawn), também advogada, democrata e liberal com excesso de culpa, como diz a narradora, teve no primeiro casamento DJ (Natasha Lyonne), que é a narradora do filme.
No atual casamento, Bob e Steffi tiveram duas filhas gêmeas, que estão agora adolescentes, com 13, 14 anos. Todos moram juntos, mais o avô esclerosado de 88 anos, pai de Bob, e mais a governanta alemã, o protótipo da alemã rígida, mandona, uma sargentona da Gestapo. O primeiro marido de Steffi e pai de DJ é Joe Berlin (o personagem de Woody Allen), escritor que mora em Paris há anos.
No início do filme, Allen está visitando a ex-mulher; todos se dão bem; a narradora chega a dizer que há uma tese segundo a qual Allen nunca deixou de amar Steffi. Naquele momento, Allen está deprimidíssimo porque foi abandonado pela namorada. Steffi critica as escolhas que ele já fez na vida (inclusive ela, claro): uma ninfomaníaca, uma drogada, etc, etc. Todos resolvem ajudá-lo a procurar uma nova paixão. Que acaba surgindo num toque de mestre do Allen argumentista: é a lindíssima estudante de arte Von (Julia Roberts), cujas sessões de psicanálise são xeretadas por DJ, as gêmeas e as amigas das gêmeas, num buraco de parede que separa a casa das amigas do consultório da mãe delas, uma psicanalista. DJ passa para Allen todas as fantasias de Von, e, quando os dois se encontram em Veneza, ele incorpora o príncipe encantado, a alma gêmea que ela procurava a vida inteira.
Há montanhas de citações dele mesmo. A filha do personagem que ele interpreta ouve, com as colegas, os segredos da paciente para a analista (como em A Outra); o personagem dele é o mesmo de sempre, o intelectual judeu nova-iorquino cheio de dúvidas, sempre aberto a novas paixões, sempre destruído após cada fim de relacionamento.
Ao contrário do que fez na fase amarga, não bate de frente contra a alta burguesia da capital do mundo. Em vez de condená-la totalmente (como fez nos filmes finais da fase Mia Farrow, Simplesmente Alice mais do que todos), os mostra como seres humanos normais, não necessariamente maus pelo fato de serem ricos, mas apenas se sentindo culpados por existir tanta injustiça social; mesmo as farpas contra a distância entre intenção e gesto a favor dos injustiçados (o ex-presidiário é absolutamente bem-vindo à casa, mas vira criminoso quando a filha se envolve com ele) são doces, são gentis, não são avassaladoras.
A inconstância dos casais, o fato de os casamentos perecerem, que já foram mais pesados, como em Hannah e suas Irmãs, agora são vistos com mais tranquilidade, mais doçura. A convivência gostosa com a ex-mulher (ou o ex-marido) já aparecia no passado, no próprio Hannah, e foi motivo de ode em A Era do Rádio, na estupenda cena em que Diane Keaton canta, mas nunca foi tão forte quanto aqui. A cena da dança dos ex-casados Woody Allen e Goldie Hawn junto ao Sena, ela subindo aos céus, literalmente, é inesquecível, belíssima, emocionante.
Mas a prova maior do prazer que Woody Allen está sentindo na vida é a homenagem ao filmusical. As cenas de dança e canto são excepcionais, belíssimas, brilhantes. A cena da joalheira é uma maravilha. A do hospital, mais ainda – e aí ele deve ter se lembrado de All That Jazz. E a mais forte de todas é a do avô saindo do caixão e dançando com os outros mortos – a vida é muito curta, e é preciso aproveitá-la bem. Paul McCartney certamente choraria de emoção; life is very short for fussing and fighting, my friend, como ele já dizia quando era garoto.
Woody Allen já era um dos maiores gênios do cinema. Aqui, com seus números em homenagem ao filmusical, embora na verdade ele provavelmente estivesse pensando em George Sydney, Vincente Minnelli e Stanley Donen, ele chega a um nível que só tem comparação com Cabaret e All That Jazz de Bob Fosse e com o Hair do mestre Milos Forman.
Eis o textinho que fiz para a revista Barbara:
Depois que se livrou de Mia Farrow, Woody Allen ficou feliz da vida. Todos Dizem Eu Te Amo, o quarto filme dele depois da ruidosa separação do casal, é uma linda, inspiradíssima celebração dos prazeres da vida e uma deliciosa homenagem aos velhos musicais. A inconstância dos casais, o fato de os casamentos perecerem, agora são vistos pelo artista com mais tranquilidade, mais doçura. Ele mostra com graça e leveza esse fenômeno tão típico do nosso tempo, a nova família, que reúne filhos de diversas uniões do passado, e elogia o prazer da convivência gostosa com a ex-mulher. As cenas de dança e canto são excepcionais, belíssimas, brilhantes. Do alto de 61 gloriosos anos, Woody Allen tem a dizer que a vida é muito curta, e é preciso aproveitá-la bem.
Todos Dizem Eu Te Amo/Everyone Says I Love You
De Woody Allen, EUA, 1996.
Com Woody Allen, Alan Alda, Goldie Hawn. Julia Roberts, Drew Barrymore, Natasha Lyonne, Edward Norton, Natalie Portman
Argumento e roteiro Woody Allen
Casting Juliet Taylor
Música Dick Hyams
Cor, 101 min
Que delícia assistir a este filme!
Na primeira produção com cenas musicais de sua carreira, Allen as faz melhor que muitos ‘especialistas no gênero’ trazidos da Broadway! Serve para mostrar o quanto ele domina as técnicas de fazer cinema e a facilidade que tem em aplicar seu gênio às mais surpreendentes variações de filmes.
Como a mesma pessoa pode ter dirigido títulos autorias como ‘Zelig’ e ‘Melinda & Melinda’, dramas como ‘Match Point’ e ‘Cassandra’s Dream’, clássicos como ‘Manhattan’ e também um musical tão bem executado como ‘Todos Dizem Eu Te Amo’?
Woody Allen é um gênio!