As Aventuras de Tom Jones / Tom Jones


Nota: ★★★☆

Anotação em 2009: O tom de farsa que o diretor Tony Richardson usou no seu As Aventuras de Tom Jones, de 1963, é tão, mas tão exagerado que pode até mesmo assustar, chocar o espectador – ou cansá-lo.

Mary, ao meu lado, se cansou um pouco, em especial na primeira parte. Achou algumas coisas meio bobas. Eu não: gostei bastante de rever o filme, tantos anos depois (tinha visto adolescente, umas duas vezes em seguida). Mas de fato Richardson exagerou muito – é uma coisa tão exagerada, tão escrachada, tão irreverente diante de absolutamente tudo, tão demolidor, que, na comparação, as besteiras de Mel Brooks ficam parecendo até meio sisudas.

O diretor exagerou na farsa e também nas brincadeirinhas de linguagem. Tem de tudo que se possa imaginar. A abertura, por exemplo – mostrando quem é o nobre Allworthy (George Devine), rico proprietário de terras no interior da Inglaterra por volta de 1740, e como um dia ele descobre um bebê bastardo em sua própria cama, e resolve adotá-lo como filho, com o nome de Tom Jones –, é feita como se fosse um filme mudo, com as legendas daqueles primórdios. Há os fade outs em que o quadro vai ficando negro em torno de um pequeno círculo onde aparece determinado personagem, um recurso que também foi muito usado nas primeiras décadas do cinema. Há aquela brincadeira de, às vezes, de repente, um ator deixar de lado a ação para se dirigir diretamente ao espectador, olhando para a câmara. Há aquele recurso de acelerar as imagens, fazendo os personagens correrem feito atletas nos cem metros rasos, também lembrando os mais antigos filmes mudos.

A uma certa altura, quando Tom Jones está fazendo brincadeiras com Sophie Western (Susannah York), a filha do nobre vizinho de Allworthy, Tony Richardson usa um recurso fantástico, de colocar a câmara se movimentando para a direita, mostrando Tom Jones, depois Sophie, depois Tom Jones de novo mas já com outra roupa e em outro ambiente, e depois Sophie de novo também em outro ambiente – sem que o espectador perceba o corte, um efeito que transforma aquilo numa seqüência sem fim.

E aí, por causa disso, o filme pode parecer um tanto datado. Pessoas que não o viram na época, que vêem agora pela primeira vez, e não levarem em consideração o contexto, podem perfeitamente achá-lo chato, bobo. É o velho problema das obras que usam e abusam de truques, de brincadeiras formais – podem parecer datadas. O que é clássico – que alguns criticam como acadêmico, caretão – dura para sempre, não envelhece. As experimentações ficam datadas.

         Era a época da experimentação, do tudo novo

atom2Mas Tom Jones é de 1963, é da época da experimentação. Experimentava-se muito; Godard fazia as experiências subversivas de linguagem à maneira dele, Resnais fazia à sua própria maneira, Gláuber Rocha, na dele. Era a época do tudo novo, aqueles fins dos anos 50 e início dos 60: bossa nova, nouvelle vague, cinema novo, corte de cabelo novo, tipo de roupa nova. A nova geração de cineastas e atores ingleses queria distância do que tinha sido feito nas Ilhas Britânicas até então, que para eles era convencionalismo, caretice, academicismo, velharia. Em vez de usar o adjetivo “novo”, no entanto, os ingleses usaram o “free” para designar o que faziam: free cinema, cinema livre. Dá na mesma.

Um ano depois de Tom Jones, Richard Lester faria A Hard Day’s Night, com aqueles quatro garotos jovens, todos com menos de 25 anos de idade, que estavam mexendo em todos os padrões até então conhecidos da música pop – uma narrativa aparentemente toda descosturada, descozida, brincalhona, anárquica, despropositada. E continuaria a experiência no filme seguinte com o grupo, Help!, de 1965. O jovem Brian De Palma, acabando de se formar em curso de cinema, faria brincadeiras como essas de Tony Richardson e Richard Lester nos seus primeiros filmes, Greetings, de 1968, que no Brasil saiu em vídeo como Quem Está Cantando Nossas Mulheres, e Festa de Casamento/The Wedding Party, lançado em 1969.   

Aqui, Domingos Oliveira faria experimentações, brincadeirinhas de linguagem semelhantes nos seus dois primeiros filmes, Todas as Mulheres do Mundo e Edu Coração de Ouro, os dois de 1967.

Uma comédia de 1749, épica, desinibida, safada

O filme se baseia no romance Tom Jones, lançado em 1749, uma teba, um gigantesco relato de mais de 600 páginas em corpo pequeno na edição brasileira de 1971 que eu tenho e nunca tomei coragem de ler. O autor, Henry Fielding (1707-1754), foi chamado por Sir Walter Scott, o autor de Ivanhoe e Rob Roy, de “o pai do romance inglês”. E seu Tom Jones foi descrito como uma “comédia épica”. Não posso falar do livro, mas de fato a história mostrada no filme é uma comédia épica – épica porque grandiosa, um gigantesco afresco da sociedade inglesa da época, tanto a do campo quanto a de Londres, com dezenas de personagens, dos riquíssimos aos paupérrimos.

Sobre Fielding, diz a vetusta Encyclopaedia Britannica: “Embora a rigor não tenha sido o primeiro romancista inglês, ele foi o primeiro a abordar o gênero com uma teoria do romance completamente elaborada. (…) Durante sua vida uma figura controvertida, Fielding foi em geral visto pelos vitorianos (do final do século XIX) como um escritor “ofensivo à delicadeza”. O que é impresionante hoje, além de sua comédia desinibida, é a extensão de suas simpatias, suas preocupações com a moralidade, e sua compaixão pelas fraquezas humanas.”

Sensacional, isso aí. Então, nos reprimidos e repressores tempos da Rainha Vitória (ela reinou entre 1837 e 1901), os ingleses em geral achavam que Fielding ofendia a delicadeza. E o texto da Britannica, escrito nos anos 80, chamava seus romances de “desinibidos”.

De fato, a história de Tom Jones é cheia de safadeza; para falar em português claro, é uma trepação só. Ao menos na versão do diretor Richardson e do roteirista John Osborne (1929-1994), ele próprio um dramaturgo e escritor de grande sucesso, um crítico ferrenho do Establishment, assim como os diretores e atores do novo cinema inglês do finalzinho dos anos 50 e início dos 60, Tony Richardson e Albert Finney à frente. Osborne foi o autor da peça Look Back in Anger, tida hoje como um marco do teatro inglês; a peça estreou em 1956, e em 1958 foi filmada pelo próprio Richardson, com Richard Burton e Claire Bloom. A partir dela foi que se criou a expressão “angry young men”, para designar os jovens raivosos e rebeldes daquela época, os antecessores da geração roqueira e psicodélica que surgiria nos anos 60. Os próprios diretores e atores do novo cinema inglês levaram essa denominação de angry young men. 

Uma imensa galeria de tipos cerca o nosso herói

Estou falando de diversos assuntos ao mesmo tempo; o texto está como que ficando cheio de parênteses e colchetes e mais parênteses, mas é que há muito para se dizer sobre a época em que Tom Jones foi feito, o contexto que cerca o filme.

Então vamos no mínimo a uma sinopse básica, pelo amor de Deus.

atom5Tentei me valer do Cinéguide francês, que traz sinopses curtíssimas, sintéticas, mas não deu. O que o guiazão de 18 mil filmes diz sobre Tom Jones, além do fato de que ele foi distribuído na França com o incrível título de Entre l’Alcôve et la Potence, entre a alcova e o patíbulo, a forca, é o seguinte: “Comédia de costumes. Baseado no romance satírico e libertino de Fielding, situado na Inglaterra do século XVIII.”   

 Basicamente, é isto que até já foi dito em parte: na Inglaterra de 1740, o fidalgo Allworthy, rico proprietário de terras, ao voltar para seu castelo no interior após uma temporada em Londres, descobre um bebê bastardo em sua própria cama, e resolve adotá-lo como filho, com o nome de Tom Jones. Um corte no tempo, e temos Tom Jones rapagão de uns 20, 25 anos, um tanto folgadão, alegre, despreocupado, vivendo o doce ócio dos jovens ricos no castelo do pai adotivo. Uma das muitas empregadas da propriedade, Molly (Diane Cilento, na foto acima), inicia o rapaz nos folguedos do sexo, mas as atenções maiores dele são para a bela vizinha  

Sophie (Susannah York, nas fotos abaixo), a filha de outro rico proprietário de terras, Western (Hugh Griffith), por sua vez um viúvo absolutamente hedonista, apaixonado pela caça, por seus cachorros, seus animais, sem qualquer tipo de preocupação com boas maneiras, educação, refinamento.

Em torno de Tom Jones há uma imensa galeria de tipos. Temos a irmã do fidalgo Allworthy, Bridget (Rachel Kempson), que se casa e tem um filho, Blifil (David Warner); o marido de Bridget morre logo, e a própria Bridget também passará desta para melhor quando ainda estamos com cerca de meia hora de filme. Dessa maneira, sobrevivem o fidalgo Allworthy, seu filho de adoção e seu sobrinho. Os dois, Tom Jones e Blifil, são opostos em tudo, conforme vamos vendo e vai nos relatando um narrador, com um texto delicioso, safado, gozativo, e uma ótima voz (do irlandês Micheál Mac Liammóir): enquanto Tom é aquilo que já foi dito, um garotão folgadão, etc, Blifil é o estudioso, o compenetrado, o bem vestido, o devoto à religião – o chato de galocha.

Em torno deles há dois tutores – tipos grotescos, gananciosos, que, evidentemente, sempre que puderem tomarão partido de Blifil contra Tom Jones.

atom1A primeira parte do filme se desenrola ali, no interior, no campo, na propriedade de Allworthy e na de seu vizinho Western. Depois haverá uma parte nas estradas inglesas – sim, há um trecho de road movie – e em seguida em Londres. Tanto nas estradas quanto em Londres surgirão mais e mais personagens, numa trama intrincada como de um bom folhetim.

         Tudo longe do realismo – é sátira, é farsa

Pois muito bem. Nas últimas décadas, temos visto dezenas de filmes retratando a vida inglesa, tanto no campo quanto na capital, nos séculos XVII, XVIII e XIX. Mas o que vemos nesses muitos filmes – como, por exemplo, os diversos baseados nas obras também clássicas de Jane Austen – tem muito pouco a ver com o que Richardson e Osborne mostram, baseados na história de Fielding. Há uma diferença no tom que faz todos esses filmes tão distantes de Tom Jones quanto o caráter de Tom Jones é distante do caráter de Blifil. Em alguns pontos eles se parecem: em todos há sempre presente uma crítica daquela sociedade formal demais, daqueles valores muitas vezes hipócritas, da absurda distância entre as classes sociais, a absurda injustiça. Mas a forma de mostrar isso é antípoda uma da outra. Enquanto Orgulho e Preconceito, A Duquesa, Amor e Inocência, Razão e Sensibilidade, etc, retratam – e criticam – aquela sociedade com um tom sério, realista, isto aqui é sátira. Mais que sátira, é farsa. É tudo exagerado, escrachado, como se dizia lá no início.

(Sátira: “crítica das instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos”; “o ataque é a sua marca distintiva, a insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica”. Farsa: “o exagero do cômico, graças ao emprego de processos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a caricatura, o humor primário, as situações ridículas”. As lições são do professor Massaud Moisés.)

Não estou fazendo, aqui, nenhuma defesa de uma forma de relato em detrimento da outra. Apenas quero realçar a profunda diferença. E o fato é que, como estamos mais acostumados ao tom mais sério, podemos nos assustar com a irreverência, o deboche com que se contam as aventuras de Tom Jones.

Ao contar as aventuras de Tom Jones, o que se faz é criticar tudo, absolutamente tudo na sociedade inglesa: o abismo entre as classes, o classismo, as convenções da sociedade, o falso moralismo (todo mundo é safado da mesma maneira, ricos e pobres, mas os ricos podem ser safados; os pobres não têm esse direito). 

         Um dos fundadores do free cinema

atom3De volta a Tony Richardson. “Com Lindsay Anderson e Karel Reiz, foi um dos fundadores do free cinema, que ocupou, na Inglaterra, o lugar da nouvelle vague na França”, define Jean Tulard, no seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “No teatro, revelou John Osborne; no cinema, assinou dois filmes que marcaram época na produção britânica: Odeio Essa Mulher/Look Back in Anger e O Anfitrião/The Entertainer, o primeiro com Burton, o segundo com Olivier, ambos baseados em Osborne.”

Aí Tulard diz que Richardson renunciou a seus princípios indo fazer em Hollywood a adaptação de O Santuário, de William Faulkner. “Reencontra-se com The Loneliless of the Long Distant Runner, verdadeiro manifesto dos ‘jovens furiosos’ e apelo à revolta. Essa mesma ousadia na crítica pode ser encontrada sob uma forma mais acessível ao público em A Carga da Brigada Ligeira: a imbecilidade dos generais e a inutilidade dos atos de heroísmo são aqui trazidos à luz através de um episódio histórico já filmado por Michael Curtiz. A Forca Será Tua Recompensa/Ned Kelly, história de um bandido australiano do fim do século XIX, é do mesmo estilo, uma sátira virulenta e belas imagens através da história de um malfeitor bem-amado. Tom Jones foi, contudo, no conjunto da obra de Richardson, seu filme mais popular em virtude de sua desenvoltura e apesar do abrandamento da questão social do romance de Fielding.”

Epa! Abrandamento da questão social? Aqui o bom Tulard pirou. A coisa social é fortíssima em Tom Jones, ao longo de todo o filme, em cada seqüência. Só as seqüências em Londres, bem para o final, as ruas, a prisão, a multidão que se comprime para ver um espetáculo no cadafalso – as diversas tomadas de rostos dos miseráveis – valem por dez tratados sobre injustiça social; Charles Dickens aplaudiria de pé, Serguei Eisenstein e os homens do neo-realismo italiano também.

         Espetacular, chocante, provocador

Ainda teria muito para se dizer sobre Tom Jones, embora o texto já esteja grande demais. Vou então tentar resumir em alguns tópicos:

* A seqüência numa estalagem em Upton, à beira da estrada rumo a Londres, em que Tom Jones e Mrs. Waters (Joyce Redman) atracam-se com grandes nacos de comida em meio a goles de vinhos e olhares lânguidos, a satisfação à mesa como preliminar para o sexo, é absolutamente espetacular, chocante, provocadora; na minha opinião, só essa seqüência vale mais do que tudo que Chabrol fez na vida;

* Ainda nas seqüências dessa mesma estalagem, aparece, sem qualquer destaque, quase imperceptível, a atriz Lynn Redgrave. Estava então com 20 anos. Um ano antes, o diretor Tony Richardson havia se casado com a irmã mais velha de Lynn, Vanessa Redgrave, esse tesouro, esse monumento do cinema. Lynn e Vanessa eram filhas de outro monumento, o ator Michael Redgrave (1908-1985). Tony e Vanessa são os pais das atrizes Natasha Richardson e Joely Richardson; Natasha, excelente atriz como a mãe, mulher do Liam Neeson, morreu em março de 2009, depois de um acidente enquanto esquiava no Canadá.

* O filme ganhou quatro Oscars importantes: melhor filme, melhor direção, melhor roteiro adaptado, melhor trilha sonora para John Addison – uma trilha sonora interessante, toda feita para acompanhar o tom farsesco da trama, uma música cômica. Teve ainda cinco outras indicações, inclusive melhor ator para Albert Finney, ator coadjuvante para Hugh Griffith e nada menos que três indicações para o prêmio de atriz coadjuvante: Diane Cilento, Edith Evans e Joyce Redman. Além dos Oscars, Tom Jones teve 17 prêmios e outras 17 indicações. 

 * Albert Finney, claro, teve e tem uma carreira monumental, com cerca de 60 filmes e ou episódios para a TV – e ainda se manteve sempre ativo como ator nos palcos do West End londrino. (Tive a honra de vê-lo atuando em 1990, no Wyndham’s Theatre, na peça Another Country.) Susannah York, linda, maravilhosa, maior gracinha, lábios imensos muito antes de Angelina Jolie e gigantescos, faiscantes olhos azuis, fez menos filmes do que deveria, na minha opinião – ou no mínimo menos filmes bons ou importantes. Seus melhores trabalhos foram mesmo nos anos 60: esteve em Freud, Além da Alma, de John Huston, de 1962; em O Homem que Não Vendeu Sua Alma/A Man for All Seasons, de Fred Zinnemann, de 1966; em A Noite dos Desesperados/They Shoot Horses, Don’t They?, de Sydney Pollack, de 1969. Depois foi a mãe do Super-Homem (o pai era Marlon Brando) em Superman, de 1978, e Superman II, de 1980.  

As Aventuras de Tom Jones/Tom Jones

De Tony Richardson, Inglaterra, 1963

Com Albert Finney, Susannah York, Hugh Griffith, George Devine, Edith Evans, Joan Greenwood, Diane Cilento, Lynn Redgrave

Roteiro John Osborne

Baseado no romance de Henry Fielding

Música John Addison

Produção Woodfall Film Production

Cor, 128 min

R, ***

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