4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este filme está sendo bem faladíssimo por todo mundo, e não é para menos. É uma obra-prima, um dos mais belos filmes que vi dos últimos tempos. É impressionante como o diretor Yôjirô Takita e o roteirista Kundo Koyama conseguiram fazer um filme que fala sobre morte o tempo todo, que mostra corpos de mortos ao longo de seus 130 minutos, e é tão suave, doce. É denso, sério, mas nunca opressivo, pesado. Muito ao contrário: o espectador sai do filme leve, admirado, pacificado – e um pouco diferente do que era antes de ver o filme.
Falei de 130 minutos de duração. É incrível: há filmes de 90 minutos que demoram a passar. Este aqui passa rápido, a gente não percebe que ele tem mais de duas horas, tamanha a beleza de tudo, tamanha a sensibilidade, a sabedoria, a beleza espetacular.
É um daqueles filmes raros em que todos os pequenos detalhes, tudo, tudo se encaixa com perfeição; não há nada sobrando, não há uma tomada que poderia ser dispensada, um movimento de câmara desnecessário; cada elemento é importante para compor o todo.
A primeira tomada do filme mostra uma paisagem quase absolutamente branca: numa estrada cheia de névoa, com neve caindo e neve no chão, um carro avança. Veremos dentro dele um rapaz, de uns 30 e poucos anos, e um senhor de uns 65, 70. O rapaz é o narrador; veremos que ele se chama Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki); ele conta que menos de dois meses antes voltou de Tóquio para sua cidade natal, Yamagata.
Daigo e o senhor de idade, Sasaki (Tsutomu Yamazaki), ambos vestindo ternos pretos, estão sendo esperados na casa de uma família que perdeu a filha; diante da família, o rapaz começa o trabalho de limpar o corpo da moça, para em seguida vesti-la e maquiá-la, e enfim colocá-la no caixão. É um trabalho que ele executa com rigor, atenção, cuidado, suavidade – quase como uma gueixa preparando e servindo o chá.
Depois dessa seqüência, longa, há um corte, e vemos uma apresentação de uma orquestra executando o quarto movimento da Nona de Beethoven, a Ode à Alegria. Daigo Kobayashi é um dos violoncelistas da orquestra. Há pouca gente na platéia. Os músicos estão reunidos após a apresentação, arrumando seus instrumentos, preparando-se para ir embora, quando entre no salão o homem que financia a orquestra, e anuncia, com uma única frase, que ela está dissolvida.
Daigo dá a notícia à sua jovem mulher, Mika (Ryoko Hirosue), e diz a ela que acha melhor deixar Tóquio e voltar para sua cidade natal; sua mãe, morta não muito tempo atrás, deixou para ele a casa da família, onde também funcionou, no passado distante, um café. Mika reage à decisão com um grande sorriso e a total aprovação com a decisão do marido.
Em Yamagata, Daigo verá num jornal um anúncio de uma agência chamada NK, que cuida de partidas, e tem uma vaga. Daigo imagina que seja uma agência de turismo, vai até lá, e o patrão, Sasaki, o contrata de imediato, antes mesmo de explicar a ele de que tipo de partidas eles cuidam.
Aprendizagem, descobertas, crescimento espiritual
Estamos aí com uns 15, no máximo 20 minutos de filme. O que virá a seguir é uma bela história de aprendizagem, descobertas, crescimento espiritual, que começa com muita dor, angústia, quase horror, mas leva a uma maior compreensão da vida e do mundo.
Todos os personagens secundários que vão aparecer na história de Daigo e Mika são interessantes, bem construídos, de carne e osso, de três dimensões: a secretária da agência, a velha senhora que mantém a casa de banhos apesar da oposição do filho funcionário público, que gostaria de vender o lugar, o senhor idoso que freqüenta religiosamente a casa de banhos. O personagem do patrão de Daigo, Sasaki, é extraordinariamente rico
As atuações de todos os atores são ótimas; o ator que faz Daigo, Masahiro Motoki, tem um desempenho extraordinário, assim como Tsutomo Yamazaki, que faz o patrão.
A trilha sonora é brilhante, marcante, como seria mesmo de se esperar para um filme cujo protagonista é um celista que tem a consciência de não ter o talento necessário para viver de música. O autor da trilha é Joe Hisaishi, que trabalhou para 70 filmes, inclusive vários de Takeshi Kitano, um dos mais conceituados diretores japoneses em atuação. Eu já conhecia o trabalho dele para outros filmes – é um dos grandes compositores de trilha sonora de todos os tempos. Algumas de suas músicas não têm nada de oriental; ao contrário, demonstram influência da música erudita européia. Em outros temas, ao contrário, a sonoridade é absolutamente oriental. Ou seja: é um artista eclético, faz o que quiser – assim como, por exemplo, Ryuichi Sakamoto.
Vejo agora no livro Trilhas Sonoras, de Guilhermo de Martino (Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2008), que o compositor, “bastante ligado à música moderna e minimalista, projetou seu nome no mercado internacional com o sucesso dos filmes de animação de Hayao Miyasaki”. São dele as trilhas dos desenhos Princesa Mononoke, de 1997, e A Viagem de Chihiro, de 2001.
A sabedoria que seria de se esperar de autor mais velho
A narrativa é de uma suavidade impressionante, e as imagens que o diretor Yôjirô Takita capta da natureza, nas cenas de exteriores, são profundamente belas.
Não vi nenhum dos outros filmes de Takita – nascido em 1955, já dirigiu mais de 40 obras. Também não tenho informação alguma sobre Kundo Koyama, autor da história e do belo roteiro do filme, a não ser que nasceu em 1964, o que em si já é espantoso, porque a sabedoria que ele demonstra seria de se esperar de alguém bem mais velho.
A Partida levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009 (filmes produzidos e exibidos em 2008). Levou dez prêmios da Academia Japonesa, inclusive os de filme, direção, roteiro, ator para Masahiro Motoki, ator coadjuvante para Tsutomo Yamazaki e fotografia para Takeshi Hamada. No total, o filme ganhou 32 prêmios mundo afora.
Detalhe mínimo: não sei se o título original japonês, que na transposição para o alfabeto ocidental é Okuribito, é plural ou singular. Os exibidores brasileiros escolheram A Partida; mas acho o plural, como ficou em inglês, Departures, é mais exato; não é de uma partida especifícia que o filme trata – são partidas, sim, no plural. (Um acréscimo: segundo explica Miyuki, em excelente e muito bem-vindo comentário – ver abaixo -, okuribito significa “pessoa que leva”, “aquele que leva”. Segundo explica Ricardo D, em outro comentário abaixo, o verbo “okuru” é “enviar” e não “levar”; e “okuribito” seria “agente de partida.)
Vejo, depois de fazer a anotação acima, que Roger Ebert fez uma boa observação, parecida com o eu que eu tentei dizer sobre os personagens secundários: “O diretor Yôjirô Takita e seu diretor de elenco suplantaram-se. Em um filme com quatro papéis principais, encontraram atores cujas faces, tão humanas, personificam o que Departures quer dizer sobre eles… A música é exuberante e sentimental numa forma contida, a fotografia tem enquadramento perfeito e evocativo, e o filme é absorvente de uma maneira incomum.”
É de fato uma obra-prima, um brilho de filme, desses que alimentam o espírito, nos deixam pessoas um pouquinho melhores depois da experiência de vê-los.
A Partida/Okuribito
De Yôjirô Takita, Japão, 2008
Com Masahiro Motoki (Daigo Kobayashi), Tsutomo Yamazaki (Ikuei Sasaki), Ryoko Hirosue (Mika),
Argumento e roteiro Kundo Koyama
Fotografia Takeshi Hamada
Música Joe Hisaishi
Produção Amuse Soft Entertainment, Asahi Shimbunsha. Estreou no Brasil 5/6/2009
Cor, 130 min
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Caro Sergio Vaz,
Parabéns pelo seu belo trabalho! Tenho usado esta página como ferramenta de pesquisa, e estou a cada dia me apaixonando mais pelo cinema.
Obrigada!
Olá.
Achei esse site beeem bacana (a-m-o cinema) e gostei, em especial, desse filme.
Se não me engano, “okuribito” significa, literalmente, “pessoa que leva” (“okuri”=levar e “hito”=pessoa; o “hito” vira “bito” por causa de uma regra da gramática japonesa, mas aí é outra história).
Então, o título é correto, pois fala de uma pessoa que ajuda na passagem de quem morreu (ou seja, é uma pessoa que leva -ou, ao menos, ajuda a levar- outra pessoa a algum lugar).
Uma nota em relação ao Joe Hisaishi: existe um programa anual no Japão (transmitido pela NHK no último dia do ano) chamado Kôhaku Uta Gassen e na edição passada ou retrasada houve uma espécie de homenagem ao Hisaishi e as trilhas que ele fez para o estúdio Ghibli.
Vários cantores japoneses fizeram um medley com canções dos filmes “Meu vizinho Totoro”, “Nausicaä do Vale do Vento”, “O castelo animado” e “Ponyo- uma amizade que veio do mar”, entre outros que não lembro. Existia um vídeo no youtube dessa apresentação, mas tiraram do ar. Se você encontrar, assista. É lindo. E o Joe Hisaishi participa, regendo os músicos da orquestra afiadíssima que tocou nessa apresentação.
=)
Muitíssimo obrigado pelo comentário extremamente esclarecedor e informativo.
Fico imensamente grato a você.
Um abraço.
Sérgio
Eu já disse em outra página,(voce deve estar lembrado)um filme maravilhoso,lindo demais.
E, como você disse, uma obra-prima.
Houve um tempo em que eu torcia o nariz para filmes do Japão. Mas,felizmente isso ficou para tráz.
Que coisa contraditória; no encontro com a morte,trabalhando com a morte,Daigo encontrou
sentido em sua vida. Vem daí uma frase dele que ficou em minha mente:agora percebo como minha vida foi tão inexpressiva até hoje.
Mais uma vez o maldito preconceito,ele não tem limites,até mesmo para essa profissão ele existe,incrível. E,esse trabalho não era uma “coisa qualquer”,tinha de ter habilidade e saber como fazer. Até a esposa foi contra.
Mas, foi uma cena linda e emocionante quando ela pôs isso por terra ao ver a primeira vez uma preparação que Daigo fazia. Aquele olhar dela,compreendeu tudo,sentiu tudo,disse tudo e me deixou com um entalo na garganta e a lágrima querendo cair, caindo.
EU DEVO DIZER QUEM AINDA NÃO VIU NÃO LEIA.
Fiquei intrigado com aquela cena em que logo no seu primeiro trabalho,(preparação)Daigo vê o corpo de uma idosa já decomposto e depois chega em casa perturbado e tenta de toda maneira fazer sexo com a esposa. Quis entender a relação. Depois lendo um artigo sôbre o filme fiquei esclarecido.
Outra coisa contraditória,o que é a vida,ele nem pôde estar presente ao velório de seus pais e no entanto preparava os corpos de outras pesôas para a partida.
SE NÃO VIU NÃO LEIA NOVAMENTE.
Outra cena comovente demais, e, aí não tem como segurar as lágrimas,é o encontro com o corpo de seu pai, o momento em que ele abre a sua mão.
Uma obra magnífica este filme.
Em pequena correção ao comentário sore o título, o verbo “okuru” é “enviar” e não “levar” (ou acompanhar), algo como “remetente”.
Minha tradução para “okuribito” seria “agente de partida”, uma pessoa que envia/auxilia a partida de algo/alguém.
Por isso o protagonista inicialmente confunde com uma agencia de turismo.
Assim, algo que se perdeu na tradução oficial do título, é que ele não se refere ao ato de enviar, e sim à pessoa que envia (sim, pessoa no singular).