O Leitor / The Reader / Der Vorleser


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Maravilha de filme, uma soberba transposição para a tela do belo livro do alemão Bernhardt Schlink. É profundamente, absolutamente triste.

No livro, a ação se passa em três épocas distintas, e há uma parte para cada uma delas, 1958, 1966 e 1986. Os acontecimentos são narrados em estrita ordem cronológica. O filme incluiu os dias atuais – no caso, 1995, exatamente o ano de publicação do livro –, e estamos neles quando o filme começa. É apenas uma pequena abertura, para vermos Michael Berg, o protagonista, já adulto, maduro, interpretado  com absoluto brilho por Ralph Fiennes (na foto abaixo).

zzreader0Rapidamente há um flashback, e estamos em 1958. (O filme é daqueles que facilitam a vida do espectador, colocando as datas e os locais em que se passa a ação em legendas no início de cada seqüência em que isso é necessário). Michael Berg (agora interpretado por Davis Kross, uma revelação, ótimo ator) é um estudante de classe média, de 15 anos de idade; está num bonde, e passa mal. Desce do bonde, e, numa calçada, junto a um prédio de apartamentos ainda não recuperado dos estragos causados pela guerra terminada 13 anos antes, vomita.

Uma mulher que está chegando ao prédio o ajuda. Primeiro lava, com água trazida em um balde, a sujeira que ele deixou no chão. Depois o acompanha até perto da casa dele.

Michael está com escarlatina. (No livro é hepatite, mas dá no mesmo.) Tem que ficar três meses na cama. Quando melhora, vai, por conselho da mãe, levar flores à mulher que o ajudou. A mulher é Hanna Schmitz (o papel da esplendorosa Kate Winslet); tem 36 anos – mais que o dobro da idade de Michael –, mora sozinha, trabalha como cobradora de bonde. É uma mulher severa, dura, rígida. Michael, assim como o espectador, não sabe quase absolutamente nada sobre ela.

Nesse segundo encontro, em que Michael leva flores para ela, Hanna diz a ele que precisa trabalhar, sugere que desçam juntos as escadas, e pede que ele espere no hall enquanto ela troca de roupa; pela porta entreaberta, o garoto a vê colocar as meias – e Hanna vê que ele a vê.

Dias depois, Michael vai de novo até o humilde apartamento de Hanna. Ela pede a ele que pegue dois baldes de carvão num depósito no porão do prédio, ele chega de volta ao apartamento com os baldes todo sujo de fuligem. Ela diz que ele precisa tomar um banho – e, depois do banho, trepam. Vão se ver e trepar ao longo de todo aquele verão. Ela pedirá a Michael que leia em voz alta os livros que carrega da escola; diz que gosta de ouvir. Michael lerá para ela diversos livros, A Odisséia de Homero, contos de Tchécov, grandes clássicos, coisas menores também.

Cada detalhe é impecável 

zzreader1Não teria qualquer sentido contar absolutamente mais nada da história – o que acontecerá depois, em 1966, em 1988. Seria, para quem ainda não leu o livro e/ou viu o filme, estragar o prazer – e a tristeza. O prazer de ver um belíssimo filme, e a tristeza imensa que é a trágica história de Michael e Hanna.

Na época do lançamento do filme, e até na cerimônia do Oscar, revelou-se muito mais do que se deveria sobre a trama. Priva-se o espectador da surpresa. É um absurdo.

O melhor, tenho plena certeza disso, seria ler primeiro o livro, como tive a sorte de fazer. Porque o livro é extraordinário, muitíssimo bem escrito, com importantes considerações sobre responsabilidade, culpa, arrependimento, leis, Justiça, o papel de cada um dentro da Grande História. O filme transpõe tudo isso, de forma impecável, para a tela – mas imagino que ler o livro já tendo visto o filme, já sabendo o que vai acontecer, deve ser muito pior do que conhecer a história de Michael e Hanna através do texto de Bernhard Schlink – que, e isso é importante saber, nasceu em 1944, um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial.

Ver o filme depois de conhecer o livro, ao contrário, é uma experiência muito mais enriquecedora.

É daqueles filmes em que cada detalhe é de fato impecável – a direção de arte, a reconstituição das épocas, os figurinos. A fotografia é deslumbrantemente bela. São dois os diretores de fotografia, dois nomes importantes, Chris Menges e Roger Deakins. Chris Menges é certamente um dos melhores fotógrafos do cinema europeu – já dirigiu cinco filmes, entre eles Um Mundo à Parte/A World Apart, uma bela obra sobre o apartheid da África do Sul. Menges e Deakins foram eles próprios os operadores de câmara de O Leitor, uma coisa que absolutamente não é comum nos filmes de produção cara e cuidada como este aqui.

Esplendorosa, maravilhosa Kate Winslet

leitor 3Kate Winslet está absolutamente esplendorosa no papel de Hanna – um papel dificílimo, já que Hanna é uma mulher que esconde as emoções e o passado, e são emoções e passado turbulentos como um vulcão. E mais difícil ainda já que a história se estende por várias décadas. Essa garota inglesa que em 2008, quando o filme foi feito, tinha apenas 33 anos, já tem uma filmografia que a coloca entre as maiores atrizes do cinema. Ela é absolutamente impressionante; não dá para imaginar como, no mesmo ano, ela foi capaz de fazer essa Hanna Schmitz e também a April Wheeler de Foi Apenas um Sonho/Revolutionary Road. Grande, extraordinária, maravilhosa Kate Winslet.

Ela ganhou o Oscar por O Leitor. Poderia perfeitamente ter ganho por Foi Apenas um Sonho. O Leitor teve quatro outras indicações ao Oscar, nas categorias mais importantes – filme, direção, roteiro e fotografia. Teve, além do Oscar de Kate Winslet, 11 prêmios e 24 outras indicações.

Sobre Ralph Fiennes, não há o que dizer. O cara é um brilho sempre. Não poderia haver melhor ator para fazer o introvertido, torturado, angustiado, Michael Berg.

O garoto David Kross é uma revelação. É impressionante a capacidade dele de fazer um garoto de 15, 16 anos, quando a ação está em 1958, e fazer um estudante de direito de 23. Ele consegue mostrar várias caras – e a cara do Michael Berg estudante de Direito é absolutamente diferente da do Michael Berg adolescente, muito mais amadurecida. Segundo o iMDB, os produtores tiveram o cuidado de, para evitar problemas legais, esperar que ele completasse 18 anos para filmar as cenas de sexo. Tem futuro garantido, esse David Kross, garoto alemão nascido em 1990, cinco anos antes de o livro O Leitor ser publicado, 45 anos depois de o nazismo ter sido derrotado, um ano após o Muro de Berlim ter caído.

zzreader3Um detalhe que é preciso mencionar. Entre os produtores do filme estão os diretores Anthony Minghella e o grande Sydney Pollack. Os dois morreram antes que o filme fosse terminado – e, nos créditos finais, a obra é dedicada a eles.

Apesar das idas e vindas no tempo, o estilo de narrativa do diretor inglês Stephen Daldry (do excelente Billy Elliott e do premiado e aclamado As Horas) é suave, manso, clássico – até mesmo quando se permite juntar na montagem fatos ocorridos em dias e locais diferentes, como a maravilhosa seqüência das fitas cassete, quando já nos aproximamos do fim.

Se os diretores de fotografia são veteranos e conhecidos, do compositor, Nico Muhli, jamais tinha ouvido falar. A trilha que ele compôs é belíssima, às vezes grandiosa, sinfônica, às vezes suave e triste, muito triste.

Eta filme danado de triste. Ao meu lado, Mary, que já tinha lido o livro, e portanto conhecia a tragédia de Michael e Hanna, chorou feito uma criança.

Se você não viu o filme, não leia a partir de agora

O filme é bastante fiel ao livro, e essa é uma de suas muitas qualidades. Mas ele diverge do original num ponto muito importante. Bem para o final do filme, quando Michael pergunta a Hanna se ela pensa no passado, no passado anterior à época em que se conheceram, ela diz que não, que nunca pensou muito naquilo tudo. É bem diferente do que mostra o livro. No livro, Michael conta que, ao fim, Hanna passou a se interessar por relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, tinha livros de Primo Levi, Elie Wiesel, o relato de Hanna Arendt sobre Eichmann em Jerusalém. Passou – o leitor percebe – a tentar compreender o que havia sido aquela loucura da qual ela fizera parte, um pequeno peão num jogo imenso; entender tudo aquilo que tinha vivido sem na época ter qualquer dimensão do quadro maior que sua visão pequena, tosca, rude, não alcançava. Isso é fundamental para desenhar o que aconteceu com Hanna; com isso, a Hanna do livro se distancia profundamente da Hanna do filme, torna-se muito mais complexa – e maior.

O Leitor/The Reader

De Stephen Daldry, EUA-Alemanha, 2008

Com Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross, Bruno Ganz, Lena Olin

Roteiro David Hare

Baseado no livro Der Vorleser, O Leitor, de Bernhard Schlink

Fotografia Chris Menges e Roger Deakins

Música Nico Muhli

Produção Mirage, Neunte Babelsberg, The Weinstein Company. Estreou em SP 6/2/2009

Cor, 124 min

****

22 Comentários para “O Leitor / The Reader / Der Vorleser”

  1. Acho praticamente impossível comentar sem contar spoiler, então quem não viu o filme, não leia:

    Eu gostei do filme, mas não foi algo que me marcou. Acho que o “problema” da Hanna , sua grande vergonha, não justifica o que ela fez, achei forçar demais a mão. Ter mais vergonha disso do que de ter feito parte da guarda nazista pra mim é demais. A parte do tribunal foi bem fraquinha (detestei aquele promotor ou algo do tipo) e detestei tb aquelas mulheres todas, algumas fazendo tricô, como se estivessem num chá de panela e não sendo julgadas, por algo muito grave e cruel, diga-se de passagem. A relação não teve abuso (sexual) mas o Michael ficou marcado, nunca mais se relacionou bem com nenhuma mulher, incluindo a própria filha. No final, qdo conta sobre seu passado, ele diz que ela fez mais estrago em outras pessoas do que nele, o que prova que ela tb o prejudicou, e não acredito que tenha sido apenas pela paixão que foi rompida de forma abrupta. Só que nossa sociedade machista vê com ótimos olhos um rapaz se iniciar sexualmente com uma mulher bem mais velha, pra eles isso é até almejado e visto como vantagem, mas o contrário, não.
    A cena em que ela dá banho nele com a esponja, tinha um quê de mãe dando banho no filho, e até pensei que ela tivesse um filho que não morava com ela e que ela meio que estivesse fazendo uma substituição (a diferença é que tinha sexo pelo meio). Me lembrou mto qdo eu era criança e algumas tias davam banhos nos meus primos daquele jeito.
    Gostei das indagações que foram feitas sobre o holocausto, que o julgamento pela lei é diferente do julgamento moral (como disse o professor) e se os alemães que trabalharam nos campos estavam apenas cumprindo ordens ou deveriam ser punidos (e por que os outros responsáveis tb não foram julgados), etc. Acho que pra quem é da área do direito, essa parte é muito interessante.
    E que bom que a Nicole Kidman não pôde fazer o filme. A Kate é mto melhor atriz. Só me causa estranheza um filme passado na Alemanha em que ninguém fala alemão. E acho que as cenas na velhice deviam ser feitas com outra atriz, a maquiagem não convenceu; na passagem de tempo, o Ralph parecia mais velho qdo era pra parecer mais novo.

  2. Eu tbm amei o filme, achei d+, nota mil, ót22020.
    Porém tem algo que me incomodou muito nele: ok, o filme se passa na Alemanha, as personagens são alemãs, mas como a produção é inglesa, o filme é falado em inglês, ok, sem problemas. Isso existe em Maria Antonieta, não tem problema.
    Agora… pq a Kate Winslet fala inglês no filme com sotaque alemão???? Ela é a única personagem que faz isso!!!!

    é a mesma coisa que a Kirsten Dunst fingisse um sotaque francês em Marie Antoniette!!!!

    E outra: o Daniel Craig manda ver no inglês very british dele no Millenium – Os Homens que não amavam as mulheres, mas na hora de brindar um drink, ele fala “Saúde!” em Sueco.

    Ou seja….????

  3. Sou aluno do Curso de Pedagogia em Natal/RN. Gostei muito do filme e indico a todos que queiram assistir.

  4. Achei o filme muito bom, apenas a parte final quando Michael vai a New York me pareceu escusada, parece não acrescentar nada à história.
    Os actores estão excelentes tanto a Kate Winslet, que é a minha actriz preferida de momento, como o Ralph Fiennes que me parece também um dos melhores em actividade.
    Os secundários também são excelentes.
    Este é um filme a que dou 5 estrelas sem favor nenhum.

  5. Ter vergonha de nao saber ler mais do que ter vergonha de praticar os atos nazistas. A ideia me apavora e gosto disso. Temos que tentar agir pra modificar o futuro, e o passado so precisa ser contado, por isso( ao contrario da leitora acima) achei incrivel a atitude das mulheres tipo : era o nosso trabalho e nos orgulhavamos de sermos eficazes, ignorando a desumanidade da situacao aterradora em prol de uma ideologia ate hoje discutida pelos maiores pensadores do holocausto. E nos? Como telespectadores atemporais, apenas observamos o caminho da historia, sem poder modifica-la, crendo que aprendemos com esse trafico momento e que nunca mais presenciaremos algo parecido novamente. Cinema pra mim e isso. Qualidade tecnica tudo bem, mas sou um apreciador de grandes historias, e o Leitor acima de tudo e uma, mesmo que sua protagonista tenha atitudes condenaveis pra dizer o minimo. A realidade e mesmo mais apavorante que a ficcao.

  6. Talvez a intenção de distanciar a Hanna do filme da Hanna do livro tenha sido a propósito do discurso sobre a “banalidade do mal” que consta no livro de Hannah Arendt. Ou seja, até o fim da vida a personagem não tem a exata dimensão dos atos criminosos que cometeu, apesar de percebermos uma mudança significativa ao longo de sua trajetória, sobretudo depois do julgamento. Ela, inclusive, deixa uma herança para uma das vítimas sobreviventes do campo em que executava seus trabalhos de guarda. E, nesse contexto, a Hanna do filme, não totalmente ignorante da dimensão dos atos por ela perpetrados mas ainda preservando uma certa indiferença decorrente da dualidade dever de ofício X intenção criminosa, faz mais sentido que a Hanna do livro. Indiferença, inclusive, que fica também latente em relação ao impacto que provocou na vida do Michael Berg. Em última instância, apesar de saber que teve uma importância significativa na vida do jovem que depois se transformaria no adulto que lhe enviava as fitas pelo correio o que a levou, inclusive, a aprender a ler, o espectador fica na dúvida se ela realmente chegou a nutrir algum sentimento genuíno por ele. Assim ela permanece como uma espécie de esfínge inescrutável, mesmo após a morte. E talvez essa tenha sido a intenção dos roteiristas que adaptaram o livro.

  7. O ” leitor” em questão está muito apagado, apático, na idade adulta. Discordo dos elogios a Ralph Fienes. Considero o desempenho mais freco dele em um filme, a ponto de transforma-lo em coadjuvante e a exendida Kate Winslet em principal. David Cross, por sua vez, impressiona pelo talento! O filme se passa em outra epoca, cultura e contexto, daí suas atitudes inverossimeis para os dias de hoje. Mas para a epoca fazia sentido. Que turbilhão de emoções negativas, desgastava e desnorteava emocionalmente, uma aparentemente forte Hanna, porem tão fragil… Até o viço da relação com o adolescente ela abdicou. Ela foi se suicidando aos poucos, por causa de tanta pressão. Desde sempre é muoto comum o relacionamento dr homens mais jovens com mulheres mais velhas. O único problema é que os dois eram apaixonados, e o jovem não suportou bem a separação. Diferentemente de ” Loucos de Paixão “, onde o jovem James Spader faz de tudo com garra para reencontrar sua paixão, interpretada pela madura Susan Sarandon.

  8. Sérgio Vaz abordou com muita precisão todas as particularidades desse belo e triste filme: roteiro, direção, interpretação, fotografia etc. etc. Não me atrevo a acrescentar uma linha sequer ao que foi exposto com competência e sensibilidade. A notar, também, os criteriosos comentários dos leitores.

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