Minha Cama de Zinco / My Zinc Bed

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Nota: ★★½☆

Minha Cama de Zinco é um filme inquietante, perturbador. Discute vício; há quem tenha visto nele discussão sobre qualquer vício – droga, relações, trabalho. Para mim, a questão principal é o vício de drogas; especificamente, o álcool, a cachaça, booze.

E o verbo “discutir” não poderia ser mais adequado. Não é apenas que o filme trate do tema, aborde o tema. Ele discute sobre o vício. Minha Cama de Zinco é palavroso, teatral, e nem tenta esconder isso; o próprio autor da peça de teatro, David Hare, escreveu o roteiro do filme, uma co-produção da americana HBO e da britânica BBC, dirigida por Anthony Page.

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São três personagens em cena – e eles falam, e falam, e falam, durante os 75 curtos minutos de duração do filme. Em boa parte do tempo, falam sobre o vício, a adição, a droga, o álcool.

Bebe-se, ao longo da narrativa, tanto quanto bebe o casal interpretado por Jack Lemmon e Lee Remick em Vício Maldito/Days of Wine and Roses (1962), tanto quanto bebe o personagem feito por Ray Milland em Farrapo Humano/The Lost Weekend (1945), quase tanto quanto o personagem de Nicolas Cage em Despedida em Las Vegas/Leaving Las Vegas (1995).

Bebe-se tanto quanto nesses três grandes filmes sobre o alcoolismo – mas fala-se sobre alcoolismo, discute-se sobre alcoolismo mais do que nos três juntos.

O milionário provoca o pobre alcoólatra em recuperação com vinho e argumentos

A ação passa-se em Londres, nos dias de hoje. (A peça estreou no West End em 2000; o filme é de 2008.) A história é narrada por Paul, o papel do inglês Paddy Considine (na foto acima). Paul é poeta, já havia, quando a ação começa, publicado um livro de poemas. É um alcoólatra que está limpo há mais de um ano, graças à adesão completa às reuniões dos Alcoólicos Anônimos, e está duro, quebrado, sem um tostão. Por isso, aceita o trabalho, oferecido por um jornal, de entrevistar Victor Quinn (o papel do grande Jonathan Pryce, na foto abaixo), um bilionário que fez com a informática sua imensa fortuna e criou uma agora gigantesca empresa.

Victor é um sujeito que não dá entrevistas, mas aceita receber Paul em seu clube para uma conversa que se prolongará no almoço. Recebe com alegria o jovem mal vestido, cita versos inteiros de poemas dele.

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À mesa para o almoço e o início da entrevista, quando Paul puxa a cadernetinha de anotações, Victor é que faz perguntas – sobre bebida. Oferece vinho; Paul recusa. Victor começa a discutir sobre os AA. Contesta o método. Paul defende os AA com veemência: foram os AA que salvaram sua vida.

Victor provoca o pobre coitado do viciado em fase de recuperação até o deixar absolutamente exasperado.

Diz uma frase apavorante: – “Se estivéssemos curados, estaríamos curados do desejo. E quem quer se curar do desejo?”

Um alcoólatra em recuperação, uma dependente de drogas. Não pode dar boa coisa

Paul poderia ter mandado às favas (ou a coisa bem mais chula) o milionário que o provocava enquanto tomava doses e mais doses diante dele. Mas precisava desesperadamente de dinheiro, e aguentou o suplício.

Victor o convida para ir com ele até seu escritório, conhecer a sede de sua poderosa empresa. Paul – fazer o quê? – aceita.

Acaba sendo contratado por Victor para escrever algumas frases publicitárias sobre a empresa e o programa que Victor havia desenvolvido, o Flotilla. Como ele poderia recusar, depois de tempos sem dinheiro algum? Emprego mesmo, com uma grande sala com bela vista de Londres.

Passam-se alguns meses; Paul continua limpo. Um início de noite, ele está sozinho no andar, todos os colegas já na vida, nas ruas, indo para casa, ou bebendo nos pubs, e chega a sra. Victor Quinn, Elsa. Chega na pele e na imensidão do 1 metro e 80 de Uma Thurman. Tinha ido se encontrar com o marido, mas Victor havia saído.

Conversam um tempão.

Elsa era cocainômana e alcoólatra. Victor a havia encontrado escorchada no chão de um bar em Copenhagen, tinha casado com ela. Ela se livrara do vício da cocaína, e acreditava – seguindo a filosofia do marido – que era capaz de beber só um copo.

Depois de uma hora de conversa, atracam-se furiosamente, os dois viciados, dependentes, num abraço de afogados. Estão para partir para as vias de fato quando Victor chega ao escritório.

Estamos aí com 30 minutos de filme.

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Confesso: não compreendo as motivações do personagem

O que leva Victor a aceitar o pedido de entrevista de Paul, a empregá-lo, depois a convidá-lo para uma visita à sua mansão espetacular no Regent Park, onde o receberia preparando margueritas, a bebida que Paul havia dito que adorava? Seguramente não, ou não apenas, um desejo sádico de fazer o outro sofrer feito preso político sob tortura bárbara, feito mãe que perde o filho muito novo.

Vontade de testar os limites de um viciado em recuperação? Para conhecer melhor o comportamento de um viciado, compará-lo ao da sua própria mulher? Para usá-lo como cobaia, antes de aplicar algum tipo de argumentação ou programa com Elsa?

Não dá para saber ao certo.

Mais ainda: é de propósito que Victor aproxima Elsa de Paul? Victor é charmoso, milionário, mas há uma grande diferença de idade entre ele e a mulher esplendorosa. Seguramente ele sabia do perigo. Por que praticamente lançar a mulher nos braços do jovem viciado que tenta sair do vício?

O filme, na minha opinião, não fornece respostas. Leva o espectador a fazer as perguntas, mas não fornece respostas.

Ao contestar o melhor programa anti-droga jamais feito, o filme inquieta, perturba

Mais ainda: não estaria Minha Cama de Zinco oferecendo aos viciados do mundo argumentos para recusar a filosofia dos AAs, aquela segundo a qual uma dose é o começo do fim, porque levará inevitavelmente a outra, e mais outra, e a garrafas inteiras, e a prateleiras inteiras de garrafas vida afora?

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Afinal, Victor bebe bastante – e não perde a lucidez, e tornou-se estupidamente bem sucedido, ergueu um império, encheu o rabo de muito dinheiro.

Existiriam, então, dois tipos de pessoas que bebem – os que simplesmente podem beber, porque são capazes de parar, e os que não podem, porque jamais param?

É porque leva a essas questões que o filme, na minha opinião, é inquietante, perturbador.

Depois que terminamos de ver Minha Cama de Zinco, Mary ficou um tempo em silêncio, algo bem pouco usual. Depois disse que não sabia o que pensar sobre o filme – algo também pouco usual. Que não sabia o que o filme queria dizer.

Mary é sempre perfeita observadora, inteligente, perspicaz. A reação dela comprovou que é exatamente isso: é um filme feito para inquietar, perturbar.

Na minha opinião, o filme pode ajudar os drogados a continuarem drogados

David Hare, o autor da peça My Zinc Bed, nasceu em Sussex, Inglaterra, em 1947. Tem obra vasta – tanto peças de teatro quanto roteiros para o cinema – e respeitadíssima. Foi indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor roteiro adaptado duas vezes, por As Horas (2002) e O Leitor (2008). Teve quatro indicações ao Bafta, teve por três vezes obras na admitidas na competição oficial do Festival de Berlim.

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A peça My Zinc Bed estreou no Royal Court Theatre de Londres em 2000, com – impressionante! – Tom Wilkinson, Julia Ormond e Steven Mackintosh nos papéis que no filme são, respectivamente, de Jonathan Pryce, Uma Thurman e Paddy Considine. A direção era do próprio dramaturgo.

A BBC definiu o filme assim: “Este poderoso, provocativo e às vezes sinistro drama em um ato do autor Hare (The Hours, Stuff Happens), explora a natureza da adição – seja de bebida, de relacionamentos, de negócios – com atuações magníficas do trio de atores, cujos personagens são escravizados por seus próprios resistentes hábitos”.

Gostaria de saber o que diriam deste filme psiquiatras acostumados a tratar viciados. Eu, de minha parte, não aconselharia a algum amigo meu em começo de sobriedade que visse Minha Cama de Zinco. Não ajuda a nada. Ao contrário: dá à pessoa que tenta se libertar do vício uma pequena ajuda para querer mais uma dose de droga.

Anotação em janeiro de 2014

Minha Cama de Zinco/My Zinc Bed

De Anthony Page, EUA-Inglaterra, 2008

Com Paddy Considine (Paul Peplow), Jonathan Pryce (Victor Quinn), Uma Thurman (Elsa Quinn),

Roteiro David Hare, baseado em sua peça teatral.

Fotografia Brian Tufano

Música Simon Boswell

Montagem John Scott

Produção HBO, BBC, Rainmark Films. DVD Warner Bros.

Cor, 75 min

**1/2

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