A quarta temporada de The Crown confirma que esta é uma das melhores séries que já foram feitas – se não a melhor de todas. Nenhum superlativo é demais para The Crown .
Na terceira temporada, já com Olivia Colman e Tobias Menzies nos papéis centrais da Rainha Elizabeth II e do príncipe Philip, o duque de Edinburgh, acompanhamos os principais fatos da Grande História e da história da família real britânica entre 1964 e 1976. Em 1964, o ano em que assume o governo o líder do Partido Trabalhista, Harold Wilson, o Reino Unido passava por grave crise econômica, com alto déficit público e pressão para que a libra fosse desvalorizada. Em meados dos anos 70, caiu o governo de Edward Heath, do Partido Conservador, e houve a volta de Wilson, que governaria de 1974 até 1976.
Nesta quarta temporada, vemos os fatos políticos e sociais e os eventos envolvendo diretamente a família real entre 1979 e 1990. Os dez episódios de 60 minutos cada da temporada lançada em novembro de 2020 cobrem portanto todo o período Margaret Thatcher – a mulher que governou o Reino Unido de maio de 1979 a novembro de 1990 com a dureza e a rigidez que deram a ela a alcunha de Dama de Ferro.
Assim, está ali o sangrento, longo, doloroso, quase infindável conflito armado na Irlanda do Norte, o Ulster. Logo no primeiro episódio há o atentado do IRA, o Exército Republicano Irlandês, que matou o Lord Mountbatten, que, entre muitos outros postos, havia sido o último vice-rei da Índia e era tio do príncipe Philip, que o respeitava como um pai, e o familiar mais íntimo de Charles, o herdeiro do trono.
Está ali a guerra do Reino Unido contra a Argentina, iniciada em junho de 1982 pelo tenente-general Leopoldo Galtieri, líder da junta militar que governava nossos vizinhos: numa tentativa desesperada de unir o povo argentino, o ditador resolveu afirmar a soberania sobre as ilhas Malvinas, Falkland para os britânicos.
Está ali um episódio importantíssimo e talvez menos conhecido do que deveria, envolvendo a posição firme do governo Thatcher de, ao contrário de todos os demais 48 países da Commonwealth, a comunidade de nações liderada pela Grã-Bretanha, não apoiar sanções econômicas contra o governo racista da África do Sul.
Sobretudo, está ali, nesta quarta temporada, todo o período do thatcherismo – a política econômica radicalmente liberal e imposta radicalmente ao país, com a privatização de diversos setores, como as telecomunicações, a mineração, os transportes, que provocou violentos protestos dos poderosos sindicatos e levou a taxas de desemprego inimagináveis no Reino Unido.
Cada um desses importantes eventos da Grande História é, com imenso brilho, apresentado, mostrado, dissecado.
No entanto, o que mais causa impacto, o que rouba as atenções, o que acaba sendo o mais marcante desta quarta temporada da série fascinante é a figura da garotinha de 18 anos de idade ao surgir pela primeira vez na tela, que viria se tornar a princesa mais amada não só da Grã-Bretanha, mas de todo o mundo.
Assim como aconteceu na vida real, em The Crown Diana Spencer chama para si todos os holofotes. Seu brilho ofusca todos os demais personagens – até mesmo a Rainha.
Cada personagem tem seu tempo de brilho
Para lembrar: a Rainha Elizabeth II jovem foi interpretada por Claire Foy na primeira e segunda temporadas, passadas entre a época da morte de seu pai, o rei George VI, e sua ascensão ao trono, em 1952, e 1963, a época do escândalo Profumo, em que era primeiro-ministro o conservador Alec Douglas-Home e ela estava grávida de seu quarto filho, Edward. Seu marido, o príncipe Philip, foi interpretado por Matt Smith.
(Aqui, meu comentário sobre a primeira temporada. Aqui, sobre a segunda. E aqui, sobre a terceira.)
Tiveram desempenhos brilhantes, impecáveis, britânicos os dois atores, Claire Foy e Matt Smith. Tanto que havia, naturalmente, um temor diante do que viria na temporada número três, em que Elizabeth e Philip passariam a ser interpretados por atores mais velhos: nós, o público, nos acostumaríamos com os novos Elizabeth e Philip – Olivia Colman e Tobias Menzies?
Com seu texto delicioso, o colunista Eduardo Affonso, do jornal O Globo, sintetizou com maestria em um post no Facebook, quando a terceira temporada estreou, em novembro de 2019: “Hoje cometi uma tripla traição. Troquei Claire Foy por Olívia Colman, Matt Smith por Tobias Menzies e Vanessa Kirby por Helena Bonham Carter. Achei que fosse sentir alguma culpa, mas não. Trair e coçar… é só começar.”
Nesta quarta temporada, assim como na terceira, estão excelentes Olivia Colman como Elizabeth, Tobias Menzies como Philip, Helena Bonham Carter como a princesa Margaret, a irmã da Rainha, Josh O’Connor como o príncipe Charles, o herdeiro de mente e coração atordoados, conflituosos, assim como Erin Doherty como sua irmã, a princesa Anne.
Está excelente também a cara nova que surge nesta quarta temporada, a da jovem atriz Emma Corrin, nascida, meu Deus do céu e também da Terra, em 1995, quando minha filha tinha 20 anos de idade e fazia Direito na PUC , e a personagem que ela interpreta, Lady Diana Spencer, estava com 34 anos, já divorciada de Charles.
Há espaço para cada um desses personagens aparecer na tela com grande destaque – e todos esses atores britanicamente perfeitos brilham muito.
E é bom que a gente os aproveite bem, porque o elenco vai mudar novamente na quinta temporada, que, se tudo correr bem e der certo, Deus permitir e todos os santos ajudarem, deverá estar disponível no segundo semestre de 2021. Já foi anunciado que a Rainha Elizabeth dos anos 1990 será interpretada pela excelente Imelda Staunton, de, entre tantos bons filmes, Shakespeare Apaixonado (1998), O Segredo de Vera Drake (2004) e alguns Harry Potter, em que fez Dolores Umbridge. E o príncipe Philip caberá ao maravilhoso Jonathan Pryce, de, entre tantos e tantos, A Esposa (2917) e Dois Papas (2019).
E uma outra atriz, cinco anos mais velha que essa linda e competente Emma Corrin, fará a princesa Diana: Elizabeth Debicki, nascida em 1990.
Vários diálogos ocorridos entre quatro paredes
Como havia sido nas temporadas anteriores, tudo, absolutamente tudo, em cada um dos detalhes técnicos, artesanais, é perfeito nesta quarta parte de The Crown: figurinos, direção de arte, fotografia… A reconstituição de época é de babar.
A equipe de roteiristas e pesquisadores que trabalha sob o comando de Peter Morgan, o criador da série, procura – tudo indica – ser o mais fiel possível à verdade dos fatos. Mas, evidentemente, The Crown não é documentário. Não é programa do History Channel. É ficção histórica – é narrativa romantizada, fictícia, de fatos históricos.
Até porque muitas, muitas, muitas das sequências destes dez episódios acontecem entre quatro paredes, em conversas de pequenos grupos – quando não de apenas duas pessoas. Ao reproduzir uma conversa íntima, a portas fechadas, entre a Rainha e seu marido, entre a Rainha e seu primogênito, entre a Rainha e a filha Anne, entre o futuro sogro Philip e sua futura nora Diana, entre Charles e Diana, entre Charles e sua amada-amante de sempre, Camilla Parker Bowles, interpretada por Emerald Fennell, na foto abaixo (e há diversas delas), é óbvio que os realizadores se deram alguma liberdade para criar. Por maior que tenha sido o cuidado para reproduzir o tema, o tom, o clima dessas conversas íntimas, com base nas pesquisas com testemunhas dos eventos, é óbvio que há aí criação, invenção, ficção.
É verdade que nesta quarta temporada a possibilidade de consultar fontes foi bem maior do que nas anteriores.
“À medida que nos aproximamos do presente, os eventos parecem menos uma história distante e mais com um passado compartilhado por muitos telespectadores”, escreveu Sarah Lyall, do New York Times, em reportagem que foi reproduzida pelo jornal O Globo. “A série contou agora com uma equipe de consultores com conhecimento direto dos eventos, uma mudança em relação às temporadas anteriores, quando havia menos pessoas vivas com quem poderíamos conversar’, disse Oona O Beirn, produtora que trabalhou com a equipe de pesquisa. Por exemplo, na primeira temporada, eles tinham apenas uma fonte sobrevivente do escritório de Churchill; agora há uma infinidade de especialistas contemporâneos, incluindo Patrick Jephson, um ex-secretário particular de Diana.”
Mais um parágrafo da reportagem de Sarah Lyall reproduzida no Globo:
“Annie Sulzberger, chefe de pesquisa, conta que, com tantas pessoas vivas para lembrar o que aconteceu, a maior preocupação foi com as nuances, para reconhecer possíveis preconceitos até mesmo em fontes bem informadas. Por exemplo, relatos simpáticos a Diana enfatizaram seu desespero com a infidelidade de Charles, enquanto convenientemente eliminaram suas próprias aventuras adúlteras. Mas The Crown deixa claro que havia dois lados na história, mostrando Diana prometendo à Rainha que ela desistiria de seu amante, James Hewitt, e então voltando a ele após Charles não conseguir terminar seu caso com Camilla Parker Bowles.”
Mas aqui deixei passar o carro um pouco na frente dos bois. Antes de falar de Charles e Diana, gostaria de registrar algumas informações sobre a Grande História.
Uma bela abertura – e um momento absolutamente espetacular
A narrativa de toda a série até aqui, é, em geral, na imensa maior parte do tempo, sóbria, correta, escorreita. Clássica, eu diria. Perto do “acadêmico”, o termo que os críticos em geral usam para meter o pau nos filmes, na eterna defesa de que o bom é o que vai contra as regras, que “inova”, que “revoluciona”.
Mas há alguns momentos em que aquele bando de ingleses deixa de lado essa tão abençoada sobriedade, correção, e cede à tentação sedutora de um espetáculo de fogos de artifício.
Euzinho, quieto aqui no meu cantinho, como dizia um amigo, gosto bastante de uma narrativa sóbria – mas, diacho, como resistir a um espetáculo de fogos de artifícios quando ele é extremamente bem feito?
O diretor e o roteirista do primeiro episódio desta quarta temporada, Benjamin Caron e o próprio criador, Peter Morgan, respectivamente, fizeram uma espetacular sequência de ações paralelas, simultâneas – esse recurso de que só o cinema é capaz – que é de emocionar pela beleza estupenda, de cinéfilo aplaudir de pé, como na ópera.
Todo o início do primeiro episódio, e portanto da temporada, é um show de talento, um espetáculo. Abre com a Rainha Elizabeth, em uniforme de gala, montando num cavalo para aparecer diante dos súditos, à frente de um de seus castelos – enquanto ouvimos a voz em off de um líder irlandês fazendo um discurso contra a presença britânica na Irlanda do Norte. Entram cenas de multidões revoltadas na Irlanda do Norte contra militares britânicos. Vemos a Rainha, o príncipe Philip, o príncipe Charles e Lord Mountbatten observando de uma sacada no palácio uma exibição de jatos da RAF, a Royal Air Force – e, logo em seguida, a família real reunida para o almoço. Toda a família, com a exceção de Charles – que se torna o tópico da conversação. O pai, a mãe, a irmã, princesa Anne, a tia, princesa Margaret, o tio-avô Lord Mountbatten, Dickie para os íntimos, todos falam das diversas moças que Charles andou namorando. Entre as tomadas da família à mesa falando sobre o herdeiro do trono ausente, vemos o próprio Charles dirigindo seu carro, um Jaguar negro, no campo inglês, seguido de um carro dos seguranças. Dickie e Anne falam quase ao mesmo tempo que a namorada atual é Sarah Spencer – e, à menção desse nome, a Rainha se anima: – “A filha de Johnny? Gosto da idéia.”
Os demais fazem comentários simpáticos a Sarah Spencer, filha do conde Edward John Spencer, um velho conhecido de todos. Anne faz a observação cortante: – “Ao contrário de uma certa Parker Bowles, ela não é casada”. Ao que a Rainha comenta – mal informada sobre a vida do filho mais velho – que ele não vê mais Camilla Parker Bowles, depois de tudo o que a família havia feito para afastá-los…
Charles chega ao castelo dos Spencer. Sarah tem que atender a um telefonema, e deixa o rapaz por um momento do majestoso hall de entrada do castelo. E então surge, do outro lado do salão em que Charles está, uma garotinha, uma adolescente, vestida com uma fantasia de árvore. E presenciamos o primeiro diálogo entre o príncipe Charles e sua futura esposa, naquele momento apenas a irmã caçula de Sarah.
Logo em seguida, a câmara mostra Charles e Sarah a cavalo se distanciando do castelo, observados pela irmã mais nova da moça. E é aí que entram os créditos iniciais.
É uma tradição ao longo de toda a série. No início de cada episódio, há um intróito, que pode durar até uns 8 minutos, como é o caso deste inicial da temporada quatro, e só então entram os créditos – cuidadosos, finíssimos, elegantes, como de resto toda a série.
A sequência de tomadas de três situações diferentes, mostradas simultaneamente, o tal momento de explosão de fogos de artifício, vem quando estamos com uns 16 minutos dos cerca de 55 que dura o primeiro episódio. A Rainha, Philip e Anne estão no Castelo de Balmoral, na Escócia; no meio de uma paisagem literalmente de tirar o fôlego, a Rainha dá longas cavalgadas. Em outra paisagem deslumbrante, às margens do Rio Hofsá, na Islândia, Charles está pescando com alguns amigos. Seu tio-avô Dickie, Lord Mountbatten, liga para ele do Castelo de Classiebawn, na República da Irlanda – e o parente mais próximo do príncipe tenta dar conselhos a ele sobre sua vida sentimental. A conversa não deixa Lord Mountbatten muito satisfeito, e ele resolve escrever uma carta para Charles – cujo conteúdo, mais tarde, o espectador ficará conhecendo.
Escócia, Islândia, Irlanda – três locais diferentes, em ações paralelas. A montagem vai ficando mais rápida, mais acelerada. A trilha sonora composta por Martin Phipps para aquele momento é pesada, grave. Tudo vai indicando para o espectador que aí vem algo grandioso, imenso – e terrível.
Logo após concluir a carta para Charles, Lord Mountbatten vai com um neto e mais algumas pessoas pescar no seu barco Shadow V.
Uma bomba explode e destrói o barco – todos morrem.
É uma sequência em tudo por tudo extraordinária, brilhantemente encenada. Chocante – mas de babar de admiração.
Margaret Thatcher é mostrada sem qualquer simpatia
Gillian Anderson – essa atriz interessantíssima, que ficou marcada por sua atuação como Dana Scully na série Arquivo X, iniciada em 1993 – interpreta a primeira-ministra Margaret Thatcher de uma forma um tanto inusitada, que destoa do resto do elenco. Todos os demais atores da série fazem seus papéis de uma forma próxima do natural, do normal. Gillian Anderson faz uma Margareth Thatcher extremamente afetada, com uma voz rascante, que agride nossos ouvidos. É uma coisa que chega a beirar a caricatura.
Não vai aí, de forma alguma, uma crítica, uma avaliação negativa da atuação da atriz. Absolutamente. Foi uma opção dela, dos realizadores da série, apresentar uma Margaret Thatcher antipática, desagradável – e Gillian Anderson fez isso com brilhantismo.
Os realizadores da série – assim como boa parte da população do Reino Unido – não têm qualquer simpatia pela Dama de Ferro. Muito antes ao contrário.
(E acho interessante que eu não consiga me lembrar, de jeito algum, de como a maravilhosa Meryl Streep compôs Margaret Thatcher em A Dama de Ferro/The Iron Lady (2011), de Phyllida Lloyd. Na época em que vimos o filme, não me animei a escrever sobre ele, provavelmente por causa de minha profunda antipatia pela figura retratada ali.)
No quarto episódio desta temporada, por exemplo, em que acontece a questão com a Argentina em torno das Ilhas Falkland-Malvinas, The Crown mostra uma primeira-ministra muito mais preocupada com o desaparecimento de seu filho durante o rali Paris-Dacar do que com aquele conflito com um país lá do fim do mundo. E mostra que não faltou quem alertasse Margaret Thatcher que haveria meios diplomáticos para contornar o problema. Esses conselhos, no entanto, mal foram ouvidos pela primeira-ministra. Apesar de todo o preço, ela optou sem pestanejar pela guerra.
(Nessa época, meados dos anos 80, Paul McCartney compôs uma canção que era uma contestação clara da opção pela guerra, em vez de pela diplomacia, “Tug of War”, que deu o nome a um de seus mais belos álbuns.)
Mas talvez o ponto mais fascinante sobre os anos Thatcher mostrados nesta temporada seja a questão das sanções econômicas contra o regime racista da África do Sul – que quase levou a uma inédita crise constitucional. A Rainha já vinha demonstrando sua desaprovação às medidas econômicas de Thatcher, que ampliavam cada vez mais o desemprego no reino. Em uma das tradicionais reuniões da primeira-ministra com a Rainha às terças-feiras, Elizabeth chega a citar o desemprego alto e os protestos dos sindicatos.
O descompassado entre a Rainha e a primeira-ministra chegou ao auge com a insistência de Thatcher em não assinar um documento – apoiado, como já foi dito mais acima, por todos os demais 48 governos dos países da Commonwealth – que previa sanções econômicas à África do Sul, como forma de forçar o governo a abrandar as leis racistas do apartheid.
Boa parte do oitavo episódio desta temporada trata desse distanciamento entre a soberana e a chefe de governo – o título do episódio, aliás, é 48:1. A Rainha, como se sabe, reina, mas não governa, não deve interferir no governo – uma tentativa de interferência seria uma crise constitucional.
Os jornais britânicos falaram demais sobre as rusgas entre a chefe de Estado e a chefe de governo.
O episódio é fascinante. Bem, mas o que não é fascinante nesta série?
Um estranho invade o quarto da Rainha!
Há duas histórias nesta quarta temporada que, creio, não são muito, em especial fora do Reino Unido. Bem, Mary e eu, pessoas razoavelmente bem informadas, nunca tínhamos ouvido falar nelas. E são histórias sensacionais, quase inacreditáveis: duas primas da Rainha foram dadas como mortas, mas, na verdade, foram internadas em instituições para doentes mentais. E um homem invadiu o Palácio de Buckingham, entrou à noite no quarto da Rainha e ficou lá por uns bons minutos!
É absolutamente incrível como a família real inglesa é capaz de ter histórias fantásticas.
O caso das duas primas Nerissa e Katherine Bowes-Lyon está no sétimo episódio, que tem o título de O Princípio da Hereditariedade. A princesa Margaret, preocupada com sua saúde mental, procura ajuda. E acaba ficando sabendo da existência de Nerissa e Katherine, primas da rainha-mãe, Elizabeth Bowes-Lyon (o papel de Marion Bailey), que foram internadas em hospício em 1941 e dadas como mortas na árvore genealógica da família real. Quando vai cobrar da mãe informações sobre o caso, a rainha-mãe usa como desculpa o fato de que a família teve que tomar decisões às pressas quando o cunhado dela, o rei Edward VIII, abdicou ao trono, em 1938, para não ter que se afastar da mulher, a americana divorciada Wallis Simpson. Com a abdicação, o irmão mais novo de Edward VIII, o pai de Elizabeth e Margaret, assumiu o trono, como George VI.
O episódio 5 tem o título de “Fagan” – o sobrenome do sujeito que invadiu o quarto da Rainha num final de madrugada de 1982. Michael Fagan (interpretado por Tom Brooke) era um operário da construção civil, que, nos anos do thatcherismo, perdeu o emprego, a mulher, que saiu de casa com os filhos, e quase inteiramente a razão. Quando foi visitar um congressista, para cobrar providências sobre o desemprego, e recebeu do sujeito, como último argumento, a sugestão de ir reclamar com a Rainha, Fagen parece que levou a coisa a sério.
– “A mulher está destruindo o país”, ele diz para uma atônita, chocada, porém britanicamente contida Rainha Elizabeth II.
O mais triste, amargo, doloroso dos contos de fada
Não é novidade alguma que muitos contos de fada têm seu lado de extrema crueldade. Lobo que engole avó. Bruxa que pretende fazer sopa com dois irmãos assim que eles engordarem um pouquinho. Madrasta que transforma a filha do marido em sua escrava.
Mas a verdade dos fatos é que nem os irmãos Grimm, nem Hans Christian Andersen, nem Charles Perrault, nem mesmo William Shakespeare, que escreveu tantos dramas sobre os reis ingleses – nenhum deles conseguiu criar uma história tão cruel, tão desesperadamente triste e cheia de dor, sofrimento, horror, quanto a de Diana Spencer, a princesa mais adorada dos tempos modernos.
Em Honeysuckle Rose (1980), um filme sobre country music, esse gênero de canções que, como tantos outros, fala basicamente de histórias tristes de amor, Willie Nelson e Dyan Cannon cantam uma bela música que sintetiza que “there must be two ways to every story” – em suma, que cada história tem sempre duas versões. É impressionante como os realizadores de The Crown conseguiram, com brilhantismo, contar as duas versões para essa história absolutamente trágica, amarga, tristíssima, horrorosa, de Charles e Diana.
A série muitas vezes usa letreiros para indicar o “onde”: naquela sequência que reúne e alterna tomadas passadas na Escócia, na Islândia e na República da Irlanda, por exemplo, letreiros indicam o local de cada um daqueles três eventos retratados. Não usa, no entanto – e é uma pena –, letreiros para indicar o “quando”. Mas acho que dá para saber que foi em 1979 que Charles telefonou para a ex-namorada Sarah Spencer e disse que gostaria de falar com a irmã caçula dela.
Em 1979, Diana tinha 18 anos, e Charles, 31. (Ela é de 1961, ele, de 1948.) É uma diferença bastante grande, nessa altura do vida – e, como Anne observa, num diálogo creio que com os pais, Diana era mais nova que sua idade e Charles, muito mais velho.
Esta quarta temporada de The Crown mostra claramente, limpidamente: Diana se encantou com Charles, com o fato de o herdeiro do trono se aproximar dela; se encantou por estar encarnando a garota do conto de fadas. E, sim, foi encanto e foi amor.
Já Charles…
Charles namorou um grande número de moças – mas sempre teve uma única paixão na vida. Sempre – a vida inteira. Não é à toa que, tudo passado, as décadas tendo passado, a morte de Diana se distanciando nas areias do passado, ele tenha voltado para o mesmo único e grande amor, Camilla Parker Bowles. O cara amava até o tampão que a mulher usava, meu!
Paro um pouco para pensar sobre essa coisa, que foi revelada pela imprensa britânica, a declaração de amor de Charles que incluía menção ao tampão de Camilla. Meu, nunca, jamais em tempo algum houve uma canção que chegasse a esse exagero. Nenhuma country song, nenhuma torch song, nenhum samba-canção, nenhum tango chegou à imagem apaixonada que Charles usou!
A família fez tudo para proibir o namoro do herdeiro com a moça que parecia a ela, à família, um tanto dadivosa demais da conta para ser a futura rainha. Isso é mostrado à exaustão na temporada três. Mas, como diz outra canção, feita aqui neste fim de mundo, mais perto das Ilhas Falklands do que das Ilhas Britânicas lá do Norte, “Proibiram que eu te amasse, proibiram que eu te visse, proibiram que eu saísse e perguntasse a alguém por ti. Proibam muito mais, preguem avisos, fechem portas, ponham guizos. Nosso amor perguntará :e dai? e daí?”
E daí que Charles e Camilla jamais pararam de se ver. Esta temporada quatro mostra também à exaustão: Charles contava para Camilla cada pequeno acontecimento de cada dia.
Mas por que então namorar a garotinha? Por que ir atrás dela, convidá-la para passar uns dias no Castelo Balmoral com toda a família?
Porque ele se sentia oprimido, forçado a ter que arranjar uma namorada, cacete! Forçado, obrigado a arranjar uma moça que a família aprovasse, para casar, fazer o que todos esperavam dele – e poder continuar amando a amada-amante de sempre.
Ser tão linda, tão simpática, só fez as coisas piorarem
A série mostra tudo isso, às claras, à exaustão. Os dois lados.
Não há aí propriamente – é isso que a série mostra – um bandido e uma mocinha. Tanto Diana quanto Charles tiveram suas doses imensas de sofrimento. Foram vítimas do destino, dos fados, do escritor que inventou para eles essa história absurda de tanta dor. Não foi por prazer que Charles causou tanto sofrimento àquela moça linda, maravilhosa – era porque ele também estava absolutamente perdido, e não encontrava saída.
Tão linda, tão maravilhosa – e tão desesperadamente triste. Meu Deus do céu e também da Terra, como sofreu essa moça!
Ao longo dos dez episódios da série, fiz essa exclamação diversas vezes: como sofreu essa moça!
E é incrível, é impressionante: foi, em boa parte, por ser tão linda, tão maravilhosa, tão simpática, tão carismática, que Diana sofreu ainda mais, sofreu em cima do que já sofria pela solidão, por não ser amada pelo marido, por não ser bem tratada pela família dele. Inseguro, triste, acabrunhado, ele mesmo tão pouco valorizado pela família, Charles não aguentava o sucesso popular da esposa. Quanto mais Diana brilhava, quanto mais era amada pelo povo – no próprio Reino Unido, mas também na Austrália, nos Estados Unidos, mundo afora –, mais Charles se indispunha contra ela, mais se afastava dela.
E é incrível, impressionante, como essa garota Elizabeth Debicki se tornou parecida com Diana – como soube maravilhosamente encarnar Diana.
O décimo e último episódio desta quarta temporada termina em 1990.
Os dois, a rigor, já não eram mais um casal – mas o divórcio mesmo só viria em 1996. O que significa que haverá ainda muita, mas muita, mas muita tristeza na quinta temporada.
And in the end…
Ao terminar – exausto – de reler este texto imenso, interminável, antes de botá-no no 50 Anos de Filmes, me ocorreu que escrevi todas essas trocentas mil linhas e não citei, sequer en passant, o fato óbvio que marca esta quarta temporada de The Crown.
Em um mundo ainda dominado pelos machos e pelo machismo, temos aqui dez episódios em que as protagonistas são três mulheres. A Rainha, a Princesa e a Bruxa.
Anotação em novembro de 2020
The Crown – A Quarta Temporada
De Peter Morgan, criador, roteirista, Reino Unido-EUA, 2020
Diretores Benjamin Caron, Jessica Hobbs, Julian Jarrold, Paul Whittington
Com Olivia Colman (rainha Elizabeth II), Tobias Menzies (Philip, duque de Edinburgh), Josh O’Connor (príncipe Charles), Emma Corrin (Diana)
e (na realeza e seu entorno) Erin Doherty (princesa Anne), Helena Bonham Carter (princesa Margaret), Marion Bailey (a rainha Elizabeth, a rainha-mãe), Charles Edwards (Martin Charteris, o secretário particular da rainha), Emerald Fennell (Camilla Parker Bowles), Charles Dance (Lord Mountbatten), Angus Imrle (príncipe Edward), Tom Byrne (príncipe Andrew), Isobel Eadie (Sarah Spencer), Penny Downie (duquesa de Gloucester)
e (na política e seu entorno) Gillian Anderson (Margaret Thatcher), Stephen Boxer (Denis Thatcher, o marido), Freddie Fox (Mark Thatcher, o filho), Rebecca Humphries (Carol Thatcher, a filha), Paul Jesson (Sir Geoffrey Howe)
e (outros) Tom Brooke (Michael Fagan, o sujeito que invade o palácio), Leanne Everitt (Christine Fagan, a ex-mulher dele), Denise Mack (a empregado do centro de trabalho)
Roteiro Peter Morgan (criador), Jonathan Wilson
Fotografia Stuart Howell
Música Martin Phipps
Montagem Yan Miles, Simon Brasse, Paulo Pandolpho, Frances Parker, Mark Davis, Richard Graham, Morten Højbjerg
Casting Nina Gold e Robert Sterne
Produção Left Bank Pictures, Sony Pictures Television Production UK.
Cor, cerca de 600 min (6h)
****
Disponível na Netflix em 11/2020.
Análise excelente, como sempre. Mas creio que a atriz que interpreta Diana chama-se Emma Corrin
Carissima Erika,
Muitíssimo, mas muitíssimo obrigado por sua mensagem e por me informar que eu havia dado o nome errado da atriz que interpreta Diana!
Sim, você tem toda razão: a atriz que faz Diana na quarta temporada é Emma Corrin.
Elizabeth Debicki – o nome que eu havia dado – é a escolhida para fazer Diana um pouco mais velha, na quinta e na sexta temporada, ainda a serem produzidas!
Confirmei isso no IMDB! Veja como está na página da filmografia da Elizabeth Debicki:
2016 The Crown (TV Series)
Princess Diana
– Episode #6.9 … Princess Diana
– Episode #6.10 … Princess Diana
– Episode #6.8 … Princess Diana
– Episode #6.7 … Princess Diana
– Episode #6.6 … Princess Diana
– Episode #6.5 … Princess Diana
– Episode #6.4 … Princess Diana
– Episode #6.3 … Princess Diana
– Episode #6.2 … Princess Diana
– Episode #5.10 … Princess Diana
– Episode #5.9 … Princess Diana
– Episode #5.8 … Princess Diana
– Episode #5.7 … Princess Diana
– Episode #5.5 … Princess Diana
– Episode #5.6 … Princess Diana
– Episode #5.4 … Princess Diana
– Episode #5.3 … Princess Diana
– Episode #5.2 … Princess Diana
– Episode #6.1 … Princess Diana
– Episode #5.1 … Princess Diana
Então… Tenho que agradecer mil vezes a você!
Muuuuito obrigado, Erika!
Sérgio
que análise maravilhosa acerca de The Crown! parabéns pelo texto, muito bem escrito e resenhado. virei fã! ja vou ler os outros textos das outras temporadas.