Há momentos em que este Hector e a Procura da Felicidade parece um tanto bobo, um tanto ingênuo, um tanto assim adolescente. É um filme otimista, positivo, believer, que defende bons princípios. Nesta era de descrença e cinismo, isso parece mesmo um tanto bobo.
É uma dessas produções do mundo globalizado. A ação se passa em Londres, Xangai, Tibete, o interior de um país miserável qualquer da África e Los Angeles. No elenco há ingleses (Simon Pegg, Rosamund Pike), uma chinesa (Ming Zhao), um sueco (Stellan Skarsgård), um francês (Jean Reno), um americano (Christopher Plummer), uma australiana (Toni Collette).
O roteiro se baseia em um livro do francês François Lelord, Le Voyage d’Hector ou la recherche du bonheur. O IMDb, o mais completo e acurado site sobre cinema que existe, diz que é uma co-produção Canadá-Alemanha-Reino Unido-África do Sul, mas o próprio filme, no encerramento dos créditos finais, diz que é Canadá-Alemanha.
Um sujeito que tem tudo o que uma pessoa pode desejar – e muito mais
O filme abre com um daqueles aviões bem antigos, dos anos 1920, 1930, com duas asas paralelas, e lugares para um piloto e um passageiro, sem qualquer proteção, o vento batendo no rosto deles. O piloto é o Hector do título – o papel de Simon Pegg, não muito conhecido no Brasil mas um comediante aclamadíssimo na Grã-Bretanha.
No banco de trás, o do carona, vai um cão daquele tipo gorducho, tijolaço, bulldog – de óculos, como o piloto, para proteção dos olhos contra o vento direto.
O aviãozinho faz peripécias no ar, vira de cabeça pra baixo – e plóft! O cachorro cai!
Como nas piadas, nos desenhos animados, o piloto demora um pouquinho a perceber que seu passageiro caiu. Está muito feliz, sorridente; aí olha para trás, vê que o cão não está mais ali.
E então Hector acorda de repente, assustado com o pesadelo, e chama: – “Clara!”
E Clara aparece no quarto, levando para Hector o café da manhã na bandeja e dizendo: – “Hector! Bom dia, querido. Hora de levantar e brilhar”.
E Clara vem na pele da deslumbrante Rosamund Pike, em seu último papel antes de atingir o estrelato e as atenções do mundo inteiro por sua interpretação como Amy Dunne em Garota Exemplar/Gone Girl, do mesmo ano deste filme aqui, 2014.
A voz de Hector-Simon Pegg vai dizendo isto aqui para o espectador, enquanto vemos que Clara, aquela mulher monumental, trata o namorado com carinho, atenção, mimo, tudo o que um homem pode desejar e muito, muito, muito mais:
– “Era uma vez um jovem psiquiatra chamado Hector, que tinha uma vida muito satisfatória. Seu mundo era arrumadinho, descomplicado. E ele gostava daquilo. Tinha muito conforto com seus padrões previsíveis. Padrões que sua namorada Clara mantinha com felicidade.”
Moram num belo apartamento debruçado sobre o Tâmisa.
Hector tem tudo o que um homem pode desejar e muito, muito, muito mais – mas logo começa a ter dúvidas. Não ouve mais com toda a atenção seus pacientes. Ao contrário, vai ficando impaciente com seus pacientes. Passa a perguntar aos outros se eles são felizes. A se perguntar se é de fato feliz.
De repente, tem um ataque quase histérico com uma paciente. E, numa festa da firma de Clara – em que ela, o chefe dela e os colegas comemoram num bar uma campanha publicitária bem sucedida a partir de uma idéia de Clara, uma Amélia perfeita que também é profissional bem sucedida na Londres ultracompetitiva de nossos dias –, ele se pega absolutamente nervoso.
O filme mostra Xangai como a metrópole mais consumista do mundo
E então Hector decide tirar um período sabático, viajar pelo mundo, ver coisas novas, tentar saber o que, afinal, é a felicidade, tentar aprender como se busca a felicidade.
A vida vem em ondas como o mar, um drama nunca vem sozinho e então um belo dia, pouco antes de Hector decidir sair em viagem pelo mundo sem a sua companhia, a maravilhosa Clara encontra, na gaveta de meias do namorado, uma antiga foto em que um jovem Hector aparece ao lado de uma moça e um rapaz. No verso da foto estão os nomes de Michael e Agnes. Como problema pouco é bobagem, Clara não pergunta a Hector quem é Agnes – fica martelando na cabeça que Agnes é o grande amor da vida dele.
E de fato Hector e Agnes se amaram muito, lá no passado, quando eram colegas de escola. E Hector vai, sim, durante seu período sabático, visitar Michael na África e depois Agnes em Los Angeles – interpretados, respectivamente, por Barry Atsma e Toni Collette. Antes, no entanto, visitará a China, depois o Tibete, a terra dos monges budistas, o poço de sabedoria do planeta.
Não teria sentido, é claro, relatar mais sobre a trama, sobre o que Hector vai encontrar em suas andanças pelo mundo. Só acho necessário registrar que o contraponto maior à imensa, acachapante miséria da África seja os lugares para milionários que ele encontra em Xangai. A metrópole do país teoricamente comunista é mostrada como um lugar mais febrilmente consumista que Nova York, Londres ou Paris.
Isso é fascinante. É um dos pontos altos do filme, na minha opinião.
“Mais importante que a busca da felicidade é a felicidade da busca”
Outro ponto alto são as brincadeiras formais. O diretor Peter Chelsom usa e abusa de sacadinhas, solta mais fogos de artifício que americano no 4 de Julho. Mas ele sabe fazer, e é tudo extremamente bem bolado e bem realizado.
Hector vai anotando, numa agenda que ganhou de Clara antes de embarcar, as conclusões a que vai chegando sobre a felicidade. A câmara mostra várias vezes a agenda aberta, e o espaço das páginas da agenda se transforma numa tela para gostosas animações.
A inventividade das sacadinhas formais deste Hector and the Search for Happiness faz lembrar duas das comédias românticas mais extraordinárias das últimas décadas, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) e (500) Dias Com Ela (2009).
Algumas das conclusões que Hector anota na sua agenda são deliciosas:
“Algumas vezes a felicidade é não saber a história inteira.”
“A felicidade é saber como celebrar.”
E esta, que ouve de uma doente em estado gravíssimo que ele ajuda e a quem escuta longamente, no vôo entre a África e Los Angeles:
“Ouvir é amar.”
Hector precisou dar a volta ao mundo, como um Phileas Fogg dos dias de hoje, para aprender que ele, afinal de contas, domina este engenho, esta arte que é saber ouvir as pessoas.
Listening is loving. Isso dito a um psiquiatra, um homem cujo trabalho em grande parte é ouvir, faz de fato lembrar os versos de Vicente de Carvalho – a felicidade está onde a pomos, mas nunca a pomos onde estamos.
Do professor Coreman, um cientista que desenvolveu uma complicadíssima máquina capaz de mostrar em cores as sensações que passam pelo cérebro humano, ele ouvirá outra verdade irrefutável: “Nós deveríamos nos preocupar não tanto com a busca da felicidade, mas com a felicidade da busca”.
O professor Coreman é o papel de Christopher Plummer (na foto acima com Toni Collette), este ator que de fato é como o vinho, fica melhor a cada ano que passa. Em 2014, ano de lançamento do filme, Plummer estava com 85 anos. Aos 85 anos, trabalha muitíssimo melhor do que em 1965, quando foi o rígido capitão Von Trapp em A Noviça Rebelde/The Sound of Music.
Um ator muito admirado em seu país e uma atriz que está virando estrela
Em 2008, Simon Pegg fez o papel principal em Um Louco Apaixonado/How to Lose Friends & Alienate People, produção cara que tem no elenco nomes de peso (Kirsten Dunst, Danny Huston, Gillian Anderson, Jeff Bridges, Megan Fox, mais pequeníssimas participações especiais de Kate Winslet, Thandie Newton, Daniel Craig, Toni Collette). Não o conhecia quando vi o filme, mas só o fato de ele ser o protagonista de uma produção com tanta gente boa no elenco já indicava que ele tinha importância na Inglaterra.
Tem, sem dúvida. Nascido em 1970, no interior da Inglaterra, colecionava, em outubro de 2015, uma filmografia com 80 episódios de TV e/ou filmes, e é também roteirista, com mais de 20 episódios e/ou filmes no currículo. Outros filmes com ele que já estão neste site são Sonhando Acordado/The Good Night (2006) e Paul – O Alien Fugitivo/Paul (2011).
Ao contrário de Simon Pegg – que tem um rosto comum, normal, parecido com mil outros, e não impressiona a gente em nada –, Rosamund Pike brilha na tela, e é difícil esquecer seu rosto. Este 50 Anos de Filmes, que não tem a menor pretensão de ser enciclopédico, amplo, abrangente, completo, já tem nada menos que seis filmes em que passeia a beleza dessa moça nascida em Londres em 1979, quatro anos depois da minha filha: Orgulho e Preconceito/Pride & Prejudice (2005), Um Crime de Mestre / Fracture (2007), Educação/An Education e Substitutos / Surrogates (os dois de 2009), A Minha Versão do Amor/Barney’s Version e Revolução em Dagenham/Made in Dagenham (os dois de 2010).
Fica faltando exatamente Garota Exemplar/Gone Girl, o filme pelo qual recebeu uma indicação ao Oscar e a tornou mais conhecida no mundo todo. Vi o filme de David Fincher, mas, por algum motivo, não escrevi uma linha sobre ele. Um dia ainda o revejo – não só porque é um bom filme, e gostaria que ele estivesse neste site, mas sobretudo para rever Rosamund Pike no papel que talvez tenha sido o mais importante da carreira dela até agora.
Não me lembrava do nome Peter Chelsom, o diretor. O 50 Anos de Filmes me surpreende: traz já dois filmes de Peter Chelsom, Sempre Amigos/The Mighty (1998), um interessante drama-comédia familiar sobre dois garotos excluídos do Sonho Americano, e Dança Comigo/Shall We Dance (2004), boa refilmagem americana do original japonês com Richard Gere, Jennifer Lopez e Susan Sarandon.
Taí: é um realizador interessante, esse Peter Chelsom. Fez apenas oito longa-metragens, entre 1991 e 2014 – oito filmes em 23 anos!
Domina com perfeição o ofício.
Este Hector pode não ser (e não é, nem pretende ser) um grande filme. Mas é gostoso, agradável, muitíssimo bem realizado – e extremamente simpático.
Anotação em outubro de 2015
Hector e a Procura da Felicidade/Hector and the Search for Happiness
De Peter Chelsom, Canadá-Alemanha, 2014
Com Simon Pegg (Hector), Rosamund Pike (Clara)
e Tracy Ann Oberman (Jane), Jean Reno (Diego Baresco), Veronica Ferres (Anjali), Barry Atsma (Michael), Tony Collette (Agnes), Stellan Skarsgård (Edward), Ming Zhao (Ying Li), Togo Igawa (o velho monje), Christopher Plummer (Professor Coreman), Bruce Fontaine (Malcolm), Chad Willett (Alan), Bernard Cuffling (Professor Niedorf), Jakob Davies (Hector garoto)
Roteiro Maria von Heland e Peter Chelsom & Tinker Lindsay
Baseado no livro Le Voyage d’Hector ou la recherche du bonheur, de François Lelord
Fotografia Kolja Brandt
Música Dan Mangan e Jesse Zubot
Montagem Claus Wehlisch
Produção Egoli Tossell Film, Film Afrika Worldwide, Construction Film, Erfttal Film, Head Gear Films.
Cor, 120 min
***
Tenho um pouco de preguiça de filmes com “felicidade” no título ou coisa que o valha. Ficam parecendo auto-ajuda.
Eu vi “Garota Exemplar” logo depois de ter lido o livro, e achei chato e lento, muito lento. Detestei a não atuação de Ben Affleck, e se me lembro bem, gostei razoavelmente de Rosamund Pike, tão estranha quanto a personagem. Recomendo apenas o livro, muito mais cheio de detalhes, como sempre; qualquer mulher que já tenha se relacionado com um homem babaca, identificará o tipo. A escrita de Gillian Flynn é irônica e por vezes ácida, mas muito fluida.
Pena que você não tenha anotado nada sobre o filme, gostaria de saber sua opinião (já vi que gostou). Vou esperar o texto depois que você revê-lo (coisa que não vou fazer).
Preciso ver novamente “A Noviça Rebelde” para dizer se Christopher Plummer está mesmo canastrão ou se é implicância sua. hehe
Assisti a esse filme há muitos anos, e só lembro que ele estava gato demais (um dos meus crushes do cinema). Por falar nisso, achei Jon Hamm muito parecido com ele em “Mad Men”, e levei umas duas temporadas para me acostumar com a semelhança. Mas Hamm tem o nariz mais bonito, e como tenho uma coisa por narizes masculinos, na minha classificação de beleza ele ganha (até falei num comentário que o considero o ator mais bonito em Hollywood hoje. Deus conserve).
Se eu me animar a ver este filme, volto aqui. Mas até agora não vi “A Vida Secreta de Walter Mitty”, que acho que vai pelo mesmo estilo. O fato de ter Ben Stiller como protagonista me dá mais preguiça ainda. Pelo menos Simon Pegg me é indiferente.
Oi Jussara tudo bem? tudo bem!legal você não gostar de filmes de auto ajuda! rsrsrsrs. talvez faça bem para alguém , mesmo se não o fizer… entreter já é bom .