Nota:
Anotação em 2011: Uma beleza, uma maravilha de filme, daqueles de encher os olhos, a cabeça, a alma. Para mim, é mais uma de tantas provas de que o melhor cinema do mundo nas últimas décadas se faz nas Ilhas Britânicas.
Os americanos talvez o chamem de o Norma Rae inglês – e tem, sim, algo a ver com o filme do veterano lutador pelas causas liberais Martin Ritt que deu o Oscar a Sally Field em 1979 por seu desempenho como a operária de uma indústria têxtil no Sul dos Estados Unidos que vira uma batalhadora pelo sindicalismo.
Como Norma Rae, este Revolução em Dagenham/Made in Dagenham mostra a vida de uma operária, mãe de família, que de repente se vê envolvida na luta por direitos trabalhistas e femininos; como Norma Rae, a operária inglesa Rita O’Grady acaba deixando em segundo plano seu papel de esposa e mãe, e enfrenta, é claro, duros problemas com isso.
A grande diferença é que Revolução em Dagenham relata uma história real, que aconteceu em um passado muito recente, 1968 – e que acabaria tendo um impacto importantíssimo na história das relações trabalhistas e na vida das mulheres da Inglaterra, com influência sobre diversos outros países.
1968 – é de fato uma história muito recente. Como diz o grande Bob Hoskins, um dos atores principais do filme: aquilo tudo aconteceu quando ele estava começando sua carreira; ele se lembra de ter acompanhado as notícias nos jornais.
Uma história recente, e muito importante – e, no entanto, eu nunca tinha ouvido falar dela, nem Mary.
Uma fábrica com 55 mil homens e 187 mulheres
A abertura faz lembrar outro belo filme inglês que trata da working class, a classe operária, os trabalhadores mais simples, humildes, Ou Tudo ou Nada/The Full Monty, de Peter Cattaneo, de 1997. Ou Tudo ou Nada começa com trechos de cinejornais falando das indústrias da região de Sheffield, no norte da Inglaterra. Revolução em Dagenham também abre com trechos de cinejornais, ou noticiário de TV, falando sobre a fábrica da Ford nesse lugar, um subúrbio da região Leste da Grande Londres.
Um letreiro informa: “Em 1968 havia 55 mil homens empregados na fábrica da Ford em Dagenham – e 187 mulheres”.
As 187 mulheres trabalhavam numa unidade encarregada da costura do material que recobre os bancos dos carros. Eram tidas pela fábrica (e pelo próprio sindicato) como trabalhadoras sem especialização – e seus salários eram, como em todas as demais indústrias inglesas, inferiores aos dos homens, pelo simples fato de que eram mulheres.
Rita O’Grady, a protagonista da história, era uma delas. Não exercia nenhum cargo sindical – a representante sindical na unidade de costura era Connie (Geraldine James), a maior amiga de Rita. Quando a ação começa, um veterano operário da fábrica, Albert (o papel de Bob Hoskins), este sim, um sindicalista, leva às operárias uma questão a ser debatida, a possibilidade de uma paralisação por um dia da unidade de costura caso uma demanda dos trabalhadores não fosse atendida. A adesão à proposta é unânime.
Para a reunião em que o assunto seria discutido com representantes da Ford, Albert quer levar uma outra operária além de Connie, e Rita, que nunca havia tido qualquer experiência de negociação sindical, é escolhida. Na reunião, para surpresa de todos, inclusive dela própria, Rita acaba dando um show.
Connie está tendo problemas com o marido, George (Roger Lloyd-Pack), um veterano da Segunda Guerra, assolado por pânico. Albert sabe dos problemas pessoais de Connie, e por isso incentiva Rita a assumir a liderança da luta sindical na unidade de costura; a moça reluta, não quer magoar a amiga, mas Albert já havia conversado com Connie, e ela não tinha nada contra Rita tomar a dianteira.
Rita é um daqueles casos de liderança natural, inata. Ela desconhecia esse seu talento, mas fica à vontade em seu novo papel – e, de repente, põe na mesa a exigência de pagamento para as mulheres igual ao dos homens.
A coisa cresce como incêndio em floresta seca, como bola de neve que vira avalanche. A unidade de costura de Dagenham entra em greve, e Rita, Connie e outras colegas – Brenda (Andrea Riseborough), Sandra (Jaime Winstone) – levam a reivindicação às outras unidades da Ford na Grã-Bretanha.
E em pouco tempo toda a fábrica de Dagenham pára, por falta de bancos dos carros. O caso vira notícia nacional, vira sério problema econômico e político. O sindicato, formado por pelegos, fará tudo para circunscrever o caso, para impedir que ele assuma proporções maiores. A matriz americana da Ford manda à Inglaterra um de seus diretores, Robert Tooley (Richard Schiff), para abafar a reivindicação.
O governo é obrigado a enfrentar o problema.
Uma ministra de pulso firme, uma figura fascinante, baronesa e trabalhista
Entre 1964 e 1970, a Inglaterra foi governada pelos trabalhistas, sob o comando do primeiro-ministro Harold Wilson. Em 1968, a ministra do Emprego era Barbara Castle – interpretada, no filme, pela excelente Miranda Richardson (na foto). Barbara Castle foi, vejo agora, uma figura fascinante; uma das grandes lideranças do Partido Trabalhista, quarta mulher a participar de um gabinete ministerial da Grã-Bretanha, eleita para o Parlamento pela primeira vez em 1945, manteve o recorde de permanência nele para mulher, recorde que só seria quebrado em 2007. E era uma baronesa!
O filme descreve Barbara Castle como uma mulher de pulso firmíssimo – e Harold Wilson, o primeiro-ministro que dizia que ela era o homem mais forte de seu ministério, como um político um tanto inapetente para o trabalho, um bon-vivant que não esquentava a cabeça com nada.
Sally Hawkins é um fenômeno, uma força da natureza
Quis relatar um pouco da história antes de falar de Sally Hawkins (na foto abaixo), a atriz que interpreta o papel principal do filme, o de Rita O’Grady.
O cinema inglês tem, sempre teve, uma característica impressionante: seus atores são sempre excelentes. Não sei se já se fizeram estudos, teses a respeito disso; seguramente deve haver muitos – afinal, há estudos e teses sobre tudo no mundo, da influência do período menstrual das baleias na formação das correntes marítimas à importância da importação das bicicletas bessarabianas pela Nova Zelândia. Deve haver estudos sobre por que a Inglaterra tem tantos bons atores – mas eu não os conheço. Gostaria de conhecer.
Deve ter a ver com civilização; deve ter a ver com a tradição secular do teatro. Sei lá. O fato é que é mais difícil ver um ator inglês fraco do que ver um filme brasileiro em que todas as atuações são perfeitas.
Sally Hawkins é um fenômeno, mesmo em uma cinematografia que tem os melhores atores do mundo. Essa moça é uma força da natureza. Nascida em Londres, em 1976, começou a trabalhar no cinema em 1999; teve um papel pequeno no magnífico O Segredo de Vera Drake, de Mike Leigh, de 2004; teve também um papel pequeno em O Sonho de Cassandra, de Woody Allen, de 2007. (Confesso que sequer reparei nela nesses dois filmes.) Aí, no ano seguinte, 2008, Mike Leigh deu a ela o papel principal em Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky – e ela arrasou. Sally Hawkins já coleciona 14 prêmios, inclusive um Globo de Ouro, e outras dez indicações.
Ela é feinha. Melhor dizendo: ela não tem um rosto especialmente bonito. É um rosto de mulher, de mulher normal, como são as mulheres em sua imensa maioria. Garantir um espaço como atriz importante, mesmo para as mulheres que receberam a dádiva da beleza, é algo extremamente difícil – para as que não foram brindadas com esse dom, então, deve ser algo duríssimo.
Sally Hawkins é um espanto.
Revolução em Dagenham não seria um filme tão absurdamente brilhante se qualquer outra atriz tivesse sido escalada para fazer o papel de Rita O’Grady, a operária inglesa que mudou a História.
Todas as interpretações são ótimas, em Revolução em Dagenham. Os coadjuvantes todos são perfeitos. Mas Sally Hawkins brilha acima de todos.
Bob Hoskins faz maravilhosamente o papel de Albert, o sindicalista dedicado, honesto (ao contrário de muitos outros mostrados no filme), que confessa de cara que falar para cento e tantas operárias é mais assustador do que foi lutar contra os nazistas de Rommel na Segunda Guerra. Mas este é um filme que se apóia sobre um trio de mulheres: Rita-Sally Hawkins, a operária que descobre por acaso que tem uma capacidade de liderança em que ninguém acreditaria, Barbara Castle-Miranda Richardson, a baronesa trabalhista, e Lisa Hopkins-Rosamund Pike (na foto abaixo).
O encontro da operária simples com uma mulher rica, culta
Lisa surge na história como um incidente quase imperceptível.
Rita nota que seu filho mais jovem (ela tem dois, uma garota já na adolescência e esse menino, aí de uns oito, nove anos) está com a palma da mão direita ferida pela palmatória do professor. (Sim, na Inglaterra de 1968, Beatles e Rolling Stones no auge das carreiras, a minissaia de Mary Quant tomando o mundo, ainda era permitido que os professores castigassem fisicamente os alunos. É uma das muitas coisas malucas daquela sociedade, a mais sólida, brilhante democracia do mundo.)
E então Rita vai à escola do filho para enfrentar o professor. A seqüência é maravilhosa. O professor é uma besta-fera absoluta, o classismo britânico personificado, escancarado. Fala um monte de asneiras para Rita, e é tanta asneira que ela não consegue sequer reagir. Sai da sala furiosa, tonta de indignação e ódio, e, no corredor, esbarra em uma mulher. Educada, distinta, Rita deixa escapar um palavrão, coisa rara em sua vida, e se distancia da mulher.
É Lisa, a terceira mulher do tripé construído pelo roteirista William Ivory para contar essa história real fascinante.
O espectador mal percebe aquele pequeno incidente, o fato de que Rita esbarrou numa mulher no corredor, após sair furiosa, tonta de indignação e ódio, do encontro com o professor que bate em seu filho. Pois eu percebi, embora a cena seja bem rápida, que a mulher era interpretada por Rosamund Pike; percebi que era Rosamund Pike porque o nome da atriz havia aparecido nos créditos iniciais, e eu me lembrava que Rosamund Pike é uma atriz belíssima – ela está em Orgulho e Preconceito (2005), Um Crime de Mestre/Fracture (2007), Educação (2009). E então fiquei me perguntando, e perguntando a Mary, que importância poderia ter na história aquela mulher com quem Rita trombou no corredor da escola do filho.
Lisa-Rosamund Pike voltará a aparecer algumas poucas vezes, na história – mas a importância da personagem é enorme. Longe de mim querer fazer spoiler, mas não consigo deixar de transcrever uma frase que Lisa diz, quando o filme já está lá pelo terço final:
– “Meu nome é Lisa Hopkins, tenho 32 anos. Estudei em uma das melhores universidades do mundo (àquela altura, o espectador sabe que Lisa se formou em História em Cambridge), e meu marido me trata como se eu fosse uma idiota.”
Um filme escancaradamente, maravilhosamente feminista
O roteiro de Revolução em Dagenham é de um brilho absoluto. Esse William Ivory – assim como o diretor Nigel Cole – passa longe de todos os fogos de artifício, as invencionices, os criativóis. Conta a história – uma belíssima história real – direito. Constrói personagens que parecem de carne e osso, de três dimensões – desde o trio feminino mais importante aos coadjuvantes, as operárias Connie, Sandra (a loura ao centro na foto), Brenda (a morena à esquerda na foto), os maridos George e Eddie O’Grady, os sindicalistas calhordas, o chefão da Ford americana que desembarca em Londres como um ditadorzinho.
Um pequeno exemplo de maravilha do roteiro é o rápido – e genial – diálogo entre Rita e a ministra Barbara Castle, quase no finalzinho, a respeito de vestidos. A baronesa ministra trabalhista nota que a operária está usando um vestido de grife – ela havia pedido emprestado à rica Lisa. A operária nota que a ministra está usando um vestido de uma loja mais popular, a C&A. A ministra diz: Por que gastar à toa? E aí Rita diz que tem um igual em casa.
É uma beleza de roteiro, e uma beleza de realização.
Não reconheço nenhum dos outros poucos filmes escritos por William Ivory, mas é um nome para se acompanhar. Quanto ao diretor Nigel Cole, também não tem uma filmografia vasta; foi o realizador de O Barato de Grace, de 2000, com Brenda Blethyn, Calendar Girls, de 2003, com Helen Mirren, e De Repente é Amor/A Lot Like Love, de 2005, com Amanda Peet e Ashton Kutcher. Ainda bem que, depois dessa experiência em Hollywood, voltou para casa. De Repente é Amor é uma comedinha romântica boazinha, mas não mais que isto. Já este Revolução em Dagenham é um filme maior.
Um filme maior. É um filme feminista, escancarada e maravilhosamente feminista. É um filme com um profundo respeito pela working class, pelos trabalhadores. Em momento algum é chato, panfletário, discurseiro. Até porque tudo o que defende é absolutamente certo, correto, moralmente justo. Como diz Rita: “Não são privilégios: são direitos”.
Se a gente pensar neste miserável país subdesenvolvido, terceiro-mundista em que vivemos, dá uma tristeza danada: aqui, ao contrário de lá, os que se dizem os donos da luta pelos direitos dos trabalhadores só lutam mesmo é pelos seus próprios privilégios.
Mas, como dizia o Gil, muito antes de aderir ao lulo-petismo, tais recordações, melhor é deixar pra lá.
O problema é que é difícil deixar pra lá. Mesmo quando a gente está feliz ao ver esta beleza de filme.
Revolução em Dagenham/Made in Dagenham
De Nigel Cole, Inglaterra, 2010
Com Sally Hawkins (Rita O’Grady), Bob Hoskins (Albert Passingham), Miranda Richardson (Barbara Castle), Rosamund Pike (Lisa Hopkins), Daniel Mays (Eddie O’Grady), Geraldine James (Connie), Andrea Riseborough (Brenda), Jaime Winstone (Sandra), Richard Schiff (Robert Tooley), Roger Lloyd-Pack (George), Sian Scott (Sharon O’Grady), Robbie Kay (Graham O’Grady), John Sessions (Harold Wilson)
Roteiro William Ivory
Fotografia John de Borman
Música David Arnold
Produção Audley Films, BBC Films, BMS Finance, HanWay Films, Lipsync Productions, Number 9 Films, UK Film Council . DVD Sony Pictures
Cor, 113 min.
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Título na França: We Want Sex Equality
Olá, Sérgio.Gosto muito do seu blog e não há um dia sequer que não o visite para ler ou reler seus textos. Aprecio a maneira como você escreve e acho que já devo ter lido todos os seus posts- de verdade!- e relido alguns muitas vezes mais. Por isso que nunca comentei (gasto todo o tempo lendo).Uma coisa que percebo é que você fala pouco de cinema brasileiro. Sei, se eu clicar no link “Brasil” no lado direito do site, vou encontrar todos os seus posts sobre cinema nacional e há pouco mais de 40! Parece bastante, mas não para um blog que tem mais de 1.500 posts. Olha, sou muito sua fã e não quero mandar de forma alguma naquilo que você vê e comenta, mas o cinema brasileiro vive uma fase tão excelente, fico meio triste de saber que grandes filmes feitos aqui no Brasil, grandes filmes brasileiros que poderiam muito bem figurar em grandes listas de grandessíssimos filmes, não fazem parte de um dos sites que mais amo na internet, um dos sites mais bacanas sobre cinemas com abordagem especial(e original), diferente da maioria por aí.Puxa, seria legal ver mais filmes brazucas por aqui! 🙂
Vanessa, nossa, muitíssimo obrigado pelas referências tão gentis ao blog/site.
Senti o puxão de orelha. Você tem toda razão. Preciso falar mais do cinema brasileiro.
Um grande abraço, e, de novo, muito obrigado.
Sérgio
Sergio, que tal analisar ‘Reflexões de um Liquidificador’ na volta das férias? Bom filme.
Descobri seu blog, Sergio. Que maravilha! Como voce escreve bem. Sem ser chato. Para nós, do interior do Brasil, é muito importante este seu trabalho acerca de nos apontar otimos filmes.
Olá, ainda não assisti o filme, mas sou muito fã de Sally Hawkins, ela é incrível…
Bom dia! Sou professora e gostaria de passar esse filme para a 8 série. Porém não consegui achar a censura (idade minima) do filme. Alguém poderia me orientar?