Círculo de Fogo / Enemy at the Gates


Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: O inferno da guerra em Stalingrado, em 1942, numa superprodução milionária e excepecionalmente bem cuidada, dirigida por Jean-Jacques Annaud. As cenas de ação, de batalha, de luta entre os invasores nazistas e o Exército Vermelho são extraordinariamente bem feitas.

As primeiras seqüências na guerra, logo após um rápido e belo intróito no passado, no campo, são magistrais. Me fizeram lembrar os 20 primeiros minutos acachapantes de O Resgate do Soldado Ryan/Saving Private Ryan, de Spielberg, de 1998, com o desembarque dos aliados na Normandia, e o tour-de-force que é o imenso plano-seqüência que mostra a retirada dos aliados de Dunquerque, a segunda parte de Desejo e Reparação/Atonement, de Joe Wright, de 2007.  

Esses dois exemplos que citei são extraordinários, das coisas mais impressionantes da história do cinema. Pois os 15 primeiros minutos deste Círculo de Fogo são do mesmo nível – uma coisa admirável.

As imagens do intróito já são belas – numa paisagem de campo tomado pela neve, um garotinho mira um lobo com sua espingarda; está ao lado de um homem mais velho, seu avô, que o ensina a atirar. O lobo está se aproximando de um cavalo, amarrado a uma árvore. O garotinho sabe que tem apenas uma bala – ou acerta o lobo, ou o cavalo da família corre risco seriíssimo.

Corta, e estamos em um trem apinhado de soldados do Exército Vermelho, o Exército da União Soviética, as forças de Josef Stálin. Um dos soldados – interpretado por Jude Law – não consegue tirar os olhos de uma jovem belíssima que está no mesmo vagão – e nem poderia mesmo, já que a jovem vem na pele da Rachel Weisz. O trem pára numa estação, todos os civis são retirados dos vagões, reservados agora apenas a soldados. Diversos militares – provavelmente sargentos – dão ordens através de megafones, mandam os civis descerem, fazem loas à bravura do Exército Vermelho que, sob o comando do camarada Stálin, vai enfrentar os nazistas que invadiram o território soviético.

 O soldado interpretado por Jude Law, obviamente o mesmo menininho do intróito que aprendeu a atirar com o avô, no campo, é focalizado diversas vezes entre a multidão compacta dentro do trem. Acompanharemos os movimentos da multidão, mas a câmara estará sempre voltando especificamente para aquele soldado – o protagonista da história, dentro do quadro maior de um dos momentos cruciais da Grande História – Stalingrado, em setembro de 1942, conforme nos informa um letreiro.

         Um mapa mostra a mancha nazista tomando a Europa

Para facilitar a compreensão da Grande História, Annaud nos mostra um mapa da Europa, quase todo ele tomado pelas forças nazistas. Apenas as Ilhas Britânicas e parte da União Soviética ainda não foram tomadas, mas a mancha nazista já penetrou em parte do gigante comunista, avançando até o Rio Volga, às margens do qual está Stalingrado.

Explicação dada, mapa mostrado, vemos o trem com milhares de soldados desembarcando junto ao Volga, os soldados sendo tangidos feito gado para dentro de barcos que atravessarão o rio até Stalingrando, o último bastião de resistência contra a maré nazista. Sargentos com seus megafones dão ordens entremeadas de loas ao camarada Stálin. Diversos barcos cheios de soldados avançam para cruzar o Volga – enquanto a artilharia alemã lança sobre eles bombas e fogo de metralhadora. No desespero, alguns soldados se lançam ao rio, enquanto os megafones avisam que o camarada Stálin não vai tolerar deserção, e os desertores serão sumariamente fuzilados – e vemos soldados russos sendo atacados pelo fogo alemão e pelo fogo comunista ao mesmo tempo.

A seqüência é em tomadas rápidas, ágeis, bem feitíssimas; é atordoante, chocante, sanguinolento, violento, brilhante.

Jude Law dá um show. Ele expressa perplexidade, medo, inocência, assombro – e, ao mesmo tempo, desassombro, coragem, um estranho desapego pela vida, uma furiosa capacidade de enfrentar a situação louca, insana. Um garoto, quase uma criança, um camponês iletrado dos Montes Urais lançado no turbilhão de um dos fronts mais violentos de toda a Segunda Guerra Mundial.

Quem sobrevive à travessia do Volga e chega ao lado do rio em que está Stalingrado recebe a seguinte ordem: um soldado pega uma espingarda, o outro vai atrás; se o que tiver a espingarda morrer, o outro assume a arma.      

Nesse ponto – estamos com uns 15, nem 20 minutos de filme –,  Mary fez um comentário perfeito, cristalinamente no alvo, do tipo: Pô, impressionante, o filme mostra com deve ser de fato uma batalha, tudo desorganizado, sem controle. Eu, há quase um ano enfiado na releitura de Guerra e Paz, em que Tolstói descreve com minúcias a invasão anterior do solo russo por exércitos chefiados por outro déspota ensandecido, a de Napoleão no começo do século XIX – com minúcias e a permanente insistência no fato de que nada nas batalhas ocorre segundo o planejado pelos generais –, não poderia senão concordar.

         E, no entanto, não chega a ser, na minha opinião, um grande filme

 Então tá bom – então, digressões, tergiversações à parte, temos que este é um grande filme?

Aí é que está: não, não chega a ser um grande filme, este Círculo de Fogo, tão caro, tão bem produzido, com seqüências tão maravilhosas, com um grande e respeitabilíssimo elenco (além dos jovens ingleses Jude Law e Rachel Weisz, lá estão também Ed Harris, Bob Hoskins, Joseph Fiennes). Na minha opinião, não chega a ser um grande filme.

Porque, se tem esse visual suntuoso, esse brilho artesanal comparável ao que melhor se fez em recriação de cenários de guerra nos últimos tempos, o filme tem, sempre na minha opinião, é claro, o pecado mortal da simplificação, do primarismo, na estruturação dos personagens, seus relacionamentos, o desenrolar da trama.

É uma trama esquemática. Os personagens são esquemáticos. Os diálogos são forçados, falsos, simplistas, primários, esquemáticos.

É tudo primário e esquemático como deve ser, digamos, A Balada do Soldado, um filme soviético dos anos 60, do mais redondo realismo socialista. (Digo “deve ser”, e não “é”, porque só vi A Balada do Soldado quando era adolescente; na época adorei, é claro; mas tenho plena certeza de que, se revisse hoje, acharia raso, primário, esquemático – realismo socialista.)

         Um início quase tolstoiano – mas aí vem o elogio ao heroismo

Depois de um início brilhante, em que, quase tolstoianamente, demonstra, além da insanidade, a absoluta desordem, a total bagunça e ausência de planejamento das batalhas, o filme cai no elogio ao heroísmo.

Vassili Zaitsev, o soldado interpretado por Jude Law, homem do povo, humilde camponês iletrado, não apenas é um grande herói, um soldado intrépido, destemido, um atirador mais que perfeito, um ser humano sem máculas, como até mesmo luta contra o incensamento de suas próprias ações, contra sua transformação midiática no Grande Herói da Pátria.

Tania, a personagem interpretada por Rachel Weisz, é igualmente plana. Teve acesso à educação, fez universidade em Moscou, sabe línguas, lê e fala alemão, é culta, mas está pronta a recusar uma posição bem mais confortável no quartel-general em troca das agruras do campo de batalha, ainda mais depois de saber que o destino de seus pais – judeus – foi traçado pelo conluio entre as ditaduras comunista e nazista. Não é uma pessoa – é perfeita, é uma deusa.

Danilov (o papel de Joseph Fiennes), o oficial também culto, estudado, que se dá bem pelos contatos com a nomenklatura, a casta privilegiada, por sua vez, é mau como um pica-pau. É invejoso, tem ciúme da criatura que enaltece na mídia, não tem escrúpulo algum quando se trata de defender o que quer para si.

É estranho, é esquisito, é inesperado, mas Annaud e seu co-roteirista Alain Godard parecem ter caído na armadilha que de alguma forma tentaram denunciar: caíram no realismo socialista, a simplificação, o esquematismo.

         A guerra da propaganda

Sem dúvida, é interessante a guerra de propaganda via meios de comunicações que o filme mostra. Danilov percebe que pode usar a figura de Vassili Zaitsev como arma de propaganda, para melhorar o moral das tropas e da população civil russa – e o novo comandante das forças em Stalingrado, um tal Nikita Kruschev (o papel do grande Bob Hoskins), entende que aquela pode de fato ser uma grande tática.

Não tinha idéia de que Kruschev – que uns 15 anos mais tarde, como secretário-geral do PC-URSS, denunciaria muitos dos crimes da era Stálin – havia comandado as forças soviéticas em Stalingrado. Ignorância pura.

Também é interessante a figura do major Konig (o papel de Ed Harris), o nazista respeitado, ele próprio um brilhante atirador de elite, destacado para acabar com a vida do soldado que injeta orgulho nos russos. Talvez o major Konig seja o personagem que tem mais jeito de pessoa, entre as figuras retratadas no filme. Tem dúvidas, tem hesitações – não é um estereótipo, é um ser humano.

E é lindíssima – chocantemente bela e triste – a cena de amor entre Vassili e Tania, no meio de dezenas de soldados fatigados, extenuados pelos combates incessantes.

Registro tudo isso porque de fato são qualidades que merecem registro, além de tudo o que mencionei no início desta anotação. Mas reafirmo que o filme desperdiçou talento com um roteiro que acaba levando ao primarismo, ao esquemático.

Só para dar uma pequena idéia do que quero dizer quanto falo em primarismo, esquemático, aí vão alguns diálogos:

Nikita Kruschev: – “Vodca é uma luxo que temos. Caviar é um luxo que temos. O tempo não é.”

Nikita Kruschev (dirigindo-se a diversos oficiais soviéticos): – “Meu nome… É Nikita Sergeievich Kruschev. Vim aqui tomar as rédeas da situação. Esta cidade… não é Kursk, não é Kiev, ou Minsk. Esta cidade… é Stalingrado. Stalingrado! Esta cidade tem o nome do Chefe. É mais do que uma cidad,e é um símbolo. Se os alemãos capturarem esta cidade, o país inteiro vai ruir. Agora… Eu quero que nossos rapazes levantem suas cabeças. Quero que eles ajam como se tivessem culhões. Quero que eles parem de sujar suas calças. Este é o trabalho de vocês, como oficiais políticos… Estou contando com vocês.”

E Danilov, o personagem de Joseph Fiennes: – “Talvez não seja possível um mundo de pessoas iguais, nem mesmo na União Soviética. Sempre haverá ricos e pobres – ricos em amor, pobres em amor.” (Não é uma transcrição ipsis literis, mas o sentido da frase é esse.) 

         Os personagens se baseiam em pessoas reais

Depois de tanta opinião, algumas informações.

Vassili Zaitsev existiu – não é um personagem fictício. Aprendi isso na internet, depois de ver o filme. O roteiro de Annaud e Alain Godard se baseia no livro Enemy at the Gate: The Battle for Stalingrad, de William Craig, publicado em 1973. A maior parte dos personagens do filme se baseia em pessoas reais. O personagem de Ludmilla, que aparece em uma seqüência importante, lá pela metade do filme, é aparentemente uma referência a uma atiradora de elite do Exército Vermelho, Lyudmila Pavlichenko, que teria matado mais de 300 nazistas, mais do que Vassili Zaitsev, que teria matado cerca de 250.

Um pequeno detalhe: a cidade teve o nome de Stalingrad entre 1925 e 1961. Antes da revolução comunista de 1917, nos tempos dos tsares, chamava-se Tsaritsin; seu nome hoje é Volgograd.

O francês Jean-Jacques Annaud é um cineasta de poucos filmes – 11 longa-metragens, em 34 anos – e um gosto por obras caras, suntuosas, superproduções, talvez mais próximas do cinemão comercial americano do que do europeu de uma maneira geral. O Amante, de 1992, transposição para o cinema do livro parcialmente autobiográfico de Marguerite Duras, passado na então Indochina francesa, com o luxo de ter como narradora a voz de Jeanne Moreau, é, como o normal da produção do diretor, um filme de artesanato não menos que brilhante. Sete Anos no Tibete, de 1997, também é uma reconstituição de época brilhante, focalizando a juventude do atual Dalai Lama. Não vi A Guerra do Fogo, sua superprodução sobre a pré-história da humanidade, mas dizem que é igualmente muito bem feito. O Nome da Rosa, a adaptação do romance de Umberto Eco, um thriller policial passado num mosteiro medieval, me parece o melhor de seus filmes. Gostaria de revê-lo.

Interessante: esta sua superprodução teve dinheiro de Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e Irlanda. Da sua França natal, nenhum franquinho, nenhum euro furado. 

Círculo de Fogo/Enemy at the Gates

De Jean-Jacques Annaud, EUA-Alemanha-Inglaterra-Irlanda, 2001

Com Jude Law (Vassili Zaitsev), Joseph Fiennes (Danilov), Rachel Weisz (Tania), Bob Hoskins (Krushchev), Ed Harris (Konig), Ron Perlman (Koulikov), Eva Mattes (Mãe Filipov), Matthias Habich (General von Paulus)

Roteiro Jean-Jacques Annaud e Alain Godard 

Fotografia Robert Fraisse

Música James Horner

Produção Paramount, Mandalay, Swanford Films

Cor, 131 min

***

Título na França: Stalingrad.

11 Comentários para “Círculo de Fogo / Enemy at the Gates”

  1. Parabéns pelo texto… concordo c sua opinião de que n é um grande filme… mas muito bem feito visualmente…e um roteiro banalizado.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *