Nota:
Anotação em 2010: Goodbye Solo chegou bastante incensado. Merece todos os elogios que vem recebendo. É um belíssimo filme, uma elegia à solidariedade, à amizade por cima e além de todas as diferenças – de cor de pele, de origem, de credo, de status social – entre as pessoas.
É uma elegia à solidariedade feita em um tom um tanto triste, um tanto melancólico – apesar da vitalidade imensa, da grande alegria de viver do personagem principal, o Solo do título. É um filme que me faz lembrar de novo a autodefinição que Georges Moustaki fez em uma das mais belas de suas canções, “Je suis un autre”: Goodbye Solo é amargamente otimista, alegremente pessimista.
Believer, numa época cínica, ou no mínimo de falta de crenças.
É um pequeno retrato, e não um grande painel, um afresco; também já usei essas imagens para tentar definir outros filmes, mas elas se encaixam perfeitamente aqui. Não é uma sinfonia, é um quarteto de cordas. Não é uma epopéia, é quase um pequeno conto.
Foi impossível não lembrar de dois outros grandes pequenos filmes, duas belíssimas obras também feitas recentemente pelo cinema independente americano sobre esse mesmo tema, a solidariedade entre pessoas de diferenças origens – O Agente da Estação, de 2003, e O Visitante, de 2007, os dois do diretor Tom McCarthy. Não sei, é claro, se o diretor Ramin Bahrani viu os filmes de McCarthy, mas a impressão é de que viu, sim, e foi influenciado por eles. O que não é demérito algum – muito ao contrário.
Um filme que felizmente rema contra a corrente atual
Goodbye Solo, assim com as duas obras de Tom McCarthy, rema saudavelmente contra a maré atual dos filmes cheios de fogos de artifício na narrativa, cheios de exageros dos exageros dos exageros, de super-heróis no lugar de seres humanos, de muitíssimos tiros por minuto, explosões, perseguições de carro, mais tiros, mais explosões. É um filme suave, em tudo por tudo – na forma da narrativa, na descrição dos personagens, no desenrolar da trama. Não há surpresas, reviravoltas, pegadinhas, pegadonas. Há uma história simples, emocionante, bem contada, com suavidade, discrição, extrema discrição, muita sutileza. Fala-se mais nas entrelinhas que nos diálogos.
São dois personagens centrais, dois homens que não poderiam ser mais díspares, antípodas. Solo, o apelido simplificado de Souleymane (interpretado por Souleymane Sy Savane), é um imigrante senegalês, que se radicou, em vez de em uma grande metrópole, o que é mais comum, numa cidade média do interior da Carolina do Norte, Winston-Salem. Trabalha como motorista de táxi; não é dono de seu carro, que pertence a uma empresa. É um sujeito de uns 30 e poucos anos, alegre, extremamente comunicativo, falante; considera amigo seu todo mundo com quem conversa, e conversa com todo mundo. Como nasceu no Senegal, fala francês, e também alguns dialetos africanos, assim como fala inglês.
Devido a essas características, acha que tem tudo para ser admitido como comissário de bordo numa empresa regional de aviação, e estuda para isso. Não quer ser motorista de táxi a vida toda. Mas exatamente a perspectiva de que ele possa vir a ser comissário de bordo, e passe a viajar constantemente, irrita profundamente sua atual mulher, a mexicana Quiera (Carmen Levya). Quiera está grávida do primeiro filho de Solo, e tem uma filha de casamento anterior, uma gracinha de garota de uns nove, dez anos, Alex (Diana Franco Galindo), que se dá maravilhosamente bem com o padrasto. Na verdade, Solo se dá melhor com a enteada Alex e com a ex-mulher Navani (Navani Reyes), que trabalha num bar da cidade, do que com a segunda mulher, pessoa eternamente mal humorada. Solo, uma pessoa ao contrário sempre de bem com a vida, gosta da mulher – e atribuiu seu mau humor à gravidez.
Assim como Solo é um livro aberto, que conta sua vida para qualquer um, William, o outro personagem central, é o exato inverso. William (interpretado por Red West) é um homem de uns 60 e tantos anos, fechado em copas, trancado dentro de si mesmo. Não quer ser incomodado, não quer que ninguém chegue perto dele. Faz lembrar – me ocorre agora, na hora de escrever este comentário – o personagem da música de Paul Simon: “Sou uma pedra, sou uma ilha – e uma pedra não sente dor, e uma ilha nunca chora”. William nunca chora – pouquíssimas vezes deixará escapar expressão de algum sentimento no rosto ou através de palavras. Mas sente dor – não sabemos se física, se moral. Jamais será explicitada a origem da dor de William.
Boa parte do filme se passa dentro de um táxi
Os dois, Solo e William, se conhecem no táxi que Solo dirige. William havia ligado para a empresa de táxi, mandaram Solo atendê-lo. A corrida era da casa de William até um cinema. William perguntou se Solo poderia levá-lo, no dia 20 de tal mês – daí a uns dez dias, mais ou menos – até Blowing Rock, uma corrida só de ida. A pergunta já havia sido feita quando a ação começa. Na primeira seqüência do filme, William está sentado, com a cara fechada, no banco de trás, e Solo dirige o táxi falando sem parar, puxando conversa, querendo saber o que o passageiro queria fazer no alto de uma montanha de um parque estadual e por que não voltaria no táxi.
Solo pressente algo de mal. Questiona William, já está chamando o passageiro de amigo, de patrão; insinua-se, tenta obter respostas. William fica duro como uma rocha. Like a rock. Blowing Rock – uma montanha de onde a neve sobe do chão para o céu, conforme diz quem já foi até lá.
Boa parte da ação do filme se passa dentro do táxi.
Um personagem e um filme que não seguem as regras normais
Em todos os filmes em que aparecem personagens duros, secos, incomunicáveis, como William – ou, no mínimo na imensa maioria deles –, chega um momento em que o coração de pedra volta a pulsar. É um lugar comum, é quase obrigatório.
Lá pela metade da narrativa, William solta-se um pouquinho. Um pouquinho, mas se solta. Até ficamos sabendo algumas coisas sobre ele – mas poucas. Os remédios que ele está tomando (nos quais Solo vai fuçar, por curiosidade, por bondade, porque quer ajudar, contra a vontade de William) são apenas vitaminas, não há remédios para doenças muito graves. Mas ele vende sua casa, e passa a morar num motel. Depois fechará a conta bancária. Gostou, no passado, de motocicletas, era um fanático por Harley Davidson. Gosta de rock antigo, de country; é fã de Hank Williams. (Solo, esperto, inteligente, poliglota, mas jovem, jamais ouvira falar em Hank Williams.) Fuma, bebe cerveja. Perguntado, inquirido, revela a fórceps que foi casado, que sua mulher o abandonou 30 anos atrás, que não teve filhos – mas Solo, incansável, descobrirá que algo liga William a um garoto de uns 20 e poucos anos – seria o único neto? Solo não ficará sabendo com certeza – nem o espectador.
Mas então, lá pela metade da narrativa, William solta-se um pouquinho. O normal, o natural, a regra das histórias é de que seu coração fosse amolecendo cada vez mais, à medida em que a narrativa fosse se aproximando do fim. Goodbye Solo não é um filme que segue as regras normais.
Só falta dizer o que todo mundo já disse: as interpretações dos dois atores centrais, Souleymane Sy Savane e Red West, são extraordinárias, fantásticas, soberbas. É fascinante ver as expressões dos dois – a vitalidade, a alegria de viver de Solo chegando a balançar a face esculpida na rocha de William. E a nuvem negra que envolve William vai criando no rosto do sempre alegre Solo inquietação, angústia, tristeza.
Ramin Bahrani, o diretor, tem gosto especial pela montagem
Vamos a algumas informações básicas. Quem é Ramin Bahrani, meu Deus do céu e também da terra? Quem são Souleymane Sy Savane e Red West?
Vixe. Ramin Bahrani nasceu em 1975, o mesmo ano da minha filha Fernanda, na Carolina do Norte, exatamente o Estado onde se passa a ação de Goodbye Solo. Aparentemente, é filho de imigrantes iranianos. Este aqui é seu quarto longa-metragem. Fez um curta em 1998, Backgammon, e depois os longas Strangers, de 2000, Man Push Cart, de 2005, Chop Shop, de 2007 – não vi nenhum deles. Depois de Goodbye Solo, que é de 2008, já fez outro, Plastic Bag, de 2009.
Gosta da montagem, é o próprio montador de seus filmes, e assina este como sendo “Dirigido e montado por Ramin Bahrani”.
Diz o iMDB que, em 2009, o crítico Roger Ebert, que gosto tanto de citar aqui, declarou que “Ramin Bahrani é o novo grande diretor americano”. A Harvard Films Archives fez retrospectiva de seus filmes em 2009 – e houve retrospectivas também no festival internacional de La Rochelle, na França, e no Walker Art Center de Minneapolis. Mais ainda: houve uma retrospectiva no MoMA, Cacilda, o MoMA, o Museum of Modern Art de Nova York, em março de 2009!
O bicho tá com tudo!
Souleymane Sy Savane, pelo jeito, antes deste filme tinha participado apenas de um curta-metragem, em 2007. Dá um show no papel título; já trabalhou em dois episódios do seriado Damages, e participou de dois novos filmes que estão em pós-produção. Que tenha boa carreira, porque talento, tem, e muito.
Já Red West é um veterano. Nascido em 1936, no Tennessee, ao lado da Carolina do Norte onde a história se passa, tem mais de 80 participações em filmes e/ou episódios de séries para a TV. Numa olhada rápida na filmografia dele, chequei que ele esteve em pelo menos três filmes que eu vi, A Fortuna de Cookie, de Robert Altman, Assassinos por Natureza/Natural Born Killers, de Oliver Stone, e O Homem que Fazia Chover/The Rainmaker, de Francis Ford Coppola – mas em papéis bem pequenos. Está ótimo como o trágico William.
É isso. Um belo filme. Amargamente, melancolicamente otimista, pessimista com um tom muito suave de alegria. Believer, numa época cínica, ou no mínimo de falta de crenças.
Goodbye Solo
De Ramin Bahrani, EUA, 2008
Com Souleymane Sy Savane (Solo), Red West (William),
Diana Franco Galindo (Alex), Carmen Levya (Quiera), Navani Reyes (Navani), Lane “Roc” Williams (Roc), Mamadou (Mamadou)
Argumento e roteiro Ramin Bahrani e Bahareh Azimi
Fotografia Michael Simmonds
Música M.L.O.
Montagem Ramin Bahrani
Produção Gigantic Pictures, Lucky Hat Entertainment
Cor, 91 min
***1/2
Os primeiros contatos de Red West com as câmeras de Hollywood se deram por conta de sua amizade com Elvis Presley em sua fase cinematográfica. West fez pontas em muitos filmes de Presley. A amizade dos dois teve fim em 1977 quando West, juntamente com seu primo Sonny West, tb membro da então “Máfia de Memphis” (grupo de amigos que rodeavam Presley, alguns como assistentes outros como guarda-costas) e tb figurante dos mesmos filmes, escreveram um livro em retaliação à sua demissão do grupo, o qual denegria profundamente a imagem de Presley. Elvis ficou tão deprimido que sua saúde nunca mais foi a mesma. Elvis faleceu em agosto do mesmo ano.
Vi esse filme já faz tempo, então não me lembro de detalhes. Mas lembro que torci até o fim para o tal William desistir da idéia medonha que ele teve, embora a uma certa altura eu já estivesse com raiva e pensando que ele tinha mesmo era que se explodir, já que não aceitava a ajuda do Solo nem permitia se dar uma segunda chance. Quando a pessoa não quer ser ajudada, ninguém consegue salvá-la, é preciso que o desejo parta dela.
Outra coisa que me marcou foi a linda relação que Solo tinha com a enteada, e como as coisas fluíam bem entre os dois.
Realmente é um belo filme, que merecia ter mais comentários.