Relatos Selvagens / Relatos Salvajes

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4.0 out of 5.0 stars

Em um verso extremamente feliz, Caetano Veloso falou “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Mais que apenas a força da grana, é impressionante como é grande a força da humanidade, de forma ampla, geral e irrestrita, para erguer e destruir coisas belas.

Relatos Selvagens, escrito, montado e dirigido pelo argentino Damián Szifrón, traz seis histórias que demonstram como o ser humano pode ser capaz de fazer coisas pavorosamente feias, agressivas, nocivas, violentas, abjetas, nojentas. Ao mesmo tempo em que expõe tanta mazela, o filme mostra também, paradoxalmente, como o bicho homem consegue criar arte, beleza.

Ou, para citar a frase que uso sempre: ao demonstrar que a humanidade dá tantas indicações de que, afinal, foi uma invenção que não deu certo, Relatos Selvagens é um belíssimo exemplo de que talvez, quem sabe, a humanidade seja uma invenção que até poderia dar certo.

É um monumento de beleza descomunal. Um filmaço. Dos melhores que já vi nos últimos muitos anos.

Tudo no filme é de altíssimo nível. As interpretações são excelentes – e é muito impressionante constatar que, além de Ricardo Darín, todos os atores não estão nos diversos outros filmes argentinos que tenho visto. Ou seja: los hermanos estão muito bem no quesito atores. Vai ter ator bom sobrando assim… bem, só na Inglaterra. Los hermanos se acham mesmo ingleses…

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A música. Maravilha de trilha sonora do grande Gustavo Santaolalla, argentiníssimo de El Palomar, onde nasceu em 1951, mas há décadas radicado nos Estados Unidos, onde fez as trilhas de belos filmes como Brokeback Mountain (2005), Babel (2006) e Na Natureza Selvagem (2007). É autor também de trilhas de filmes de diretores latino-americanos, como Amores Brutos (2000), de Alejandro González Iñárritu, e Diários de Motocicleta (2004), de Walter Salles.

Fotografia, movimentos de câmara, direção de arte, montagem – tudo é esplendoroso.

Mas o melhor de tudo, o mais absurdamente fantástico são as histórias, as tramas dos seis episódios, o roteiro, tudo obra desse Damián Szifrón.

A genialidade das tramas e do roteiro do filme explicam de sobra por que Pedro Almodóvar quis ser um dos produtores do filme, com sua empresa El Deseo. Almodóvar é, ele mesmo, um dos mais geniais criadores de tramas, de histórias que há. Deve seguramente ter ficado fascinado com a inventividade, a criatividade desse garoto argentino.

De repente, descobre-se que diversas pessoas no avião conhecem Pasternak

Sou péssimo para fazer sinopses. Não tenho o dom da síntese. Muito ao contrário: me alongo, me apego aos detalhes. Mas vou tentar fazer um resumo das seis histórias criadas por Damián Szifrón para mostrar que o bicho homem é ruim da cabeça e doente do pé. Para isso, vou usar em parte as sinopses feitas no IMDb por um carioca que domina como poucos essa arte, Claudio Carvalho.

Naturalmente, não vou revelar o desfecho de nenhuma das histórias, e, se houver spoiler, aviso.

“Pasternak”. Uma modelo (María Marull) e um crítico musical (Darío Grandinetti) se encontram em um avião e descobrem que têm um conhecido em comum, chamado Pasternak. Rapidamente ficam sabendo que diversos outros passageiros e até uma aeromoça também conheceram a figura. Segue-se uma tragédia.

Esse primeiro episódio é extremamente curto, não deve durar mais de dez minutos – e é um absoluto luxo. Vem antes dos créditos iniciais, como um delicioso (e apavorante) intróito ao que virá depois.

E – aqui vai um spoiler: quem não viu o filme deve pular para o parágrafo seguinte – o episódio “Pasternak” também é, de uma forma surpreendente, estranhíssima, premonitório. Ele antecipa a tragédia que aconteceria no dia 24 de março de 2015 com um avião da Germanwings nos Alpes franceses. Coisa absolutamente maluca!

A garçonete tem que servir o homem que levou seu pai à morte

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“Os Ratos”. Uma garçonete de bar à beira de estrada (Julieta Zylberberg) reconhece no único cliente de uma noite chuvosa (César Bordón) o sujeito rico que causou a morte de seu pai. Ele, ao contrário, não é reconhece. É um tipo asqueroso, nojento. A garçonete conta quem ele é para a cozinheira (Rita Cortese), e esta sugere pôr veneno de rato na comida.

A interpretação dessa moça Julieta Zylberberg é um brilho e a direção de arte, primorosa. O espectador se sente dentro de um bar à beira da estrada – e tão perplexo quanto a garçonete.

“O Mais Forte”. Um urbanóide jovem, rico, bem sucedido, cheio de pose (Leonardo Sbaraglia), ultrapassa com seu belíssimo Audi último tipo, numa estrada do interior, deserta, um carro extremamente velho, mal conservado, caindo aos pedaços, dirigido por um sujeito humilde, interiorano, caipira (Walter Donado). Ao ultrapassar, xinga, goza, humilha o outro. Mais adiante, no entando, junto de uma ponte sobre um rio caudaloso, o pneu do Audi fura.

Esse episódio é bem mais longo do que os dois primeiros. É extremamente bem realizado, como todos os outros, mas nele Damián Szifrón demonstra que poderia perfeitamente dirigir filmes de ação de orçamento gigantesco em Hollywood.

É também um episódio de imensa violência. É a luta de classes escarrada, tornada física, no braço, no muque. Mas o diretor não toma partido: rico e pobre são seres igualmente brutais, desprezíveis, violentos como um touro enfurecido.

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“Bombinha”. Mas a palavra em português perde um pouco da força. “Bombita” é muito mais expressivo. É o episódio com Ricardo Darín, esse ator de grande talento e fina estampa que é a cara do cinema argentino dos últimos anos. Ele faz um engenheiro perito em explosivos, em implosões de prédios que não se conforma, de jeito algum, com o fato de o departamento de trânsito de Buenos Aires volta e meia guinchar seu carro.

“A proposta”. Esse episódio é, assim como o da garçonete (ela pobre, trabalhadora x sujeito rico, agiota, chefe político) e o absurdamente explícito rico do Audi x pobre do carro caindo aos pedaços, uma ilustração do que é o abismo entre as classes sociais. Um garotão filhinho de papai (Alan Daicz), dirigindo um carrão na região central de Buenos Aires no fim da madrugada, atropela uma mulher grávida, não a socorre e foge. O atropelamento vira notícia de rádio e TV imediatamente; a polícia vê os filmes das câmaras de segurança, o carro é logo identificado. O advogado (Osmar Núñuez) do pai do garoto corre para a mansão da família – e tem uma idéia, que expõe para seu cliente, Maurício (Oscar Martínez): que tal se ele oferecesse meio milhão de dólares para o caseiro (Germán de Silva) assumir o crime, dizer que era ele que dirigia o carro?

A noiva fica enfurecida, enlouquecida – e a câmara também

“Até que a morte nos separe”. Festa de casamento de Romina (Erica Rivas, linda e extraordinária atriz) e Ariel (Diego Gentile). Romina é de família podre de rica, Ariel, ator de TV, também tem um bom dinheiro, e então a festa é no salão de festas de um hotel chiquetérrimo, e é uma festa de arromba, com DJ, filme sobre os noivos, centenas de convidados.

Romina descobre, no meio da festa, que uma das convidadas, colega de trabalho de Ariel, uma gostosona de coxas à mostra, é amante dele. Vira uma fera ferida, uma leoa feroz, um tubarão enlouquecido em busca de sangue.

Esse episódio final é de um brilho assustador. É longo. A violência vai crescendo, crescendo, crescendo. A câmara vai enlouquecendo junto com a noiva, faz movimentos espetaculares. A maior parte das tomadas mostra uma grande quantidade de pessoas, é tudo um tour-de-force, uma coisa absolutamente impressionante, que faz lembrar os momentos mais féericos dos grandes filmes de Brian De Palma, como, por exemplo, a sequência de abertura de Olhos de Serpente (1998), ou a sequência de abertura incrível de Uma Juíza Sem Juízo (2013), ou aquela sequência mesmerizante de O Segredo dos Seus Olhos (2009).

É uma explosão de talento.

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Relatos Selvagens foi o sétimo argentino indicado ao Oscar de filme estrangeiro

Está hoje – 2015 – com 40 anos esse Damián Szifrón. É de 1975, o ano de Desire de Bob Dylan, Jóia e Qualquer Coisa de Caetano, A História de Adèle H de Truffaut, A Última de Boris Grushenko/Love and Death de Woody Allen – o ano de Fernanda Rossanez Vaz da Silva.

E esta obra-prima é o terceiro longa que o cara dirige. Antes, tinha feito El Fondo del Mar (2003) e Tiempo de Valientes (2005). Nesse longo período entre 2004 e 2014, o ano de lançamento de Relatos Selvagens, escreveu os roteiros de séries de TV.

Entre 2002 e 2003 escreveu, produziu e dirigiu duas temporadas da série Los Simuladores, elogiadíssima e premiadíssima, que, segundo a Wikipedia em espanhol, misturava suspense e humor inteligente. A Sony comprou os direitos da série e já realizou versões no México, Espanha, Chile e Rússia.

Relatos Selvagens recebeu 39 prêmios, fora 44 outras indicações. Foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e participou da mostra competitiva do Festival de Cannes – indicações que valem bem mais que uma dezena de outros prêmios.

O IMDb traz uma informação fascinante: Relatos Selvagens foi o sétimo filme argentino indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro – e o terceiro consecutivo estrelado por Ricardo Darín. O cara é fodinha mesmo. Os anteriores foram O Filho da Noiva (2001 ) e O Segredo dos Seus Olhos (2009).

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Uma raça capaz de criar um filme destes talvez tenha alguma salvação, afinal

Entre as minhas muitas idiossincrasias, ou talvez defeitos, está o fato de que não consigo achar graça alguma no humor negro. (Ou seria humor afrodescendente? Bem, melhor deixar isso pra lá.) Não entendo o humor negro. Não capto. Não consigo entrar em sintonia.

Relatos Selvagens tem sido descrito como uma comédia de humor negro. Não me lembro exatamente (termino esta anotação diversos dias depois de ver o filme), mas tenho quase certeza de que não dei sequer um leve sorriso ao longo de 122 minutos de grande cinema.

Para mim, não há humor ali – só há negror. Situações terríveis, horrorosas, violentas, sórdidas – mostradas com absoluto brilho.

É, é aquilo que me ocorreu e botei lá no início. O filme mostra seis vezes que a humanidade é uma invenção que não deu certo. Mas mostra isso de maneira tão inteligente, tão genial, que, paradoxalmente, nega isso e demonstra o contrário. Uma invenção capaz de produzir uma obra de arte destas pode ser que venha a ter salvação.

Anotação em julho de 2015

Relatos Selvagens/Relatos Salvajes

De Damián Szifrón, Argentina-Espanha, 2014

Com Darío Grandinetti (Salgado), María Marull (Isabel), Mónica Villa (Profesora Leguizamón) (episódio “Pasternak”),

Rita Cortese (a cozinheira), Julieta Zylberberg (a garçonete), César Bordón (Cuenca) (episódio “Los Ratos”),

Leonardo Sbaraglia (Diego, o do Audi), Walter Donado (Mario, o do carro velho) (episódio “El Más Fuerte”),

Ricardo Darín (Simón), Nancy Dupláa (Victoria) (episódio “Bombita)

Oscar Martínez (Mauricio), María Onetto (Helena), Osmar Núñez (o advogado), Germán de Silva (o caseiro),

Alan Daicz (Santiago) (episódio “La Propuesta”),

Erica Rivas (Romina), Diego Gentile (Ariel) (episódio “Hasta que la muerte nos separe”)

Argumento e roteiro Damián Szifrón

Fotografia Javier Julia

Música Gustavo Santaolalla

Montagem Pablo Barbieri Carrera e Damián Szifrón

Produção Agustin Almodóvar, Pedro Almodóvar e outros; Corner Producciones, El Deseo, INCAA.

Cor, 122 min

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11 Comentários para “Relatos Selvagens / Relatos Salvajes”

  1. Finalmente, Sérgio, talvez com um ano de atraso você entrega uma deliciosa resenha sobre um dos melhores filmes do mundo, sim o exagero é merecido. Ótimo texto para um filme que é uma verdadeira tese de como o ser humano pode ser bem infame.

  2. Um filmaço mesmo! Gostei tanto que vi umas três vezes.
    Ricardo Darín: divo. Um dos episódios de que mais gostei foi justamente o “Bombinha” – me lembrou muito, mas muito mesmo, o que o governo do Brasil (em todas as esferas) faz com a gente.
    “O Mais Forte” foi o episódio que me causou mais repulsa. Dois homens de classes sociais diferentes, mas extremamente violentos, cheios de ódio e asquerosos (o roteirista/diretor exagerou na escatologia). Leonardo Sbaraglia é bonitão, mas seu personagem é tão nojento que é impossível sentir atração pela beleza dele (e que foto bonita você escolheu com ele; esqueçamos o cara atrás naquele pose medonha).
    “Os Ratos” é outro dos meus preferidos. Fiz até uma colagem na época, de um diálogo entre as duas personagens. A garçonete comenta com a cozinheira, que o homem que levou seu pai à morte é candidato a algum cargo político, e pergunta: “Esse filho da puta ainda quer governar?”. A cozinheira, da excelente Rita Cortese, responde: “Quando vai se tocar que os filhos da puta governam o mundo?” (Fiz a transcrição da legenda que obtive na época, feita por um grupo que legenda filmes “alternativos”).
    “Até que a morte nos separe” tem um final que surpreende; todos esperam uma coisa, mas o filme vai para outro lado. A história é muito doida, mas não há como tirar a razão da noiva enlouquecida. Eu também não consigo achar graça em humor negro, e não ri nos episódios anteriores. Mas quando vi esse sozinho, separado dos outros, ri em alguns momentos; mas aquele riso meio nervoso, sabe? Porque a história vira uma tragicomédia. Quando ela praticamente jogou a ex-amante do cara no vidro eu ri sem querer. Não sou a favor de violência, mas a mulher mereceu. Cara de pau pra ela é pouco. E nem ficou tão ferida assim, vá! Também acho o sotaque dos argentinos engraçado, italianado (não à toa eles se acham os próprios), e nesse episódio acho que o sotaque cantado deu um toque hilário ao drama (na primeira vez em que fui a Buenos Aires, na hora de pegar a mala na esteira, pensei que tivesse chegado a alguma cidade da Itália. Surreal).
    Em “A proposta”, ele mostra mais uma vez que classe social não tem nada a ver com bom ou caratismo. O final é acachapante.

    Spoiler:

    Quando vi o filme, o avião da Germanwings ainda não tinha caído, e depois acabei não fazendo essa associação de que pode ter sido algo premonitório. Eu fico muito impressionada toda vez que um avião cai, e acompanho tudo o que sai na mídia; mas nessa vez específica não pude acompanhar as notícias, porque estava com uma internet que simplesmente não me permitia navegar, e assim ficou por 3 semanas. Também viajei no fim de semana logo após o acidente e fiquei meio desconectada. Por um lado foi bom não ter obtido os detalhes, pois acabei voando com a tal empresa poucos meses depois (o pouco que li sobre a queda/derrubada desse avião, falava em Lufthansa, não em Germanwings, que é um braço dela, então na minha cabeça ficou Lufthansa). Antes de voar, fiquei sabendo que um avião da Germanwings havia caído, mas não sabia que tinha sido ‘aquele’ avião, então não dei muita bola. Às vezes a ignorância é mesmo uma bênção.

  3. Excelente esse filme; já assisti umas três vezes e pretendo fazê-lo outras vezes; apenas o último episódio me pareceu meio “cinemão”.
    No entando, o filme como um todo se coaduna perfeitamente ao aforismo “a humanidade é uma invenção que não deu certo”, com o qual concordo plenamente..

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