O Circo, o terceiro longa-metragem de Charlie Chaplin, lançado em 1928, é uma maravilha de filme, coisa de gênio, obra-prima.
São 71 minutos de brilho, inventividade, inteligência, arte pura.
É um desfilar de seqüências fantásticas, uma atrás da outra. É mais ou menos assim como um vídeo em que alguém tivesse concentrado uns 30 dos melhores lances de toda a carreira de Pelé.
Hum… A frase acima não é original. Escrevi na anotação que fiz logo após ver mais uma vez Em Busca do Ouro/The Gold Rush, o filme anterior de Chaplin, o segundo de seus 10 longa-metragens, lançado em 1925 – mas ela vale perfeitamente também para O Circo.
Em Busca de Ouro é um filme baseado em acontecimentos reais e trágicos, envolvendo fome e desespero – e é impossível a gente deixar de pensar que só mesmo Charlie Chaplin poderia criar uma comédia tão deliciosa, tão hilariante, partindo de episódios reais tão trágicos, sobre fome e desespero.
O Circo foi realizado num período em que Charlie Chaplin enfrentava o pior dos infernos que se pode imaginar. É absolutamente fantástico, é literalmente inimaginável, implausível, improvável, inacreditável que, feito nas condições em que foi feito, O Circo seja essa comédia hilariante, deliciosa.
A produção do filme durou quase dois anos, e foi cercada por uma série de tragédias, dificuldades imensas, paralisações, interrupções. O fato de que ele foi produzido na época em que Chaplin enfrentava um processo tumultuadíssimo de divórcio nada amigável é apenas uma das barras pesadas que envolveram a realização do filme.
Deve ter sido uma experiência extremamente penosa para Chaplin. Tanto que ele não fala uma frase sequer sobre o filme que levou quase dois anos para fazer em sua longa autobiografia, lançada em 1964.
O Circo ficou décadas fora de cartaz, sem ser reapresentado nos cinemas. Apenas em 1969, 41 anos, portanto, depois da estréia, Chaplin decidiu relançar o filme, acompanhado então por uma trilha sonora composta pelo próprio cineasta.
É esta versão, com a trilha sonora de Chaplin feita no final dos anos 60, que a produtora francesa mk2 lançou inteiramente restaurada, em uma belíssima coleção de 3 caixas de DVDs, em 2003.
Nessa edição cuidadíssima, O Circo vem em dois DVDs, um deles inteiramente ocupado por documentários, atrações especiais. O primeiro deles é uma introdução lida por David Robinson, o biógrafo do mestre, autor de Chaplin – Uma Biografia Definitiva, que teve nova edição em 2001, só lançada no Brasil em 2011 (pela Novo Século Editora); no seu livro, o biógrafo dedica um capítulo inteiro a O Circo.
Muito do que será relatado aqui se baseia no que David Robinson escreveu no seu livro e sintetizou no filmete que abre os especiais do DVD da mk2.
O Vagabundo faz a platéia rir – mas só quando não pretende
É, repito, um desfilar de seqüências fantásticas, uma atrás da outra. É um conjunto de gags, de episódios engraçados, de piadas. É quase como se fosse uma colagem de alguns dos pequeninos 69 curta-metragens – cada um com cerca de 12 minutos de duração –, realizados entre 1914 e 1923, que transformaram Chaplin num dos principais nomes do cinema mundial, e um dos mais absolutamente amados.
O espectador pode perfeitamente perceber isso hoje, quase 100 anos – meu Deus do céu e também da terra, um século! – após o filme ter sido feito: são conjuntos de episódios, cada um com seu princípio, meio e fim. Ao final de alguns deles, inclusive, Chaplin usa na montagem o recurso do fade out que lança na tela alguns segundos de imagem alguma, a tela toda preta, como que para assinalar que acabou um capítulo, e vai começar outro.
E, no entanto, é uma história só, é um longa-metragem, é uma narrativa com começo, meio e fim. Para usar a comparação com a literatura: sim, é um pequeno romance, formado de capítulos; cada capítulo parece um conto em si mesmo, mas eles são encadeados e contam uma história coerente, atraente, fascinante.
É assim: o Vagabundo (o nome Carlitos não é mencionado, mas, claro, é ele, o pobre sujeito sem eira nem beira, a persona criada por Chaplin, uma das personas mais fascinantes já criadas pela mente humana) envolve-se, involuntariamente, com a polícia. Por uma circunstância fortuita, acaba se tornando suspeito de ser um batedor de carteiras, um punguista, um lanceiro. É perseguido por diversos policiais e, ao fugir deles, passa por uma sala de espelhos (uma sequência memorável, coisa de absoluto gênio) de um parque de diversões e acaba entrando num circo, no momento em que está acontecendo o espetáculo.
Aquele circo não vai bem. Os palhaços não conseguem mais arrancar risada alguma da platéia, apesar de todo o seu esforço, em especial do mais veterano, o velho palhaço sem nome interpretado por Henry Bergman (na foto acima), um grande colaborador de Chaplin. O dono do circo, que também não tem nome (interpretado por Allan Garcia), está furioso com todo mundo, e principalmente com sua enteada, Merna (Merna Kennedy, 18 aninhos quando o filme começou a ser feito), a principal atração feminina, que também não está em boa forma e não tem conseguido agradar ao público.
Mas então o Vagabundo, fugindo dos policiais, entra no picadeiro – e o público até então sonolento, inerte, começa a gargalhar e aplaudir freneticamente a figura engraçadíssima que não está ali para atuar, e sim simplesmente para fugir dos policiais.
O dono do circo vai contratar o Vagabundo – mas acontece um problema fantástico: “ele só é engraçado quando não tem a intenção de ser”, como sintetizou o biógrafo David Robinson. Colocado no picadeiro para ser engraçado, o Vagabundo faz tudo errado, não consegue arrancar um sorriso da platéia.
Só essa invenção de Chaplin já garantiria a O Circo um lugar especial na História do cinema: um palhaço que só é engraçado quando não percebe que está sendo engraçado, quando não tem a intenção de ser engraçado.
O Vagabundo vai muito rapidamente se apaixonar por Merna, a estrela do circo. E vai, é claro, opor-se de todas as formas que puder aos maus tratos impostos à garota pelo padrasto, o malvado proprietário.
Merna também parece gostar do Vagabundo – mas, quando surge Rex, o homem da corda-bamba, sujeito bonitão pra burro, ela se derrete toda por ele.
Atrás das risadas, a luta de classes, o rico mau x o pobre bom
Aqui, pausa para duas rápidas considerações.
Um pai/padrasto que trata mal, que a rigor brutaliza a filha/enteada – e o Vagabundo que luta a favor da moça, contra o brutamontes. Isso, que é uma das bases da trama de O Circo, é uma citação, ou, mais claramente, um plágio que Chaplin fez de si mesmo.
No filme The Vagabond, de 1916, um média metragem de 34 minutos, o Vagabundo consegue resgatar uma jovem cigana (feita por Edna Purviance) das mãos brutais de seu pai, que a maltratava. Claro que o Vagabundo se apaixona por ela – mas encontrará um rival mais belo e charmoso do que ele.
Muito dessas situações de The Vagabond foram usadas novamente em O Circo. E por que não? A história do outro filme era dele mesmo. Ele poderia usar suas próprias idéias do jeito que bem entendesse.
A segunda rápida consideração: o dono do circo, o proprietário, o dono dos meios de produção, o capitalista – claro que é ruim, é mau. Bate na enteada, deixa-a sem comer. É mesquinho, é explorador.
Patrão = sujeito mal, perverso. Pobre = bom, virtuoso.
Essa terrível, horrorosa simplificação, esse maniqueísmo grotesco foi a base do entendimento de mundo de gerações pós gerações, a rigor desde que o homem saiu das cavernas, mas que virou filosofia e verdade definitiva em especial a partir do século XVIII, ali pela Revolução Francesa, e tornou-se a Verdade Única e Insofismável em meados do XIX, com Marx e Engels, fora os sonhadores, os socialistas utópicos todos.
Os cinemas italiano e francês, ali entre o fim da Segunda Guerra e a rigor até hoje, fazem dessa Verdade Única e Insofismável a base das tramas de muitos de seus filmes. É trabalhador, humilde, pobre – é bom. Tem um pouco mais do que o básico, não passa por necessidades fundamentais – hum, é burguês. Tem ainda mais que isso – ah, é capitalista, filho da puta, doente do pé e da cabeça.
Era mais ou menos também assim para Frank Capra, o imigrante da Itália paupérrima que transformou um estúdio pequeno – a Columbia – em gignte com seus filmes que exaltavam a possibilidade de, enfim, os ricos, esses filhos da mãe, caírem na real e reconhecerem que afinal têm um coração, e a amizade é mais preciosa que o dinheiro.
Capra tinha um amor infinito pelos pobres, os deserdados, os desafortunados. Exatamente como Chaplin, outro imigrante que deixou para trás uma vida quase miserável. Capra parecia acreditar numa saída de compromisso, de arranjo, de bom senso, de diálogo. Há quem o chame, por isso, de defensor do sistema, do capitalismo, do American Way of Life.
Chaplin também parecia ter um amor infinito pelos pobres, deserdados, desafortunados. Opunha os pobres aos ricos, parecia mais a favor da luta do que do entendimento entre as classes – e por isso acabaria sendo taxado de comunista, no período mais pavoroso da história dos Estados Unidos, a caça às bruxas do macarthismo, na primeira metade dos anos 50. Esse horror faria Chaplin abandonar o país que o acolhera e o transformara em um dos artistas mais amados do mundo.
A gênese foi uma idéia que Chaplin teve de andar na corda bamba
A corda bamba. Tight rope, na língua dele.
As legendas em português de O Circo trazem uma palavra estranha: funâmbulo. Funâmbulo! Eu, que vivo das palavras, que paguei as contas a vida inteira por conhecer palavras e saber juntar uma às outras, não me lembrava de funâmbulo. Mary também não. Exclamou logo: funâmbulo?
Pois é. Nada mais nada menos que o cara que anda na corda bamba, ou o arame.
Corda bamba. Coisa que pode dar os mais diversos significados figurativos. Para Bob Fosse, em All That Jazz, “viver é andar na corda bamba – o resto é esperar”. Meu Deus do céu e também da terra, que frase estupidamente genial: “viver é andar na corda bamba – o resto é esperar”.
O Vagabundo anda na corda bamba na sequência que é clímax de O Circo, bem pertinho do fim da narrativa. No entanto, as sequências na corda bamba foram as primeiras a ser filmadas – e, antes ainda, foram as primeiras imagens que surgiram na cabeça de Charlie Chaplin para criar o que viria a ser O Circo.
Henry Bregman, o ator que trabalhou em vários filmes de Chaplin, registrou a gênese do filme, como consta da biografia escrita por David Robinson: “Uma noite ele veio e me disse: ‘Henry, tenho uma idéia que gostaria de fazer: é uma gag que me coloca em uma situação da qual eu não posso escapar por alguma razão. Estou em um lugar alto, perturbado por alguém, macacos ou coisas assim vêm até mim e eu não consigo me livrar deles’”.
Bregman – que faria, como já foi dito, o papel do palhaço veterano, gordão – prometeu ensinar Chaplin a andar na corda bamba. E cumpriu o prometido. “Ensinei Chaplin a andar na corda em uma semana… Nós esticamos a corda a esta altura do chão (ele indicou pouco mais de trinta centímetros ao entrevistador), depois a erguemos até o teto, sem rede de proteção embaixo, mas Chaplin nunca caiu. Ele andava na corda o dia inteiro. No filme você não vê o que ele fazia naquela corda.”
Junto com Chaplin, Harry Crocker também aprendeu a andar na corda bamba – ele faria o papel de Rex, o galã funâmbulo.
“As filmagens começaram em 11 de janeiro (de 1926), uma segunda-feira”, escreve o biógrafo Robinson. “As duas primeiras semanas foram gastas nas cenas da corda bamba. Isso era contrário aos métodos habituais de filmagem na sequência da história de Chaplin, mas ele estava em treinamento, e, ademais, era a única cena completamente trabalhada em sua cabeça. Em 17 de janeiro, um sábado, o que mostra que estava especialmente absorto na cena, ele começou a trabalhar com os macacos.”
Enquanto fazia a comédia, Chaplin vivia uma tragédia grega
Foram rodadas cerca de 700 tomadas para a seqüência da corda bamba; para a seqüência em que o Vagabundo entra na jaula do leão e não consegue sair, foram 200 tomadas.
Imagine! William Wyler e George Stevens seriam mais tarde considerados perfeccionistas porque mandavam rodar a mesma sequência algumas poucas dezenas de vezes. Chaplin rodou 200 vezes uma tomada, 700 vezes uma outra!
Enquanto trabalhava insanamente para realizar esta obra-prima da comédia, Charlie Chaplin vivia uma tragédia grega – ou um melodrama mexicano. O casamento com Lita Grey era um absoluto inferno, e, em janeiro de 1927, bem na metade da produção de O Circo, os advogados dela entraram com o pedido de divórcio.
Chamava-se originalmente Lillita MacMurray. Lillita – que nome. Quase Lolita, como a garotinha criada pelo escritor russo e depois americano Vladimir Nabokov, no livro de 1955. Havia trabalhado em O Garoto/The Kid, de 1921 – o papel do Anjo da Tentação. Na época de O Garoto, tinha 12 anos. Quando apareceu no estúdio de Chaplin se oferecendo para fazer um teste, em fevereiro de 1924, a época das filmagens de Em Busca do Ouro/The Gold Rush, ainda não tinha completado 16 – estava com 15 anos e nove meses, embora com toda a aparência de maior de 18. O realizador estava então com 35 anos.
Chaplin precisava de uma atriz para o papel da moça por quem o garimpeiro solitário se apaixona perdidamente, aí quando o filme já vai pela metade. Sua atriz principal de diversos filmes anteriores, inclusive o anterior, Casamento ou Luxo, Edna Purviance, já estava um tanto matrona.
Em 2 de março de 1924, Lillita MacMurray assinou o contrato para o principal papel feminino de Em Busca do Ouro. Seu nome artístico passaria a ser Lita Grey. A mãe de Lillita-Lolita-Lita fazia um acompanhamento de perto dos passos da filha. Mas não era tão de perto assim: no final de setembro, a garotinha anunciou a Chaplin que estava grávida.
No livro sobre a vida dela, Wife of the Life of the Party, publicado em 1998, ela diria: “O que Charlie queria era arranjar um aborto o mais rápido possível. Se eu não estivesse disposta a fazer isso, sua outra oferta era me pagar 20 mil dólares para eu me casar com outra pessoa”.
A família exigia que Chaplin se casasse com a moça – e as leis da Califórnia são especialmente duras com quem faz sexo com menor de idade. Roman Polanski sabe muito bem disso.
Em novembro, houve a morte, a bordo do iate do magnata da imprensa William Randolph Hearst, de Thomas Harper Ince, outro dos primeiros grandes realizadores que se estabeleceram em Hollywood. A história – que seria tema de um ótimo filme de Peter Bogdanovich, de 2001, O Miado do Gato/The Cat’s Meow – é até hoje um dos grandes mistérios de Hollywood. Um boato persistente, jamais confirmado, jamais desmentido – e que é contado no filme de Bogdanovich -, assegura que Ince foi morto por Hearst por engano; Hearst, na verdade, teria confundido Ince com Chaplin. Chaplin seria o sujeito que o multimilionário – sim, ele mesmo, o que é retratado no Cidadão Kane de Orson Welles – queria matar, porque estaria dando em cima de Marion Davies, a amante de Hearst.
Três dias depois do funeral de Ince, Chaplin despachou Lillita-Lita, sua mãe e um tio para o México. O casamento se deu no dia 25 de novembro.
Os assessores de imprensa de Chaplin – publicists, no jargão jornalístico americano – eram bem bons, e conseguiram esconder por um tempo o fato de que a moça era menor, ao mesmo tempo em que explicavam que ela não seria mais a atriz principal do filme que estava sendo rodado porque iria se dedicar ao papel de esposa e dona de casa.
Em 5 de maio de 1925 Lillita-Lita deu à luz Charles Chaplin Jr.
O casamento que só aconteceu porque a família da moça exigiu ia despencando cada vez mais, mas Lita ficou grávida de novo; em 30 de março de 1926, nasceu Sydney Earl Chaplin. Nem um ano se passou entre o nascimento do segundo filho do casal e o pedido de divórcio, em janeiro de 1927. Os extras do DVD mostram a petição. Lillita Louise Chaplin é a plaintiff, a demandante, a autora, e “Charles Spencer Chaplin, et al.” são os defendants, os réus, os arguídos, o que é estranhíssimo. Chaplin e outros – sendo os outros o estúdio de Chaplin, a empresa de Chaplin, amigos de Chaplin e ainda o National Bank of Los Angeles e o Bank of Italy, entre outros, em que o cineasta tinha contas.
A moça e os advogados queriam muito, mas muito, mas muito dinheiro.
A sanha dos advogados era tamanha que Chaplin teve medo de que a Justiça confiscasse os rolos de filmes de O Circo, e durante algum tempo carregou as latas de filme, para evitar que uma busca de oficiais de Justiça os levasse.
Lá pelas tantas, no meio do processo – a imprensa noticiando o caso todos os dias, é claro –, os advogados de Lita ameaçaram divulgar os nomes de cinco mulheres com quem Chaplin teria mantido relações sexuais enquanto estava casado com a jovem. Aí era demais – e Chaplin aceitou fazer um acordo. Lita saiu com a fortuna de US$ 625 mil, mais um fundo fiduciário de US$ 100 mil para cada um dos filhos. “Foi o maior acordo de divórcio da história legal da América até aquele momento, e os custos legais de Chaplin chegaram a quase US$ 1 milhão”, diz sua biografia.
Aos 81 anos, Charlie Chaplin se reconciliou com seu filme
Por absoluta ironia, quem sugeriu a Chaplin o nome de Merna Kennedy para interpretar o principal papel feminino de O Circo foi Lita Grey. Merna era amiga de infância de Lita; era uma bailarina, jamais tinha aparecido em frente a uma câmara antes e estava, como já foi dito, com 18 anos quando as filmagens começaram.
Merna faria carreira nos anos seguintes. Trabalhou num total de 28 filmes; em 1934 casou-se com Busby Berkeley, o diretor de musicais de estilo único, marcante, que reunia dezenas e dezenas de bailarinos em cenários gigantescos. Morreu extremamente jovem, de ataque cardíaco, em 1944, aos 36 anos.
Já era outubro de 1927, um ano e dez meses após o início das filmagens, quando Chaplin e Harry Crocker fizeram novas tomadas das sequências da corda bamba. E aí houve um problema grave para a montagem final, porque os cabelos de Chaplin haviam embranquecido
ao longo dos últimos meses, com a pressão do divórcio e do próprio trabalho nas filmagens. Quando começou o filme – diz o livro de David Robinson –, seu cabelo naturalmente negro tinha alguns fios grisalhos. Ao final das filmagens, tiveram que ser tingidos.
O filme teve estréia mundial em 6 de janeiro de 1928, no Strand Theatre, em Nova York. Três semanas depois, houve uma grande estréia no Grauman’s Chine Theater, em Los Angeles.
Na segunda cerimônia de entrega dos prêmios da Academia (ainda não se usava a expressão Oscar), Chaplin recebeu um prêmio especial, com a inscrição: “Para Charls Chaplin, por sua versatilidade e talento em escrever, atuar, dirigir e produzir O Circo”.
Escrever, atuar, dirigir, produzir – e musicar!
“No final dos anos 1960, depois de anos tentando esquecer aquele filme, Chaplin voltou a O Circo, para relançá-lo com uma nova trilha musical composta por ele mesmo”, narra seu biógrafo David Robinson no primeiro dos diversos especiais do DVD. “Ele até mesmo compôs uma canção tema, ‘Swing Little Girl’, para ser cantada junto com os créditos iniciais. Um vocalista profissional foi contratado, mas o diretor musical, Eric Jones, achou que o próprio Chaplin cantava bem melhor. E então ele foi persuadido, aos 81 anos de idade, a gravar a canção. Parecia simbolizar sua reconciliação com o filme que havia custado a ele tanto stress.”
Wim Wenders deve ter se inspirado na abertura de O Circo
É uma bela canção, essa ‘Swing Little Girl’, que abre o filme, enquanto vemos a jovem Merna Kennedy na gangorra do trapézio, a swing do título da música, balançando, suingando, com um olhar um tanto sonhador.
Depois que revi o filme, e que vimos os muitos e muitos extras que o acompanham no DVD, fiquei pensando se Wim Wenders não teria se inspirado um tanto nessas tomadas da abertura de O Circo quando colocou sua então mulher e musa, Solveig Dommartin, balançando no trapézio em Asas do Desejo (1987), enquanto sua câmara babava por ela.
Pode ter sido uma homenagem deliberada ao grande gênio. Ou talvez ele nem tenha feito conscientemente a releitura das tomadas iniciais de O Circo; talvez a visão da jovem Merna Kennedy tenha ficado no subconsciente do cineasta alemão. Vai saber…
Não me lembro muito bem da famosérrima sequência no salão de espelhos de parque de diversões de A Dama de Shangai (1947), de Orson Welles com ele e sua então mulher e musa, Rita Hayworth. É tida como uma das mais antológicas do cinema. Deve ser boa. A sequência no salão de espelhos de O Circo é extraordinária, é absurdamente bela e maravilhosamente executada.
Uma das sequências que mais me impressionaram ao rever O Circo agora foi aquela em que o corpo do Vagabundo se duplica, para atacar Rex, o bonitão que chegou para conquistar o amor da mocinha.
O Vagabundo está sentado, e, perto dele, a mocinha, Merna, conversa animadamente com Rex, o homem da corda bamba, que acaba de se unir ao circo. Merna está absolumente encantada com o bonitão.
E então um Vagabundo sai do corpo do Vagabundo que está sentando, impassível, levanta-se, dá um soco em Rex, joga-o no chão e chuta poeira do tablado em cima dele.
Aí volta para se unir novamente ao corpo do Vagabundo que havia continuado sentado ali, parado.
Steven Spielberg faria uma cena assim, em Além da Eternidade/Always (1989): um personagem absolutamente secundário, o motorista de um ônibus escolar, tem um ataque cardíaco e cai no asfalto da estrada. Enquanto ele permanece no chão, sai dele uma cópia – sua alma, seu ser imaterial.
É uma bela sacada no filme do mago Spielberg, um filme que fala sobre a vida depois da morte.
Mas ver o mesmo truque de efeitos especiais num filme realizado ao longo de 1926 e 1927 é de babar.
Uma sequência esplêndida – que não foi aproveitada!
Foi feita uma outra sequência com efeitos especiais de babar: o mesmo ator, Doc Stone, interpreta dois irmãos gêmeos, dois premiados lutadores de boxe. Para que não sejam absolutamente idênticos, um usa gravata borboleta e o outro, gravata normal. Com um trabalho brilhante de efeitos de dupla exposição, os dois irmãos aparecem lado a lado em diversas das tomadas que foram filmadas.
Hoje em dia, com todos os recursos tecnológicos à disposição, com as imagens geradas por computador, fazer isso é bolinho, é bobagem.
O diretor de fotografia de Chaplin, Roland Totheroh, fez isso quando o cinema sequer sabia falar!
As filmagens dessa sequência com os dois boxeadores gêmeos interpretados por um único ator são uma amostra perfeita, uma radiografia, da forma insanamente perfeccionista, detalhista de Chaplin trabalhar. Um dos especiais do DVD é a reprodução de algumas das tomadas feitas para que, ao fim, na mesa de montagem, o realizador compusesse finalmente a sequência com o melhor material filmado. São dezenas, dezenas, dezenas de tomadas bem parecidas uma com as outras. Mudam apenas pequenos detalhes. Outras vezes, há mudanças maiores, o posicionamento da câmara muda – e então foram feitas quatro, cinco, dez tomadas iguais.
A seqüência é assim: o Vagabundo sai com Merna para almoçar em um restaurante. Mas, para imenso azar dele, no caminho (eles estão andando por um trecho ainda muito pouco ocupado, imagine-se uma coisa destas, da Sunset Boulevard!), encontram-se justamente com Rex, o rival do Vagabundo. Fazer o quê? Não tem outro jeito – vão os três para o restaurante. Escolhem uma mesa, Rex e Merna se sentam; quando o Vagabundo vai se sentar, um dos dois gêmeos, sentado à mesa ao lado, puxa a cadeira, o Vagabundo cai no chão. Levanta-se e vai tirar satisfação com o engraçadinho; Rex também se levanta – mas aí o garçom intervém, leva Rex e o Vagabundo para longe da outra mesa e avisa que os dois irmãos são boxeadores premiados, melhor não mexer com eles.
Isso vem depois de outra sequência interessantíssima, o Vagabundo esperando Merna se aprontar e treinando a corda bamba com um ancinho; inclui, ainda antes de os três entraram no restaurante, o encontro com uma mulher carregando diversos peixes; e prossegue com uma tentativa do Vagabundo de dar um dinheirinho para um dos boxeadores para que ele se deixe esmurrar – quem sabe com essa exibição de força o Vagabundo não conquistaria Merna?
O especial do DVD mostra tudo isso, mas se concentra mais naquele ponto – os três chegam ao restaurante, Rex e Merna se sentam, o pugilista puxa a cadeira e o Vagabundo cai de bunda no chão. A tomada foi feita seguramente mais de 50 vezes!
Chaplin e toda sua equipe dedicaram sete dias inteiros a filmar e refilmar e refilmar as tomadas dessa sequência, que, ao todo, duraria uns dez minutoso. Levaram nisso de 7 a 13 de outubro de 1926.
Pois bem: nada disso entrou na montagem final do filme!
Não cabia. Ficou longo demais. Não era tão fundamental para o desenrolar da trama principal.
Coisa de louco, siô.
Bem, felizmente existe o DVD, e podemos ver as diversas e diversas tomadas que mostram como o gênio trabalhava.
O Circo começou a ser feito na era do cinema mudo e foi lançado, mudo, na era do falado
Este texto está absurdamente grande, e é preciso que haja um ponto final.
Só mais um registro, então. É fascinante ver que O Circo começou a ser filmado na era do cinema mudo, e foi lançado já na era do falado.
Em janeiro de 1926, quando as filmagens começaram, nem se pensava na possibilidade de um dia o cinema aprender a falar.
Em 1927 o cinema passou a falar.
No começo de 1928, quando O Circo estreou, mudo, é claro, o tempo dos silent movies já era coisa do passado.
Remando contra a corrente, Chaplin ainda faria mais dois longa-metragens sem palavras – embora já com música, trilha sonora: Luzes da Cidade, de 1931, e Os Tempos Modernos, de 1936.
Apenas em 1940, 13 longos anos após o advento do som, Chaplin enfim botou seus personagens para usar a voz, em O Grande Ditador, o sexto de seus dez longa-metragens. Depois viriam Monsieur Verdoux (1947), Luzes da Ribalta (1952), Um Rei em Nova York (1957) e A Condessa de Hong Kong (1967).
Anotação em junho de 2015
O Circo/The Circus
De Charles Chaplin, EUA, 1928.
Com Charlie Chaplin (o vagabundo),
e Allan Garcia (o dono do circo), Merna Kennedy (Merna, a enteada do dono do circo), Harry Crocker (Rex, o homem da corda bamba), George Davis (o mágico), Henry Bergman (o velho palhaço), Stanley J. Sandford (o capataz do circo), Steve Murphy (o punguista)
Argumento e roteiro Charlie Chaplin
Fotografia Roland Totheroh
Música (para o relançamento em 1969) Charlie Chaplin
Montagem Charlie Chaplin
No DVD. Produção Charles Chaplin Productions. DVD mk2-Warner Bros.
P&B, 71 min
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Na cena dos espelhos eu sempre lembro do Bruce Lee…
Maravilha de texto, Sérgio, como sempre!
Tenho um livro que fala sobre a “vida sexual” de algumas estrelas e astros de Hollywood (comprei num sebo, para ler entre um livro mais puxado e outro, mas como é um recorte de outros livros, ficou um negócio meio mal escrito, então está empacado. E não há nada de muito novo, que quem lê um pouco sobre bastidores já não saiba).
A primeira figura retratada é a de Chaplin. O autor conta várias histórias que me causaram nojo. O cara foi um ótimo cineasta, não dá pra negar (embora não faça o meu estilo de cinema), mas como homem que gostava de menininhas só consigo sentir repulsa por ele. (Assim como por Polanski, que foi citado no seu texto. Dizem que Polanski ficou ainda pior depois do assassinato cruel de Sharon Tate e do bebê, o que explica, mas não justifica. Acho que as leis têm que ser duras mesmo. Uma “booktuber” que eu sigo e que parece ser uma pessoa sensata, disse que admira o trabalho de Polanski, mas que o considera um escroto. Eu assino embaixo, embora não goste dessa palavra, e isso vale para Chaplin também).
Como meu coração não é totalmente de pedra, senti um pouco de pena de CC quando recebeu o Oscar honorário, depois de velhinho. Ele ficou super emocionado. (Acho sacanagem fazer isso com os ganhadores desse Oscar “especial”: esperar que eles fiquem velhos, muitas vezes debilitados, para depois ~reconhecer~ que foram bons. Hollywood sendo Hollywood ).
Vou tentar ver “The Cat’s Meow”. Adoro uma história sobre o pessoal do cinema, ainda que seja boato. Fiquei impressionada quando li sobre isso no livro.
Sobre o post de Jussara..Charlie Chaplin, Elvis Presley,JERRY LEE LEWS..TODOS SO NAMORARAM MENINAS..AS MAIS “VELHAS” FORAM AS DE CHAPLIN..A DO JERRY TINHA 13 A DO ELVIS 14 …ANTIGAMENTE ERA MODA AS MENINAS CASAREM CEDO..MAS SÓ AS CELEBRIDADES É QUE FICAM COM MÁ FAMA.