Mensageiro Trapalhão / The Bellboy

Nota: ★★★☆

O Mensageiro Trapalhão/The Bellboy, de 1960, é um filme muito interessante por uma boa quantidade de razões. Em primeiro lugar, porque é o filme de estréia de Jerry Lewis como autor, roteirista e diretor.

Jerome Joseph Levitch (1926-2017) fez praticamente de tudo, ao longo de 67 anos de carreira. Foi comediante – de rádio, TV e cinema –, ator, cantor, produtor, roteirista e diretor. Depois de dez anos formando uma das duplas de maior sucesso da comédia americana com Dean Martin, entre 1946 e 1956, foi o protagonista de muitas comédias de sucesso, várias delas  dirigidas pelo expert Frank Tashlin – até iniciar uma bem sucedida carreira como roteirista e diretor com este The Bellboy.

O filme tem, entre outras, uma característica fascinante: foi quase todo, com exceção de duas sequências em externas. filmado dentro de um hotel, o Fontainebleau de Miami – o que é um caso raro de merchandising às claras em uma produção de um grande estúdio, a Paramount Pictures. Nem seria necessário, porque o nome do Fontainebleau aparece 20, 30, 40 vezes ao longo dos curtos 71 minutos do filme, mas, nos créditos finais, há este aviso:

“Este filme foi rodado no luxuoso Fontainebleau Hotel, Miami Beach, Flórida. Gostaríamos de expressar nossa gratidão pela cooperação da gerência.” Assinado: “O Produtor” – ele mesmo, Jerry Lewis.

Outra característica interessantíssima: é um filme que não tem propriamente uma história, um enredo, uma trama, um entrecho. É uma sucessão de piadas – apenas visuais e/ou com palavras. Só isso. Uma sucessão de piadas, enquanto vamos acompanhando as peripécias do mensageiro trapalhão do título, Stanley, o personagem interpretado por Jerry Lewis.

Biruta, encrenqueiro, aloprado, bagunceiro, trapalhão

Trapalhão. Os exibidores brasileiros, ao dar títulos para filmes de e/ou com Jerry Lewis, usaram também os adjetivos biruta, encrenqueiro, aloprado, bagunceiro, mas trapalhão é seguramente o mais perfeito para definir a persona que o ator-autor-diretor criou e interpretou em diversas produções.

Charles Chaplin criou o Tramp, o Vagabundo – Carlitos. Woody Allen criou o nova-iorquino intelectualizado nervoso neurótico cheio de dúvidas existenciais. Jacques Tati criou o Monsieur Hulot. E Jerry Lewis criou o sujeito que é biruta, encrenqueiro, aloprado, bagunceiro, mas, sobretudo, antes de mais nada, trapalhão.

É lógico que dá para inferir que veio daí, do uso de Trapalhão em três títulos de filmes de Jerry Lewis, o nome do programa humorístico que estreou na TV brasileira em 1975, com Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias.

Para registrar: os outros dois filmes que no Brasil têm trapalhão no título são Um Trapalhão Mandando Brasa, Hardly Working no original, de 1980, e Trapalhões do Futuro, Slapstick (Of Another Kind), de 1982.

O filme começa explicitando que não tem história

The Bellboy faz questão absoluta de escancarar que é um filme sem história, enredo, trama, entrecho. O filme abre com uma sequência mostrando um sujeito sentado em um belo escritório, diante de uma mesa de trabalho. fumando um charutão e lendo páginas de um manuscrito, provavelmente um roteiro de filme. A câmara vai se aproximando dele e então ele se apresenta para os espectadores:

– “Olá. Permitam que eu me apresente. Sou Jack Mulcher, o produtor executivo responsável por todos os filmes aqui da Paramount. Antes de lhes mostrar este filme, gostaria de explicar algo. O filme que vocês vão ver não é um filme normal, como aqueles que o público se acostumou a ver nos cinemas.”

Ele se levanta da cadeira, anda até uma estante junto à qual há um grande desenho de um casal se beijando:

– “É muito fácil fazer esse tipo de filme, cheio de amor, emoção e lágrimas. Claro que poderíamos também ter feito um filme espacial (vemos um grande desenho de um ET e um disco-voador), um filme violento (vemos um desenho de um sujeito atirando em outros), ou um filme de terror. Eles fazem muito sucesso. Mas escolhemos fazer o filme que vocês vão ver agora. Um filme baseado na graça, na diversão. E ele é um pouco diferente porque não tem história nem trama. É isso mesmo: nenhuma história, nenhuma trama. Na verdade, é uma série de sequências tolas. Ou um diário visual de umas poucas semanas na vida de um sujeito bem louco.”

E aí o sujeito começa a rir sem parar.

Dá a nítida sensação de que aquele não é um figurão da Paramount coisa nenhuma: é um ator, um ator com jeito de canastrão.

E é isso mesmo: Jack Mulcher, produtor executivo da Paramount, é interpretado por Jack Krushen, um ator que tem 222 títulos na filmografia. Não dá para ter certeza, mas o nome Jack Mulcher muito provavelmente é fictício.

Quis transcrever todo esse blablablá porque ele é interessante, e demonstra como o estúdio quis de fato realçar que o filme que vem a seguir não tem história nem trama.

Uma piada atrás da outra, sem parar, sem parar

Para que história, trama? The Bellboy tem piada que não acaba mais.

E é impressionante: eu me lembrava muito bem de várias delas. Me lembrava perfeitamente, nitidamente, de várias delas – e, diacho, faz muitas, muitas décadas que vi o filme pela primeira e creio que única vez. Sim: chequei. Antes de rever agora, tinha visto apenas uma vez – em 1962! O ano em que comecei a anotar em um caderno os filmes que via. Vi Mensageiro Trapalhão no Cine Brasil, na Praça 7, Belo Horizonte, no dia 19/7/62. Há 56 anos!

Tinha visto uma vez só, há 56 anos, e ainda me lembrava de várias das piadas!

Algumas delas:

* Stanley está limpando o escaninho em que ficam as chaves dos hóspedes – cada chave num quadradinho de madeira marcado com o número do apartamento. Alguém reclama que ele está demorando muito. Reclama de novo. Stanley joga as chaves de qualquer jeito no escaninho. Corta, e na tomada seguinte vemos um corredor imenso do hotel, e, diante de cada porta, um hóspede tentando usar a chave e não conseguindo abrir a porta.

* Esta aqui precisa de uma rápida contextualização: em 1960, o Fusca era um carro bem pouco comum nos Estados Unidos, e 99,9% dos carros tinham o porta-malas na parte de trás. Pois então alguém pede a Stanley que vá pegar a bagagem no carro que acabava de chegar, e a entregue no quarto tal. Stanley vai até o carro, um Fusca, e, claro, abre a porta traseira. Coça a cabeça diante do que vê. Corta, e na tomada seguinte ele está carregando o motor do Fusca e batendo na porta do apartamento para entregá-lo aos hóspedes.

* Stanley passa entre os hóspedes deitados ao sol da Flórida, na beira da piscina do hotel. Um homem está dormindo, barriga para cima, o rosto ardendo com o sol forte. Stanley pega um pano todo furadinho, como uma grande peneira, e coloca no rosto do homem. Corta, e na tomada seguinte o camarada está furioso na recepção, dizendo que as férias terminaram, ele tem que estar no ar na TV naquela noite, e vejam como está sua cara.

Muitas das piadas, das gags, são puro nonsense

Várias das piadas, das gags, dos pequenos esquetes que compõem The Bellboy são absolutamente, mas absolutamente nonsense. Como, por exemplo, a longa sequência em que Stanley passa pela sala de teatro do hotel, sobe no palco, pega a baqueta do maestro, que estava ali, e começa a reger a orquestra – a orquestra inexistente, é claro.

É uma sequência um tanto longa mesmo, e extraordinárias. As caretas que Jerry Lewis faz diante do som de cada um dos trechos de melodias que a orquestra toca são de rachar de rir.

Mas é puro, puro nonsense.

Ou a sequência em que, numa escadaria, Stanley cruza com o homem que está comendo uma maçã (o papel de Larry Best).

Não existe maçã – não há nada na mão do homem. Ou é uma maçã invisível. Invisível, mas perfeitamente audível: o homem dá uma mordida na maçã que ninguém vê, e ouvimos um ruído altíssimo de uma boca mastigando uma maçã.

Nonsense puro, absoluto.

Há, em todo o filme, um óbvio tom de quem está homenageando as comédias do cinema mundo. Desde a opção pelo preto-e-branco, até o fato de que o protagonista Stanley parece mudo.

Stanley não fala absolutamente nada ao longo de todo o filme – até exatamente a sequência final, quando pronuncia 16 palavras, segundo contabilizou o IMDb.

A homenagem mais óbvia às comédias do cinema mudo vem na presença do sujeito que imita Stan Laurel (1890-1965), o Magro do Gordo e o Magro e um dos ídolos de Jerry Lewis. O falso Stan Laurel aparece várias vezes no filme, e é interpretado por Bill Richmond (na foto abaixo), ator, produtor e roteirista que colaborou com Lewis nos roteiros de alguns de seus filmes.

E uma das belas sacadas do autor e diretor foi o de mostrar um astro de cinema chegando para se hospedar no hotel – Jerry Lewis!

Jerry Lewis chega ao Fontainebleau em uma limousine, desce, e é seguido por um, dois, três, quatro assistentes.

A câmara está mostrando o lado direito da limousine, no canto direito da tela. Os assistentes, assessores do astro de Hollywood vão descendo do carro, atravessando o centro da tela e indo em direção à entrada principal do hotel, à esquerda da tela. Cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Não pára de descer assessor de Jerry Lewis da limousine – os extras, evidentemente, iam entrando na porta traseira da esquerda, que a câmara não pegava, e iam saindo pela porta direita.

Saem de dentro da limousine uns 15 assessores de Jerry Lewis.

A rapidez com que Lewis fez o filme até assustou

O filme tem a participação especial de um outro comediante: Milton Berle (1908-2002) faz o papel dele mesmo, hospedando-se no Fontainebleau. Não é um nome muito conhecido no Brasil, mas, nos Estados Unidos, era uma espécie de Chico Anysio, de Miguel Falabella. Um de seus apelidos, para se ter uma idéia da fama do cara, era Mister Television. Um detalhe interessante é que Milton Berle também fez papel dele mesmo em um dos últimos filmes de Marilyn Monroe, Adorável Pecadora/Let’s Make Love, lançado no mesmo ano deste The Bellboy, 1960.

A grande piada é que Milton Berle se assusta ao ver Stanley, já que Stanley, obviamente, tem exatamente a cara de Jerry Lewis. E Milton Berle também interpreta um mensageiro – e o Jerry Lewis hóspede do hotel fica assustadíssimo ao ver o mensageiro que é sósia do outro comediante.

A rapidez com que o filme foi feito impressionou todo mundo ligado ao cinema na época. Consta que Jerry Lewis levou apenas 8 dias para escrever todo o roteiro – e escreveu um roteiro detalhado, de 165 páginas.

As filmagens levaram apenas quatro semanas – durante as quais Jerry Lewis se apresentava como comediante à noite no teatro do próprio hotel. De Miami o comediante levou seu show para Las Vegas – e, lá, cuidou da montagem do filme.

Um doido de pedra.

Foi a crítica francesa que primeiro notou o talento de Lewis

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Engraçada série de esquetes com Jerry como um mensageiro do Fountainbleau em Miami Beach. Nenhuma trama, mas um monte de gags engraçadas. Milton Berle e Walter Winchell fazem participações especiais. Estréia de Lewis na direção.”

Opa! Walter Winchell. Quem é Walter Winchell, meu Deus? Vejo no IMDb que ele faz o narrador. Diacho… Não reparei em narrador.

O Guide des Films de Jean Tulard é sucinto sobre Le Dingue du Palace, que é como os franceses chamaram The Bellboy: “Primeiro filme de Jerry Lewis como autor completo. As caretas de sempre, mas excelentes gags e uma simpática homenagem a Stan Laurel.”

Le Dingue du Palace. O maluco do palácio. Acho Mensageiro Trapalhão um título melhor.

Le Petit Larousse des Films diz: “Primeira obra e primeiro grande trabalho, Le Dingue du Palace instala imediatamente Jerry Lewis no panteão do burlesco”.

Sim, é absolutamente necessário registrar isso: foi a crítica francesa, sobretudo, e em primeiro lugar, que reconhece o talento de Jerry Lewis como autor e diretor. Muito antes, e com muito mais empenho e entusiasmo, do que a crítica americana. “Não houve ninguém mais engraçado que ele na década de 60. Os críticos franceses chegaram até a compará-lo a Chaplin e Keaton”, diz Rubens Ewald Filho em seu Dicionário de Cineastas.

Eu recomendo Jerry Lewis, recomendo Mensageiro Trapalhão. Faz muito bem – em especial em tempos tão negros, tão tristes quanto estes que estamos vivendo.

Anotação em abril de 2019

Mensageiro Trapalhão/The Bellboy

De Jerry Lewis, EUA, 1960

Com Jerry Lewis (Stanley/Jerry Lewis),

e Alex Gerry (o gerente Novak), Bob Clayton (o chefe dos mensageiros, o Bell Captain), Sonny Sands, Eddie Shaeffer, Herkie Styles, David Landfield (mensageiros), Bill Richmond (o homem que se parece com Stan Laurel, o Magro), Larry Best (homem da maçã), Jimmy Gerard, Tilly Gerard (o casal que briga), Duke Art Jr., Eddie Barton, Howard Brooks, Paul Gerson, H.S. Gump, B.S. Pully, Maxie Rosenbloom. Benny Ross, Joe E. Ross (mensageiros)

e, em participação especial, Milton Berle (ele mesmo)

Argumento e roteiro Jerry Lewis

Fotografia Haskell Boggs

Música Walter Scharf

Montagem Stanley Johnson

Coreografia Nick Castle Sr.

Produção Jerry Lewis, Paramount Pictures. DVD Empire.

P&B, 71 min

R, ***

Título na França: Le Dingue du Palace. Em Portugal: Jerry no Grande Hotel.

4 Comentários para “Mensageiro Trapalhão / The Bellboy”

  1. Se não me engano, é quando Jerry Lewis vivendo o ator que se hospeda no hotel com aquela fila imensa atrás dele quem diz que aquele pessoal são os “comes e bebes” – assim dizia a tradução que eu assisti há muitos anos. Na mesma hora me ocorreu que aquilo seria uma crítica aos “pesos mortos” que muita gente rica e famosa carrega atrás de si – os bajuladores, os que se encostam.

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