Inspire, Expire / Andið eðlilega

Nota: ★★★½

Inspire, Expire, primeiro longa-metragem da autora e diretora islandesa Isold Uggadottir, de 2018, é um drama pesado, denso, tristíssimo, sobre destituídos, pobres, em situações extremas. Daqueles que deixam o espectador angustiado, sofrendo junto com os personagens.

No entanto, é um filme que demonstra esperança nas pessoas. Que acredita que as pessoas são capazes de fazer o bem para os outros.

A realizadora Isold Uggadottir optou por um estilo cru, seco. Não por falta de recursos, não, nada disso: co-produção Islândia-Suécia-Belgica, o filme seguramente teve orçamento, se não folgado, ao menos confortável. Me pareceu uma escolha, uma decisão, essa coisa de que menos é mais, menos é melhor.

Uma cuidadosa procura do mínimo: muito propositadamente, é claro, ela dá pouquíssimas informações sobre o passado, e até mesmo sobre o presente de suas personagens – duas mulheres diferentes em tudo, que a vida faz se encontrarem, que vêem seus passos se cruzarem uma, duas, três, várias, seguidas vezes.

E mesmo as poucas informações sobre as duas protagonistas da história vão sendo entregues bem aos poucos, em conta-gotas, ao longo dos 95 minutos de filme – que aliás não passam depressa, custam bastante a passar. Não porque o filme seja ruim, de forma alguma, mas porque é tudo triste demais, duro demais, angustiante demais.

Por exemplo: só quando o filme já está lá pela metade é que ficamos sabendo o nome da protagonista que aparece primeiro, que surge de cara, na primeira sequência.

Exatamente porque a diretora escreveu sua história e seu roteiro dessa maneira, de contar pouco, o mínimo possível, e ir abrindo as informações bem devagar, acho que o mais correto é enfatizar isso aqui de uma vez. E alertar o eventual leitor: este é um daqueles filmes em que antecipar dados sobre a história, a trama, mesmo que só sobre o início da narrativa, é a rigor spoiler.

O melhor seria o eventual leitor que não tiver visto o filme parar por aqui. Se tiver interesse em ver um bom, um ótimo filme passado na Islândia de hoje sobre duas mulheres destituídas, pobres, carentes das coisas mais básicas, e que envolve a questão dos refugiados, da imigração, um dos temas mais importantes no mundo de hoje, procure este Inspire, Expire. Depois, se quiser, volte aqui para ler sobre ele.

Uma oportunidade de emprego, ainda que para um teste

 Inspire, Expire começa mostrando uma moça que tem pouco dinheiro. A situação de penúria, de dificuldade financeira é a primeira coisa que vemos. A moça, a protagonista da história, que só lá pela metade do filme saberemos que se chama Lára, está no caixa de um supermercado. A compra que ela fez não é muito grande, mas ela pede que parte da conta seja paga com cartão, e parte em dinheiro. A caixa faz a soma, diz que falta dinheiro para chegar ao valor devido.

Uma pequena fila já se forma atrás de Lára.

Aquela situação desagradável, horrorosa: sempre que paro diante da caixa de um supermercado, fico achando que estou segurando a fila, que estou atrasando um bando de gente.

A caixa informa que o cartão foi recusado. Lara devolve algumas coisas que havia separado para levar, abre a bolsa para pegar mais dinheiro.

Finalmente sai do supermercado com as poucas compras que fez, entra no seu pequeno carro, vai pegar o filho na escola – o garoto se chama Eldar (Patrik Nökkvi Pétursson), tem aí uns 8 anos, é simpático, legal, inteligente, esperto.

Lára é interpretada por Kristín Þóra Haraldsdóttir, 6 títulos na filmografia, 2 deles séries de TV. É uma moça magra, de cabelos negros, magrinha, uma aparência de mignon – uma aparência de fragilidade, que a ajudou a compor essa Lára.

Lára, moça magra, com aparência de fragilidade, usa um piercing no nariz, tem tatuagem no ombro. É pobre, luta com dificuldade para tocar a vida: o filme vai mostrando, nessas primeiras sequências, que Lára vive com pouquíssimo dinheiro, vive sempre apertada, sem folga alguma. Na verdade, tem dívidas – deve, entre outras coisas, o aluguel do pequeno apartamento de conjunto habitacional em que vive com o filho. Isso é mostrado ao espectador de modo implícito, indireto: uma hora lá, ela vê no celular – e o espectador vê também – que o senhorio andou ligando.

Pelo Correio, recebe uma boa notícia: foi admitida para trabalhar por um período de experiência como policial no aeroporto.

O filme faz questão, o tempo todo – insisto nisso – de fornecer o mínimo possível de informações. Então, saberemos que Lára vai trabalhar como policial – ainda que em fase de experiência – num aeroporto internacional, e, portanto, podemos inferir que é da capital da Islândia. Mas a palavra Reykjavic não é dita hora alguma.

Também não é dito absolutamente nada a respeito do pai do garoto Eldar. Morreu? Apenas se separaram? O espectador não fica sabendo. É como se o pai jamais tivesse existido.

Assim como só lá pelo meio do filme ficamos sabendo o nome de Lára, só lá pelo meio do filme somos informados de que ela já foi viciada em drogas, parou, está limpa há algum tempo, mas ainda mantém uma pequena quantidade em casa. Já chegou a perder a guarda de Eldar, e depois a recuperou.

Diferentes cores de pele, a mesma miséria

A segunda protagonista da história só aparece quando o filme está chegando aos 15 minutos. Chama-se Adja (o papel de Babetida Sadjo), é da Guiné-Bissau e tenta embarcar ali na Islândia em um vôo para Toronto. Apresenta para o oficial ao lado de quem está a aprendiz Lára um passaporte francês falso – e o oficial chega a liberá-la, mas Lára havia reparado uma irregularidade.

O oficial chama a mulher de volta, pede para examinar de novo o passaporte, constata que ele parece ter problemas.

Há uma fila de passageiros atrás de Adja, várias pessoas que o oficial tem que atender. Então ele pede a Lára que acompanhe a mulher até o supervisor. No caminho até a sala do supervisor, ela percebe que a mulher faz contato visual com uma garotinha acompanhada por uma adulta – as duas já haviam passado pela inspecção, encaminhavam-se para a área de embarque.

O supervisor pede para que Lára assista ao interrogatório que ele fará à africana de passagem pela Islândia, para que ela vá se acostumando com os procedimentos.

Uma das perguntas que o supervisor faz para Adja é se ela está acompanhada ou se viaja sozinha. Adja responde que viaja sozinha.

Ali ao lado, Lára sabe que ela está mentindo.

É neste momento, aos 15 minutos, que Inspire, Respire revela claramente a que veio, de que trata, a respeito de que é. É um filme sobre aquelas mulheres, duas pessoas destituídas, abandonadas pela sorte, pelo destino. Uma islandesa branquinha, branquinha que luta desesperadamente contra o perigo de voltar ao vício, contra a falta de boas condições materiais, que logo terá que abandonar sorrateiramente o apartamento pequeno de conjunto habitacional em que vive porque não tem dinheiro para pagar o aluguel, e passará noites e noites dormindo com o filho no carro. Uma africana da Guiné-Bissau negra retinta que luta desesperadamente para chegar a um país em que possa criar a filha com alguma dignidade.

Diferentes cores de pele, diferentes países de origem, a mesma miséria.

Uma sequência esplendorosa, que Capra aplaudiria de pé

Quando o filme já se aproxima do fim, e tanto Lára quanto Adja já sofreram demais, e fizeram o espectador sofrer demais com elas, há uma sequência emocionante, impressionante – uma coisa antológica, de um profundo humanismo, que faria Frank Capra aplaudir de pé, entusiasticamente, lá da nuvem em que vive.

O filme está com 77 minutos dos seus 95. Adja está com o pequeno Eldar, o filho de Lára, em um ponto de ônibus. Adja havia ido até o escritório da advogada (o papel de Helga Vala Helgadóttir) para saber o veredito da Justiça islandesa para seu pedido de asilo, e agora os dois estão sentados no banco do ponto de ônibus.

Como sempre, a autora e diretora Isold Uggadottir só fornece ao espectador o mínimo possível de informações. Mas, pelo diálogo entre Adja e a advogada, tinha dado para o espectador entender que ela pedia asilo mostrando que sua vida corria risco em seu país, por causa da sua opção sexual. A Justiça islandesa, no entanto, havia entendido que Adja não apresentara provas concretas disso.

– “O que eles queriam? Um vídeo mostrando tudo?”, ela havia perguntado para a advogada

O pedido de asilo havia sido negado. E então, sentada no banco do ponto do ônibus, Adja segurava na mão um maço de folhas A4. Na folha da frente tinha uma foto dela com outra mulher.

O afeto entre o garoto Eldar e Adja havia nascido antes mesmo que ela e a mãe do garoto conversassem – disso o espectador já sabia bem. Adja havia encontrado Musi, o gato que era a paixão e Eldar e havia fugido. Tinha surgido ali uma ligação afetiva entre os dois – embora não conseguissem propriamente se comunicar com palavras, já que Eldar ainda não falava inglês, e Adja, naturalmente, não falava islandês.

Eldar aponta para a foto e fala na sua língua que Adja não compreende: – “Esta é você. E esta é sua amiga? (E, depois de algum tempo: ) Ela é bonita.”

Eldar havia acabado de passar a mãozinha branca no rosto negro de Adja, para secar as lágrimas dela.

Os dois se olham. Ele demonstra carinho por ela, ela está sofrendo uma dor profunda, e então Adja responde com uma palavra em inglês: – “Angel”.

A câmara se aproxima do rostinho do garoto louro, lindo, fofo. Ele conta para Adja: – “Eu já tive um gato que morreu. Agora tenho outro.”

Close no rosto de Adja-Babetida Sadjo, aquela bela mulher: – “Foi espancada até a morte.”

Close no rosto do garoto: – “E você não pode ter outra amiga aqui na Islândia?”

Fade out – a tela fica toda negra, fim da sequência.

Primeiro longa da diretora, foi bem recebido pela crítica

Achei pouquíssimas informações sobre as duas islandesas, a diretora Isold Uggadottir e a atriz Kristín Þóra Haraldsdóttir, que faz Lára.

Babetida Sadjo já tem um verbete na Wikipedia em francês. Nasceu na Guiné-Bissau em 1983 e viveu em seu país natal até os 12 anos. A família se mudou para Hanói, no Vietnã, onde estudou num liceu francês e lá aprendeu a gostar da língua francesa e do teatro. A família se mudou novamente, e para a Bélgica, onde ela terminou os estudos secundários e conquistou, em 2007, um diploma de arte dramática pelo Conservatoire Royal de Bruxelles.

Diferentemente de sua personagem, Bebetida Sadjo tem a garantia dos papéis legais: possui nacionalidade belga. Trabalhou, entre outros filmes, em Uma Juíza Sem Juízo (2013) e em Waste Land (2014), e já escreveu os roteiros de dois curtas, um dos quais também dirigiu.

De Kristín Þóra Haraldsdóttir, dá para saber, como já foi dito, que estrelou duas séries de TV islandesas, Fangar e Stella Blómkvist, ambas de 2017. Só vi, até agora, uma série da TV islandesa, e ela é absolutamente maravilhosa – Trapped (2015), de Baltasar Kormákur. Os caras sabem fazer cinema naquela ilhota.

A diretora Isold Uggadottir fez sua estréia no longa-metragem com este filme aqui, mas não dá para dizer que seja propriamente uma novata. Fez seu primeiro curta em 2006, o primeiro de cinco. Foi a autora dos roteiros de todos eles. Este Inspire, Expire demonstra que ela dirige como uma veterana – com segurança, tranquilidade.

Este seu primeiro longa foi exibido no Sundance Festival de 2018, o festival de Cannes do cinema independente mundial, e ela levou o prêmio de melhor direção na categoria Cinema Mundial – Dramático. Passou por vários festivais mundo afora, e amealhou 6 prêmios e outras 17 indicações. As críticas publicadas na época da exibição no Sundance foram extremamente positivas, segundo mostra a Wikepedia.

É um belo filme, que merece ser visto. Como disse lá em cima: é um filme duro, pesado, denso, e faz o espectador sofrer. Mas ao final ele entrega uma mensagem de confiança no ser humano.

Sem dúvida nenhuma, Frank Capra aplaudiria esta obra da moça islandesa. De pé, como na ópera.

Anotação em abril de 2019

Inspire, Expire/Andið eðlilega

De Isold Uggadottir, Islândia-Suécia-Bélgica, 2018

Com Kristín Þóra Haraldsdóttir (Lára), Babetida Sadjo (Adja), Patrik Nökkvi Pétursson (Eldar)

e Bragi Arnason (Helgi), Þorsteinn Bachmann (Hörður), Agust Bjarnason (estudante), Sveinn Geirsson (Bergur), Sólveig Guðmundsdóttir (Kolbrún), Helga Vala Helgadóttir (advogada), Jakob S. Jonsson (Sigvaldi), Erling Jóhannesson (funcionário da alfândega), Gunnar Jónsson (motorista), Aladin Laaguid (Al Hassan), Petur Oskar Sigurdsson (contrabandista), Guðbjörg Thoroddsen (professora)

Argumento e roteiro Isold Uggadottir

Fotografia Ita Zbroniec-Zajt

Música Gisli Galdur      

Montagem Frédérique Broos

Produção Zik Zak Kvikmyndir

Cor, 95 min (1h35)

***1/2

Título nos EUA: And Breath Normally. Na França: Puis Respirer Normalement.

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